Quadras escrita por Alisson França


Capítulo 9
Candy Crush


Notas iniciais do capítulo

Esse é o famoso capítulo das explicações, espero que tudo tenha ficado claro. E, por acaso, é o capítulo de número oito (tirando o prólogo).
Pixies - Where is my Mind



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Assim que Anna terminou sua série diária de corrida ela subiu para casa antes que Danila chegasse. Se serviu de uma xícara de chá gelado com leite e checou as mensagens em seu celular. Danila obviamente mandou uma mensagem perguntando o que raios tinha acontecido no dia anterior, e havia também uma mensagem de Aleksei falando sobre um bebê canadense que havia sido registrade como sem gênero. Uma notícia realmente bem interessante, mas Anna tinha algo a mais na sua cabeça.

Sentia-se aprisionada e incapaz, queria visitar seus parceiros de cluster, conhecer eles e tudo mais, mas não conseguia. Isso era frustrante. Enquanto bebericava o chá, a cabeça a mil, uma jovem apareceu sentada do outro lado da mesa. Ela estava visivelmente cansada, tinha os cabelos bagunçados e a postura murcha. Assim que a viu, Anna deu um pulinho de susto.

“Eu sei, eu também não to entendendo nada.” Roberta deu uma risadinha.

“Não, eu to entendendo. Eu tava esperando algum de vocês parecerem na verdade. Eu sou Anna Korzh, aliás.”

“Roberta Sales. Pode me dar um pouco desse chá? Tá bem quente aqui.”

Anna estendeu a xícara, e assim que Roberta a pegou com as duas mãos, as garotas estavam em Portugal, num pequeno quarto com as paredes cheias de infiltrações e uma larga janela exibindo o sol poente. Sua única mobília era uma cama de solteiro mal cuidada, não havia porta, mas na sala de estar era possível ver um garoto com um fuzil jogando candy crush em seu celular. Roberta estava sentada na cama com as costas na parede, bebericou o chá e fechou os olhos sentindo frieza descer sua garganta. Anna sentiu a mesma coisa.

“Eu consigo me sentir bebendo esse chá, mas é você que está bebendo.” Anna disse surpresa.

“É bem legal, mas não é a coisa mais esquisita da semana.” Roberta falava baixo e sem ânimo.

“Então você já foi visitada?”

“Pelos outros? Já.”

“Meu Deus que legal! Quantos são? E como eles são?”

Anna e Roberta eram como polos opostos. Se você não conhece Anna diria que ela parece capaz de matar alguém, mas na verdade ela era um amorzinho que deveria ser protegido. Já Roberta parecia ser um amor de pessoa, mas não hesitaria em reunir coragem pra te matar.

“Eu gostaria muito de conversar com você por horas, e até quem sabe convidar os dois de ontem, mas eu tenho algo mais importante pra fazer!” Roberta pôs a xícara de chá na mesa (de Anna) e foi em direção a porta, mas parou olhando pra Anna. “Vamos.”

“O que?”

“Quando eles apareceram, eles me ajudaram, imagino que seja pra isso que você está aqui não é? Eu preciso sair daqui e achar os meus irmãos.”

“Ah, você já entendeu a lógica! Mas pera aí, onde a gente ta?”

Roberta suspirou e se sentou no canto da cama, Anna sentou ao seu lado.

“Eu estava em casa ontem daí o Pebre, um traficante daqui veio jantar comigo e com meus irmãos. A gente entrou numa briga, e eu acordei aqui nessa casa, imagino que seja na Cova da Moura. Eu não sei onde eles estão, e ainda tem a minha mãe, os traficantes não sabem em qual hospital ela está, mas é questão de tempo até saberem. É suficiente pra você?”

“Acho que sim.” Anna encolheu os ombros.

“Como sairemos daqui então?” Roberta se levantou de novo.

“Muito bem.” Anna levantou-se também “Eu sei escalar coisas.”

“Isso é útil!” Roberta foi até a janela.

Ela estava a três andares do chão, e dali elas tinham uma vista da rua de terra e de outros prédios de pequeno porte ao redor que alcançavam o horizonte com desníveis desorganizados. Todos banhados por um sol alaranjado, quase dando lugar a lua.

“Se eu cair daqui eu me quebro toda.”

“Okay, eu posso ajudar.” Anna ficou parada sem saber exatamente sem saber o que fazer. “Como que eu, sabe, controlo o sue corpo?”

“Você pensa demais. Só... comece a escalar” Elas deram uma ultima olhada de esgoela no guarda distraído antes de Anna sair pela janela e subir até o topo do prédio.

“Pra onde a gente vai agora? Você sabe onde seus irmãos estão?”

“Eu nunca nem vim pra esse bairro.”

Roberta e Anna olharam ao redor, vendo somente prédios e mais prédios de variadas cores. Alguns grafites poderiam servir como pontos de referência, mas isso não excluía o fato de que elas não faziam idéia de onde Miguel, Rafael, Sergio ou Baco poderiam estar.

“Não se preocupe.” Comfrey pôs a mão no ombro de Roberta “A gente vai achar eles.”

Roberta pegou na mão do irmão de cluster e respirou fundo “Nós temos que começar a procurar.”

“Oi, eu sou Anna Korzh!” a garota russa estendeu a mão para Comfrey que a apertou de bom agrado.

“Comfrey Todd.” Ele sorriu.

“A reunião ta marcada pra depois.” Roberta os cortou “Primeiro precisamos...”

“Primeiro precisamos que você descanse!” Comfrey a interrompeu “Você está muito cansada. Precisa beber água e comer alguma coisa, além de um bom descanso.”

“Enquanto meus irmãos estão desaparecidos?”

“O Comfrey tem razão, você precisa descansar. Nós podemos achar um lugar pra comer e aí fazemos a reunião, o que acha?”

“Pera, que reunião?” Comfrey perguntou

“A reunião em que eu vou explicar o que ta acontecendo com a gente.”

“Parece bem necessário!”

Roberta soltou um suspiro e prendeu o cabelo “Tudo bem, água e comida.”

Com a ajuda de Anna ela desceu até a rua, onde se pôs a procurar onde poderia arranjar comida. Não conseguia parar de pensar em como seria bom estar com fones de ouvido naquele momento. Quando eles passaram numa lanchonete, o primeiro instinto de Roberta foi fazer uma distração e roubar algum salgado, mas assim que Lune leu o homem atrás do balcão soube o que seria mais apropriado. Tomou a frente e entrou cambaleando na loja.

Com uma expressão triste e uma linguagem corporal cabisbaixa, Lune pediu ao caixa um copo d’água. Ele ficou feliz em dar não só água, mas um copo de suco e um pastel de Belém particularmente grande. Roberta se sentou e devorou o pastel e o suco sem nem perceber. Anna apontou para Comfrey e Lune que eles podiam sentir o gosto do lanche também, o que ambos comprovaram na mesma hora.

“Hora de descansar!” Comfrey se levantou entusiasmado.

Na mesma hora Roberta riu ao perceber algo “Você é a mãe do grupo!”

Por um breve momento os quatro riram. Então eles agradeceram ao cara do caixa pela refeição e saíram, já noite, a procura de um lugar pra descansar. Anna pensou em invadir a casa de alguém escondido, mas Comfrey achou melhor que, só por aquela noite, Roberta dormisse na rua. Ela não sabia como sair da Cova da Moura, e nem queria, pois não podia sair dali sem os irmãos. E ela sabia que eles estavam lá, só podiam estar.

Depois de andarem por alguns minutos, Anna ajudou Roberta a chegar no topo de um prédio, onde Comfrey a ajudou a achar um lugar confortável para dormir. Depois, Roberta, Comfrey, Lune e Anna se sentaram em círculo no chão.

“Hora das explicações.” Roberta disse.

“Muito bem.” Anna mal sabia por onde começar. “Nós não somos seres humanos, mas somos parentes bem próximos deles. Por causa de um tracinho do DNA nós somos sensates, homo sensorium é o nome cienífico e é por isso que a gente fica visitando um ao outro.”

“Então existem outras pessoas que fazem isso?” Comfrey questionou

“Aham.”

“Então porque não vemos eles por aí? E porque ninguém sabe que eles, ou nós, existimos?”

“Por causa do BPO. Eu não sei muito sobre eles, mas é uma organização que caça sensates. Eu não sei porque, mas já ouvi histórias terríveis de sensates que passaram por cirurgias pesadas e viraram vegetais.”

“Como você sabe isso tudo?” Lune trocou os pés de posição.

“O irmão do meu melhor amigo, Aleksei, é um sansate. Eu nunca o encontrei, mas ele manda uma carta ou email ou que for pro Aleksei todo mês.”

“Mas porque essas coisas só começaram a acontecer com a gente agora?” perguntou Roberta.

“Stefan” Disse Lune “O cara das Filipinas.”

“Isso mesmo.” Anna continuou “Ele é o pai do nosso cluster, quando ele nos deu a luz, ele meio que ativou a nossa ligação. Olha só, Roberta, que dia você nasceu?”

“Eu? Vinte e quatro de Abril.”

“Eu também!” Comfrey exclamou

“E eu. Isso é esquisito.” Lune arqueou a sobrancelha.

“O meu também. Todos os sensates de um mesmo cluster nascem no dia, no mesmo instante pra ser mais exata.”

“E nós só podemos visitar as pessoas do nosso cluster?”

“Uhum. Ah, e mais uma coisa.” Anna beliscou Lune de surpresa, mas todos os quatro se queixaram de dor. “Nós estamos ligados pelas nossas emoções e pela dor também. Por isso, quando estamos emocionados ou sentindo dor a ligação fica mais forte.”

“Por isso o Comfrey apareceu quando eu levei um soco de Pebre?”

“Isso.”

“Mas pera aí.” Cade o Stefan agora?”

“Eu me lembro.” Comfrey acariciou o próprio braço “Ele se matou logo depois de ter falado com a gente.”

“Se matou? Mas porque?”Lune perguntou, e todos olharam pra Anna.

“Ei, eu não sei! Alguém tem mais alguma dúvida?” Todos ficaram em silêncio. “Ótimo, porque eu tenho uma. Quem diabos são vocês?”

Os quatro riram, e Anna foi a primeira a se apresentar. De repente o cluster estava na cozinha de sua casa, na Russia.

“Meu nome é Anna Korzh, eu moro aqui com o meu tio e pratico parkour. Ah, e sou pansexual.” Ninguém precisou perguntar o que o termo significava, pois a definição pipocou na cabeça de todos eles de forma simultânea.

Depois eles estavam no quarto de um apartamento de classe média no Brasil. O quarto era pequeno, tinha apenas a cama e um armário de parede. Incensos e cristais flutuavam por todo o ambiente, dando até um ar meio exotérico pro lugar “Eu sou Lune Verdan, moro aqui com meu melhor amigo e me identifico como uma pessoa não-binária. E eu também sou ótimo em ler pessoas.”

“É bom ter mais uma pessoa da sigla aqui.” Anna sorriu para o jovem, que sorriu de volta.

Depois eles estavam no capô de uma caminhonete vermelha estacionada em meio as árvores. A sua frente, Sam preparava uma fogueira. “Meu nome é Comfrey Todd, eu moro na minha caminhonete e bem, sei fazer bastante coisa. Conserto carros, luto, caço veados, lavo banheiros. A lista e longa.”

“Com quem você tá falando, Comfrey?” Sam não tirou os olhos das lenhas que aglomerava.

“Só com as pessoas na minha cabeça”

Por fim, eles voltaram para Portugal, no terraço de um prédio não muito alto. “Bom, eu sou Roberta Sales, moro com meus quatro irmãos e sei roubar muito bem.” Eles riram.

“É um prazer conhecer todos vocês.” Disse Anna “E fiquem cientes de uma coisa, a partir de agora, nós vamos compartilhar todos os momentos juntos, quer queiramos isso ou não.” Essa última frase teve um tom mais sombrio do que o planejado, e o cluster se pôs a refletir.


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