Quadras escrita por Alisson França


Capítulo 7
Lápis


Notas iniciais do capítulo

Segundo Jonas, visitar alguém do seu cluster não é algo que você faz acontecer, mas algo que você deixa acontecer.
The Raconteurs - Salute Your Solution



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Ainda na calçada em frente a casa de Danila, Anna andava de um lado para o outro tentando não surtar. É claro que a possibilidade de a casa de Danila ser assombrada passou pela sua cabeça; e a possibilidade de ela ter desenvolvido esquizofrenia; e a possibilidade de as pessoas estarem rindo dela numa pegadinha pra TV; e a possibilidade de ter sido só um sonho (essa foi facilmente refutada com um beliscão que Anna deu no próprio braço). Na realidade, ela queria muito acreditar que qualquer uma dessas possibilidades fosse real, mas no fundo sabia que não eram. Anna começou a falar baixinho numa tentativa de se acalmar.

“Tudo bem, tudo bem. Se eu sou uma sensate significa que esse cara é o pai do meu cluster, certo? E onde raios está o meu cluster? Eles não deveriam simplesmente aparecer quando eu to precisando de ajuda? Eu imagino que uma ajudinha aqui cairia bem! E quantos será que eles são? E onde eles estão?”

A garota parou por um instante e reparou os olhos de Danila a encarando da janela do quarto, no segundo andar. Ela gritou um “Que é?” e andou a passos firmes em direção ao ponto de ônibus. Decidiu que a única forma de se acalmar naquele momento seria correndo. Chegando na Korzh Running, estranhou o fato de ninguém estar fazendo exercícios, mas como era horário de almoço, Anna não ligou muito e foi logo se trocar. Assim que ela se posicionou em frente aos blocos que estava prestes a escalar a playlist jogou uma música que a contagiou instantaneamente.

Sentindo o calor da antecipação correndo pelo seu corpo, Anna sorriu como sorria sempre que se sentia desafiada. Correu com velocidade e destreza, saltando e escalando os enormes blocos coloridos, a musica quase que lhe dando histamina para continuar correndo. Ao ver seu tio, ela desacelerou até parar em frente a ela, mas ainda se mexendo.

“Está bem agitada.” Ele notou.

“Eu amo essa música!” Anna disse, se movimentando num ritmo lento e respirando ofegante.

Nesse momento o Tio Sergei franziu a testa e olhou ao redor pra certificar de que o ia falar era verdade. “Que musica Anna? Não está tocando música nenhuma aqui.”

“O que?” De repente a musica se foi, deixando apenas Anna, Tio Sergei e o silêncio no vasto balcão.

“A música travou há uma hora, os poucos clientes que ficam aqui esse horário até foram embora. Eu estava na verdade te esperando pra ver se você podia consertar.”

Anna foi atingida em cheio pela percepção de que aquela música que ela tinha ouvido não vinha da Rússia, mas de algum de seus colegas de cluster. Definitivamente convencida (ou quase isso) de que era uma sensate, a garota se dirigiu com pressa aos chuveiros, deixando o tio com uma enorme interrogação no rosto. A casa onde eles moravam ficava numa espécie de tablado que foi evoluído para um segundo andar. Era uma casa simples, com apenas um quarto, Anna dormia um colchão posto no chão. Apenas quando chegou na cozinha percebeu como estava faminta, comeu dois pratos cheios de uma só vez. Ela precisava visitar seus parceiros de cluster, mas não sabia como. Parecia fácil quando Aleksei descrevia.

(...)

Com todas as suas tarefas domésticas concluídas na hora certa, ao meio dia, Roberta se sentou no sofá com seu caderno de desenho e tomou o lápis em mãos. Os gêmeos chegaram e levaram o almoço para o quarto, como de costume. Tudo naquele dia ia incrivelmente normal, e normalidade era algo que Roberta estava querendo particularmente com mais afinco, visto o que havia acontecido no dia anterior quando visitou sua mãe no hospital.

Se pegou pensando a sua visita àquele prédio de Manila diversas vezes enquanto faxinava. ‘Se ajudem’ foi o eu aquele homem lhe disse antes que ela voltasse para o corredor do Prof. Doutor Fernando Fonseca. Roberta até pensou em pesquisar na internet pra ver se achava algum incidente parecido, mas se recusou a deixar que o Google dissesse que ela estava com esquizofrenia ou câncer. Ao invés disso, tentou viver aquele dia como qualquer outro, esperando que alguma coisa relacionada a Stefan ou a Manila acontecesse. Não se preocupou com a mensagem misteriosa, pois se era a sua família quem ela devia ajudar, já estava de parabéns.

Pôs os fones de ouvido e o spotify (que ela pagava com seus pequenos furtos) lhe jogou uma música do The Raconteurs que ela já não ouvia há um tempo. Imediatamente, contagiada pela música, começou a desenhar, um dos hobbies que Roberta mais prezava. Enquanto desenhava parecia fazer o mundo ao redor desaparecer, tinha o costuma de não focar no que estava desenhando, mas apenas deixava o lápis fluir livre pelo papel ao som da musica. Era quase terapêutico. Quando a dita música acabou a garota finalmente parou para ver o que tinha desenhado, e se espantou com o resultado. No papel havia em segundo plano uma série de blocos que, apesar de estarem feitos a lápis, Roberta sabia serem de cores diferentes; na parte central da folha, um logotipo circular com dizeres “Korzh Running” numa série de símbolos que por alguma razão a menina sabia ser russo.

Espantada por mais essa pequena dose de anormalidade, Roberta pôs o caderno de lado e ficou um tempo encarando o nada, se perguntando porque raios havia desenhado aquilo e porque aquele símbolo lhe parecia familiar (mesmo de um jeito esquisito) e como raios havia escrito em russo. Invadida por uma euforia ela correu até o computador e pesquisou o nome da academia no Google. Tampou a boca perplexa ao ver que a academia de fato existia, e tinha aquele mesmo logotipo. Como? Havia também um telefone celular ali, que Roberta ficou extremamente tentada a discar, mas teve seus pensamentos correndo a mil cortados pelo barulho da porta. Ninguém costumava chegar a essa hora.

Chegando a sala viu seu irmão mais velho, Miguel andando de um lado para o outro e esfregando a cabeça.

“Você ainda mora aqui?” Roberta ironizou.

Assim que viu a irmã, Miguel correu e pegou-lhe os ombros “Roberta, você não sabe o que aconteceu! O Pebre ta vindo aqui, o Luis Pebre! Ele disse que quer jantar aqui e conhecer a família toda.”

“Você vai trazer gente da Cova da Moura pra cá? E ta feliz com isso, porra?” A Cova Da Moura era um bairro muito perigoso de Amadora que concentrava traficantes de drogas e armas.

“Ah pronto! Começou a Maria Roberta com o seu falso moralismo.” Ele gesticulou de forma a ridicularizar a irmã.

“Não é moralismo, é bom senso! Você tem mais quatro irmãos, sabia? E para de me chamar de Maria!”

Miguel invadiu o espaço pessoa de Roberta e sussurrou de forma ameaçadora “Escuta aqui, Roberta, o Pebre ta vindo aqui e você vai cozinhar uma puta janta pra ele. Você não ta vendo essa oportunidade, sua burra? Um cara poderoso igual ele pode nos alavancar, podemos sair dessa casa escrota e ainda por cima tirar a mamãe do hospital. É a nossa chance!”

“O Rafael não vai gostar disso.” Roberta mantinha a postura ereta.

“Ele não precisa gostar, só precisa continuar trabalhando igual um condenado até a gente conseguir dinheiro de forma mais rápida.”

“A gente?”

“Eu não te ensinei a roubar a toa, Roberta. Mas tudo bem, eu sei que um dia você vai ver como pode ser útil em outro lugar.”

“Junto com os seus traficantes cheios de pó no nariz?”

“Por hora, só prepare um puta jantar.”   

Miguel correu para o quarto dos gêmeos que ficaram alegres em saber que tirariam a mãe deles do hospital se ficassem comportados a mesa. Depois disso ele foi para o banho, cantarolando de alegria e excitação. Roberta ficou uns instantes na sala, imóvel, mirabolando vários planos na cabeça. Tinha a terrível sensação que algo ruim iria acontecer, mas concluiu que o melhor a se fazer no momento era o puta jantar. Soltou um suspiro e se direcionou a cozinha.


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