Quadras escrita por Alisson França


Capítulo 6
Grama


Notas iniciais do capítulo

Se você meditar provavelmente não irá parar numa floresta em Nevada, mas vai ser bem relaxante mesmo assim.
Sigur Rós – Dauðalogn



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Apesar de ter acordado, Comfrey continuou deitado na caçamba da caminhonete, olhando pro céu entre os galhos das árvores. Se espreguiçou sem pressa e ficou mexendo com os dedos no buraco que um alargador havia deixado na sua orelha esquerda. Pela posição do Sol deveria ser mais ou menos umas nove da manhã, mais um motivo para Comfrey permanecer bem onde estava. O garoto não conseguiu não pensar no que acontecera na noite passada, recebeu uma visita de Stefan (ainda não sabia como conhecia seu nome), foi para as Filipinas e volto para Nevada, tudo em menos de um minuto.

Ele finalmente se levantou, tirou as botas surradas para que pudesse sentir a grama nos pés. Era um prazer estranho se sentir conectado com a natureza, seja através da grama, do aroma verde que pairava por ali ou pela luz do Sol que o alcançava por entre as árvores. Comfrey respirou fundo, imóvel por um momento, apenas aproveitando a passageira calma. Conseguia ouvir dali um riacho, e resolveu seguir o som. Para a sua sorte, a correnteza estava fraca naquela manhã, fraca o suficiente para que ele pudesse tomar um banho sem o perigo de ser carregado rio abaixo.

Invadido pela súbita idéia idiota, Comfrey pousou as roupas numa pedra e se jogou no rio. Ele nadava, mergulhava e vinha a superfície novamente. Sem perceber, o garoto começou a gargalhar enquanto jogava água para o auto. Quando saiu do riacho, se deitou sem roupas na grama, secando com o calor do Sol. Ele manteve os olhos fechados e respirou calmamente, não queria que aquele momento tão singular acabasse nunca. Então, de repente, uma figura surgiu sentada ao seu lado.

(...)

Na manhã seguinte, Lune falou sobre o que tinha acontecido para José, durante o café.

“Quer dizer que você foi visitado por um cara, esse...”

“Stefan! O cara se chamava Stefan.” Lune confirmou.

“Isso, e você por alguma razão sabe o nome dele. Enfim, ele apareceu, e você foi para o topo de um prédio nas Filipinas. E ele te disse para ajudar os outros, foi isso?” José se certificou de que entendeu tudo diretinho.

“Uhum. ‘Se ajudem’ foi exatamente o que ele disse.”

“E o que raios esse Stefan quis dizer com essa mensagem a lá ET bilu? Ele quer que você doe sangue? Ou que você me ajude nas provas e eu também te ajude nas suas? Acho essa hipótese menos provável já que eu não tenho idéia do que seja um futuro mais-que-perfeito e você nunca confere o troco do pão, mas não estou aqui pra eliminar possibilidades.”

“Faz sentido. De qualquer forma, a visita aconteceu enquanto eu meditava, acha que é uma boa idéia eu meditar pra ver se acontece de novo?”

“Você não tem aula hoje não?”

“A professora ta com virose.”

“Nesse caso acho uma ótima idéia!”

Depois de terminar o café, José se aprontou e foi para a faculdade, deixando Lune sozinho em casa. Na sala de estar mesmo, ele acendeu um incenso e se sentou com as pernas cruzadas. Repetiu o processo de sempre: fechou os olhos, respirando profundamente, e não controlou o caminho que os seus pensamentos seguiam. Como de costume, ele logo sentiu a sensação de calor percorrendo o seu corpo. Dessa vez, porém, ela não parecia vir de dentro, mas de fora de seu corpo, como se viesse do próprio Sol.

De fato, Lune sentia o Sol na sua pele, e um estranho frescor que só encontraria numa região rica em flora. Mesmo de olhos fechados, ele percebeu a presença de alguém deitado ao seu lado. Ao abrir os olhos, se viu sentado na grama, sendo banhado pelo Sol em frente a um riacho. A visão o deixou feliz.

“É a segunda visita inesperada que eu recebo essa semana.” O garoto deitado ao seu lado disse e os dois se olharam nos olhos sem mudar de posição.

“Comfrey não e?”

“Como sabe meu nome?” o garoto perguntou de forma natural e calma, com genuína curiosidade.

“Da mesma forma que eu sei o nome do Stefan eu acho.” Lune deu de ombros.

“Ele te visitou também?” Comfrey se sentou.

De repente eles perceberam que Comfrey ainda estava nu, mas nenhum dos dois se importou realmente.

“Sim, ontem a noite, enquanto eu meditava.”

“Onde você está?” Comfrey olhou ao redor “É bem aconchegante aqui.”

“Eu também acho. Foi um dos motivos pra eu escolhe-lo.” Lune sorriu orgulhoso do próprio apartamento.

De volta a Nevada, Lune e Comfrey passaram a olhar nos olhos um do outro. Por alguma razão, aquele não foi um gesto invasivo nem desconfortável, pelo contrário, foi algo natural. Os dois sorriram sem saber explicar exatamente o porquê. Quase que involuntariamente, Comfrey pôs a mão sobre a mão de Lune, e seus dedos se entrelaçaram num movimento harmônico. Eles se aproximaram e, sem motivo aparente, se abraçaram bem forte.

“Isso foi bem esquisito.” Lune se afastou apenas o suficiente para poder olhar Comfrey nos olhos.

“Esquisito bom ou esquisito ruim?”

“Só existe um tipo de esquisito, Comfrey, e ele não é nem um pouco ruim.” Ele riu, e o menino riu junto com ele.

Num momento Lune estava lá; no outro não estava mais. Simples assim. Sentindo-se revigorado e feliz, Comfrey se vestiu e pôs o pé na estrada novamente. Quando já estava dirigindo há quase meia hora, uma moça pedindo carona no meio fio chamou a sua atenção. “Ela está fugindo de alguma coisa, e está cansada.” Disse Lune no banco do passageiro.

“Como sabe disso?”

“O corpo dela tá falando.”

Aquilo fez total sentido para Comfrey. Ele encostou a caminhonete e abriu a porta para que a jovem que aparentava ter vinte anos entrasse. Ela era claramente como Comfrey, uma jovem que não parecia ter parentes ou amigos, apenas a sua mochila e seu coração, andando sem rumo. Tinha o cabelo liso chegando até a lombar e a pele escura de uma nativo americana.

“Eu sou Comfrey Todd e você?”

“Sam Woodleft, prazer.” Ela pôs a mochila na caçamba antes de entrar.

“E aí, pra onde está indo?”

“Você aceita um ‘pra longe daqui’?”

“Melhor resposta impossível!” Comfrey sorriu e acelerou o carro.


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