Quadras escrita por Alisson França


Capítulo 8
Refrigerante


Notas iniciais do capítulo

Apesar de não fazer cálculos exatos eu levei os fuso-horários em consideração. Hoje veremos três eventos que acontecem a noite, mas todos em horários diferentes.
Allie X – Downtown



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Assim que Lune leu a mensagem que sua mãe enviou ele suspirou com indignação. “Essa mulher é louca mesmo!”

“O que foi cara?” disse José tirando os olhos do próprio caderno, ambos sentados na grama do campus aproveitando uma aula vaga.

“A tal festa de quinze anos é hoje à noite. E a dondoca da minha mãe só me avisou agora!”

“Às quatro da tarde?”

“Às quatro da tarde! Cacete, eu vou ter que faltar a próxima aula pra ver o caralho da roupa e a porra da maquiagem”

Mesmo morando com Lune, era sempre uma surpresa para José quando o amigo falava palavrão, isso quase nunca acontecia. O jovem se levantou com a mochila nas costas e foi a passos largos até o apartamento. Chegando lá, focou em escolher roupas socialmente aceitáveis, o que se provou uma tarefa complicada visto que o seu armário era quase que todo composto por roupas ditas masculinas. Ficou surpreso em descobrir que o salto alto cor nude ainda cabia nos seus pés, não o usava há séculos. Sem enrolar muito Lune foi para o banho.

(...)

Lá pelas oito da noite, Comfrey e Sam passaram por uma cidadezinha de interior, onde a garota insistiu em fazer uma parada.

“Faz tanto tempo que eu não como hambúrguer!” ela suplicou

“Você sequer tem dinheiro?”

“Porque você acha que eu não como hambúrguer há um tempão?”

“Faz sentido. Beleza, eu pago dessa vez.” Comfrey agradeceu à senhora Fieldman mentalmente.

Desde que se encontraram mais cedo naquele mesmo dia os dois conversaram sobre as coisas mais variadas. Sam Woodleft tinha dezoito anos e havia fugido de casa (ela não quis dizer o motivo e Comfrey não insistiu), estava vivendo como nômade há apenas dois meses. Ela tinha bastante dificuldade em arranjar comida e dinheiro, mas nunca roubou ninguém nem se prostituiu. E a melhor parte, Sam não conhecia Amy Altman, a mãe de Comfrey.

Ele estacionou numa lanchonete e a garota foi correndo arranjar uma mesa, deixando a mochila na caminhonete. Comfrey pegou um dinheiro e se sentou de frente para Sam. Eles pediram hamburguer, batatas fritas e refrigerante, mas Comfrey não comia com tanta voracidade quanto Sam. Aliás, mal tinha dado três mordidas no hambúrguer, ficou apenas mordicando o canudo.

“Você parece tenso.” Sam disse de boca cheia

“Eu não sei.” Comfrey começou a mexer no buraco da orelha esquerda “Parece que eu to meio que sofrendo por antecipação, mas eu nem sei de que. Eu sinto que alguma pessoa ruim pode sentar aqui a qualquer momento.”

Sam deu de ombros “A estrada faz isso com a gente eu acho. Vai querer esse hambúrguer?”

“Você ainda nem terminou o seu!” Comfrey abocanhou o hamburguer e tentou ignorar o mau pressentimento.

(...)

Enquanto os gêmeos estavam sentados no sofá, Miguel continuava a olhar pela janela ansioso pela chagada de Luis Pebre, um homem de renome no tráfico de drogas de Amadora. Roberta estava sentada na mesa de jantar, já com o tal puta jantar posto, as panelas todas tampadas e os pratos e talheres que Baco e Sergio lavaram distribuídos pela mesa. O mau pressentimento era constante, nem sabia o que seria pior: quando Pebre chegasse ou quando Rafael, o irmão responsável da família chegasse.

Quando o traficante finalmente chegou, Miguel o recepcionou calorosamente e os gêmeos correram para se sentarem a mesa. Luis Pebre tinha vinte e quatro anos, a pele escura, a cabeça raspada e uma característica que distinguia em qualquer multidão: enquanto o olho esquerdo era preto como a noite, o direito era azul como o céu. O homem era certamente muito bonito, musculoso apesar de magro, e possuía uma espécie de magnetismo duplo que fazia com que todos se atraíssem por ele, mas ao mesmo tempo ouvissem uma voz no canto da mente lhes dizendo para correrem. Pebre fez alguma piada com os gêmeos e se sentou a mesa, seguido por Miguel. Só então ele reparou em Roberta sentada ali.

“Olá você.” Ele disse com um sorriso.

Roberta se reduziu a apenas lhe dar um pequeno aceno e, pela sua reação, Pebre definitivamente não estava acostumado a ser tratado de forma seca. Miguel rapidamente pronunciou que todos poderiam se servir, mas Roberta não tirou os olhos de Pebre, não fazia questão nenhuma de ser educada com ele. Olhava ora para o traficante ora para a porta, esperando o irmão mais velho.

(...)

Amanda Verdan e o senador Rogeirinho Verdan buscaram Lune de uber e o levaram até o salão chiquérrimo onde acontecia a festa. Assim que cumprimentou a debutante, ele se pôs a andar pelo salão enquanto os pais seguiam com suas obrigações sociais sem sentido. Havia uma pista de dança recheada de jovens ricos e fúteis (de maioria branca), o salão propriamente dito onde garçons passavam quitutes e bebidas pelas mesas e, por fim, havia uma parte externa com uma piscina fechada e um banco de madeira delicadamente talhado.

Lune pegou um bocado de docinhos com as duas mãos e se dirigiu a esse banco, onde pretendia vegetar até seus pais decidirem ir embora. Entretanto, quando o tédio estava prestes a consumi-lo, Comfrey apareceu sentado ao seu lado.

“Ei, esse lugar é bonito.” Ele olhou ao redor

“É bem chique.” Lune deu de ombros “Mas essa lanchonete é bem mais convidativa!” ele disse, sentado do lado de Comfrey em Nevada.

“Ah Sam, esse é o Lune, ele é do Brasil” Comfrey apontou entusiasmado para o seu lado.

“Quem?” Sam arqueou a sobrancelha e olhou para onde Comfrey havia apontado, mas ele e Lune perceberam que ela não estava olhando para o jovem, mas para o acolchoado vermelho.

“Ela não pode me ver?” Lune ficou confuso “Pera aí.”

Ele se levantou no banco e começou a gesticular e falar alto, testando se os outros o veriam. No mesmo instante Sam cuspiu o refrigerante com uma gargalhada.

“Ah você está me vendo agora.” Lune cruzou os braços.

“Como assim, Comfrey? É claro que eu to te vendo, mas porque raios você ta fazendo isso?” ela continuava rindo.

“Ela acha que sou eu que to fazendo isso.” Comfrey notou ainda sentado no seu lugar.

Nesse momento o dono da lanchonete resmungou por detrás do balcão e Lune (ou Comfrey) rapidamente se sentou novamente.

“Comfrey, o que foi isso?” Sam passava guardanapos na mesa cheia de refrigerante que ela cuspiu.

“Eu só estava testando uma coisa.” Ele coçou a orelha esquerda curioso.

“Toma aqui.” Lune lhe deu um docinho modelado, agora de volta ao Brasil “Por ter feito você passar vergonha.”

Comfrey ficou espantado com o quão gostoso aquele simples docinho parecia, e como ele era chique. Claro, desde que vinha vivendo no seu carro e desviando de qualquer cidade grande, ele não chegava nem perto de coisas luxuosas.

“Está uma delícia! Mas como é possível eu sentir o gosto desse docinho mesmo estando em Nevada?”

“Na verdade essa é uma pergunta interessante.” Ele ia pensar sobre o assunto, mas de repente leu sinais de mentira num homem sentado a sua frente, numa mesa de jantar.

(...)

Durante a refeição, Miguel e Pebre conversavam sem parar, rindo auto e comendo ferozmente. Dois búfalos sentados a mesa. Roberta já estava ficando esquentada com a situação, e porque raios Rafael não tinha chegado ainda?

“O que você veio fazer aqui?”

O homem se mostrou surpreso com a pergunta, largou os talheres e ergueu um dedo para que amigo se calasse. Miguel olhou para a irmã de cara feia, e ela ouviu todo o discurso de melhorar de vida sendo transpassado por telepatia entre os dois.

“Ora, eu só vim jantar com um amigo e conhecer a sua família. Aliás, em que hospital a sua mãe está mesmo?” Ele pôs a mão no ombro de Miguel e sorriu enquanto falava.

Nesse momento, um jovem negro e de cabelo curto apareceu atrás de Roberta, com uma mão em sua cadeira e outra na mesa, de forma a lhe falar no ouvido.

“Ele está mentindo.” Lune avisou e, apesar de nunca tê-lo visto, Roberta confiou nele.

“Ah, ela está no...”

“Cala a boca!” Algo estalou na mente de Roberta “Miguel, liga pro Rafael.”

“Mas por quê?”

“Liga pra ele! Agora!” Baco e Sergio encolheram os ombros vendo a irmã aumentando o tom de voz.

Quando Roberta citou o irmão mais velho, Pebre assumiu uma expressão sombria, com um sorriso de canto.

“Muito sagaz Roberta. Você sabe quanto o Miguelzinho aqui ta devendo pra gente?”

Assim que reparou o que iria acontecer, já era tarde demais. Num movimento rápido, Pebre jogou a cabeça de Miguel contra mesa, o deixando desacordado no mesmo instante. Baco e Sergio deram as mãos e começaram a correr, mas num salto, Pebre chutou a canela de um deles, derrubando os dois de uma só vez. Roberta se jogou em cima dele, mas foi atingida por uma cotovelada no rosto, porém, não caiu no chão. Em meio à queda o braço de Comfrey se apoiou na mesa.

Juntos, eles se levantaram cheios de fúria e foram em direção a Pebre, que largou os meninos ao ver a garota se aproximando. Então Roberta sentiu algo vibrando em seu peito e tudo aconteceu rápido demais pra que ela pudesse processar com clareza. Comfrey desferiu um soco em Pebre como que numa luta de bar; Lune viu um soco chegando pela esquerda com uma percepção extraordinária; Roberta desviou do golpe como que dançando hip hop; e, por fim, os três somaram forças num soco que atingiu o rosto de Pebre em cheio.

Apesar dos golpes, Pebre não se deu por vencido, para terminar logo com aquela situação que já havia saído do controle ele se jogou na direção de Roberta. Ela desviou com facilidade; Lune viu uma rasteira vindo, mas eles não tiveram equilíbrio suficiente para desviar. Quando ela caiu no chão Pebre pegou uma pistola que escondia entre a bermuda e a lombar e deu-lhe um golpe na testa. Depois disso foi só o escuro.


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