Quadras escrita por Alisson França


Capítulo 16
Areia


Notas iniciais do capítulo

Hoje eu estou feliz porque achei os meus amigos. Eles estão na minha cabeça.
Nirvana - Lithium



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Três dias se passaram até que Roberta fosse finalmente convidada à Arena. Três dias em que ela pensava quase que exclusivamente na Arena. Assim que acordou, no terceiro dia, a menina desceu as escadas para tomar café e repetir o mesmo ritual das manhãs anteriores. Uma espécie de acordo não verbal intitulava que ela visitaria Luis em sua casa, onde eles treinariam. Era um tanto esquisito perceber que, em dados momentos, não era mais Luis falando ali, mas alguém de seu cluster. Koji na maioria das vezes.

Depois do café apreçado ela foi ao quarto de Miguel, de longe o filho mais problemático de Dona Sales (apesar de Roberta estar prestes a roubar esse posto, visto que estava ansiosa para fazer um acordo com os criminosos que tanto repudiava). A Fantasma se encostou no portal da porta, Miguel ainda na cama, apoiado nos cotovelos e olhando para nada em particular, mal reparando a presença da irmã, o Sol da manhã quase alcançado seu rosto. Muitas vezes Roberta se viu pensando se não contar para ele onde estavam os irmãos foi a decisão correta. Apesar de ser quem era, ele parecia bastante preocupado.

Quem interrompeu o transe em que os Sales se encontravam foi Luis aparecendo encostado na parede ao lado de Roberta. Ele a olhava diretamente nos olhos, e parecia preocupado.

“Geralmente sou eu quem puxa assunto.” Roberta disse. Nesse momento Miguel reparou na irmã e casualmente comentou que ela estava falando sozinha de novo, não necessariamente esperando uma resposta.

“O Braz acabou de me ligar.” Luis fez uma pausa “A luta será ao meio dia.”

Roberta respirou fundo e, sem dizer nada, se referiu ao irmão “A luta é hoje.”

“Se você vencer eu vou ver o Rafael, o Baco e o Sergio de novo, né?” ele se levantou e foi até perto da irmã, a silhueta cabisbaixa. “E a mamãe.”

Os dois se olharam nos olhos por uns instantes e Miguel foi logo providenciar seu café da manhã.

“Ele se sente bastante culpado.” Luis comentou.

“Acho que ele finalmente reparou que é adulto.” Roberta pegou o celular e os fones de ouvido.

(...)

Três dias na estrada que pareceram três anos. Sam Woodleft e Comfrey Todd passaram por diversas cidadezinhas no caminho, mas não pararam em nenhuma delas. Paravam o mínimo possível, apenas para comprar comida, água e gasolina. Um nômade e uma fugitiva em seu habitat natural. Já na tarde do terceiro dia, os dois decidiram quase sem usar palavras que precisavam de roupas novas e pararam no primeiro posto de gasolina que encontraram. A opção ideal para quem tem poucas roupas e pouco dinheiro.

Assim que entraram na lojinha de mãos dadas (hábito adquirido recentemente) foram recepcionados por um grande espelho na parede. Quando o único acesso ao seu reflexo é o retrovisor você pode acabar se desacostumando com a própria imagem, e isso é tão verdade que ambos se espantaram ao encarar o reflexo. Comfrey havia feito a barba (revelando algumas sardas na bochecha) e cortado um caótico moicano; já Sam fora ainda mais radical e substituiu os cabelos lisos que iam até a lombar por um corte à maquina três.

Apesar de estarem felizes com os novos cortes, a ampla visão os fez lembrar do motivo de os terem feito. Estavam fugindo afinal. Agora sabiam através de Wade que os Benson estavam atrás deles. Wade, Xander, Yorkie e Zane (e o falecido Alex) eram filhos da matriarca Quinn Benson. Juntos, a família realizava roubos a banca já há tempo suficiente para terem dois imóveis, três carros e um iate.

Comfrey apertou de leve a mão de Sam, fazendo-a voltar ao mundo real. Eles procuraram conforto no olhar um do outro e logo voaram pela loja procurando qualquer roupa barata e de tamanho adequado.

(...)

Sentada a mesa de jantar, Anna esperava Danila voltar da cozinha com o jantar que estava preparando desde mais cedo. Por um lado estava bastante feliz de estar ali na casa de Danila e queria se permitir conhecer mais dele; por outro, porém, ainda tinha aquele zumbido constante detrás da mente. Era a Rússia afinal, o lugar em que homosexuais eram torturados o tempo todo e o presidente simplesmente achava isso okay. Não que Anna fosse homossexual, mas estava inserida na sigla como pansexual de qualquer forma.

E, como todes naquela sigla, a Corredora sabia que uma hora ou outra deveria contar a Danila sobre sua orientação sexual, e ela temia muito sobre a reação dele. Danila poderia simplesmente prosseguir com o jantar e parar de falar com ela aos poucos até que eles se esqueçam que um dia se conheceram; como também poderia forçá-la a... Bem, Anna preferiu se prender a primeira opção. O rapaz veio da cozinha trazendo orgulhosamente uma panela de solyanka. Ele pôs a mesa e ficou uns segundos esperando algum comentário, mas Anna permaneceu absorta nas próprias preocupações.

“Ei Anna. Está tudo bem?” Ele acariciou o ombro da menina para que ela voltasse a realidade.

“Ahn? Ah sim sim está tudo ótimo! Isso é solyanka? Está com uma cara ótima!” ela riu sem graça.

“Se você estiver desconfortável com alguma coisa pode me falar e a gente pode...” ele se sentou à mesa.

“Eu sou pansexual!” Anna exclamou sem rodeios.

Danila ficou uns instantes a olhando, mas logo abriu um sorriso discreto “Que bom que você se sente bem pra me contar isso, Anna.”

“Ué?” Foi tudo que Anna conseguiu dizer. Ela nem achou que Danila fosse conhecer esse termo.

“Achou que eu nem fizesse idéia do que é panssexualidade, não é?” Ele riu “Anna, você já parou pra pensar em como eu pago as minhas contas?”

Na verdade ela havia pensado nisso uma vez ou outra, mas sempre achava algo mais produtivo pra fazer e deixava pra lá. Ele se levantou e pediu para que ela o seguisse até o quarto (sem conotação sexual alguma), a interrogação no rosto de Anna apenas aumentando. A Corredora estava bem familiarizada com o quarto de Danila e tudo estava como sempre esteve, nada diferente. Danila andou até a cômoda do computador e mexeu num objeto virado pra parede que Anna não havia reparado até então.

“Tá você tem uma webcam. Continuo sem entender nada.”

“Bom, eu sei o que panssexualidade, e algumas outras nuances LGBTs graças a uns amigos de trabalho.” Ele se encostou na cômoda “Você mais do que ninguém, Anna sabe que eu tenho um corpo invejável e um pau de respeito certo? Eventualmente eu percebi que eu podia fazer algum dinheiro com isso, só eu, meu quarto e essa webcam.”

A naturalidade na voz de Danila chocou Anna e ela não podia evitar rir de alívio.

(...)

“Tá tudo bem contigo?” José perguntou enquanto Lune andava de um lado para o outro da sala.

“Eu não sei, cara. É uma sensação de angustia. Quer dizer não angustia, algo menos intenso na verdade. Mas com certeza um desconforto.”

“Já tentou visitar o pessoal que fica falando na sua cabeça?”

“Eu não acho que seja isso.” Ele fez uma pausa “Ah, eu não tenho certeza de nada! Abaixa o volume da TV, eu vou tentar meditar um pouco.”

Lune foi até seu quarto e, como de costume, se sentou no chão com as pernas cruzadas e as luzes apagadas. O Leitor fechou os olhos e respirou fundo, se concentrando no ar lentamente entrando e saindo do seu corpo, como se todo o universo respirasse junto. O que ele acreditava que, de fato, estava acontecendo. Lune foi para muitos lugares, mas apenas como um observador.

Viu Anna rindo em descrença enquanto Danila a explicava sobre seu emprego sem carteira assinada; viu Comfrey e Sam com uma duas sacolas cheias de roupas de qualidade duvidosa, mas de preço em conta; por fim, viu Roberta andando sem pressa num terreno arenoso. A sua frente Luis Pebre transparecia preocupação ao lado de um homem de olhos puxados e terno feito sob medida cujo corpo gritava Eu reino! Eu reino! De repente todo o cluster estava sentado no quarto de Lune, acompanhando a sua respiração calma.    

Os quatro trocaram olhares afetuosos e souberem, naquele instante, que havia chegado a hora. Havia chegado o teste final de Roberta para se provar diante de toda a Cova da Moura, tomar pra si a divida do irmão e, quem sabe assim, trazer de volta algum nível de normalidade pra sua vida. Sem necessidade de convite, Comfrey, Lune e Anna apareceram ao lado de Roberta na Arena.

Guiada por Luis (em visita) Roberta chegou bem no meio das entranhas de barracos e ruelas da Cova, de onde nunca saberia sair sozinha. Era uma área do tamanho de uma quadra de futsal, mas com terra e areia. No centro do local os moradores formaram um círculo demarcando o ringue. Numa extremidade, as pessoas abriam um corredor para Roberta entrar; na outra, Braz com Luis a esquerda.

“Eu aceito tomar a dívida do meu irmão.” Roberta anunciou “Eu aceito trabalhar pra você, Braz.”

O homem arqueou uma sobrancelha, analisando a recém-chegada “Muito bem. Prove o seu valor, Sales.”

“Caralho, Roberta. Era pra esperar ele te dar permissão de falar!” Luis sussurrou ao lado dela, mesmo sabendo que nenhum dos homo sapiens ao redor ouviria.

“Só tem você aqui, cadê a Lidia?” Roberta surgiu entre Luis e Braz.

“Toma cuidado, ela pode vir de qualquer lado.” Ele disse ao lado dela na Arena.

“Como assim ver de qualquer lado...?”

Antes que pudesse concluir qualquer raciocínio ela ouviu um grito feminino vindo de fora do círculo. Ao mesmo tempo, porém, todos começaram a gritar juntos, tornando impossível saber de onde o primeiro grito vinha. De repente Roberta sente Lidia caindo sobre ela com velocidade e todos os quatro vão ao chão.

“Então você é a candidata a estagiária?” Lidia disse entre os dentes.

“Tá com medo de ser demitida?” Roberta zombou tentando sair de debaixo da outra.

“Concorrência saudável, eu acho.”

Lidia deu de ombros sorrindo e desferiu um soco no rosto de Roberta, mas Lune foi mais rápido e o soco acertou o chão arenoso. Comfrey e Anna aproveitaram a guarda baixa de Lidia, um soco no rosto e uma joelhada na costela. A moça arquejou e o cluster rapidamente a trocou de posição, ficando em cima dela. Imobilizada, Lidia cuspiu no rosto de Roberta, a obrigando a fechar os olhos e recuar, as pessoas gritando excitadas. A carrasca jogou Roberta para trás com um movimento que Danila sentiria inveja.

O cluster se levantou rápido do chão, o coração pulando no peito e Lidia se levantou logo depois. Sem perceber, as duas começaram a andar em direções opostas, desenhando um círculo na Arena. Lidia tinha o olhar frio e um discordante sorriso, quase como se sorriso que estava ali fosse de outra pessoa. Ao mesmo tempo Roberta, Anna, Comfrey e Lune andavam a passos sincronizados, quase nenhum espaço os separando.

“Você é tão determinada quanto o seu irmão.” Lidia disse e, por um momento, Roberto pensou que ela estava falando de Miguel, mas então ela continuou “O coitado não conseguia nem ficar em pé direito,” Ela riu “mas não disse onde a mãe de vocês tá.”

Então uma série de imagens surgiram na cabeça de Roberta como uma avalanche. O olhou roxo; os hematomas no pescoço e ao longo de todo o torso; os movimentos frágeis; os ombros caídos. Rafael. Foi a única coisa em que ela conseguiu pensar. Rafael. Rafael. E junto dela os outros três compartilharam das imagens, da emoção, da tristeza e, acima de tudo, da raiva.

“Foi você então.” Roberta cerrou os dentes.

Roberta quis avançar deliberadamente, mas Lune a segurou. Por um breve momento eles se viram no Brasil, meditando calmamente sentados no chão. O ar entrando e saindo de seus pulmões sem pressa alguma. Calmaria. Então de volta à Arena, Lune, Comfrey e Anna analisavam Lidia da cabeça aos pés. Os três simultaneamente falavam em voz alta observações e sugestões do que fazer, discordando entre si, argumentando e, como se fossem uma pessoa só, fomentando um plano tático sem espaço para falhas. Já cansada de andar em círculos, Lidia se jogou para cima de Roberta, e Anna não pôde não sorrir. Aquele sorriso de quando ela sabia que venceria.

Lune e Roberta desviaram do soco inicial de Lidia e, a partir daí, o cluster infringiu-lhe uma série de golpes que atingiram diversas partes de seu corpo de forma rápida e sólida. No fim, não restou nada para Lidia fazer senão cair com os joelhos no chão. Roberta parou tentando recuperar o fôlego e só então reparou que todos ao redor delas estavam em silêncio. Olhavam com assombro a candidata a estagiária em pé e Lidia ajoelhada a sua frente, olhando para o chão e respirando com dificuldade.

“Caralho...” Roberta conseguiu ler os lábios de Luis mesmo a distância.

Não obstante, Lidia ainda tentou se levantar, mas foi voltou ao chão com chute certeiro que Comfrey deu em seu ombro. Roberta olhou para Braz, como que sentenciando que a luta havia acabado, mas o homem não se mostrou satisfeito ainda. A passos precisos (ainda exclamando Eu reino!), Braz se aproximou das duas e, sem dizer nada, estendeu uma pistola para Roberta. Naquele momento o mundo pareceu parar de girar. Anna soltou um guincho não intencional, não acreditando na proposta.

“Roberta você não pode...” ela não conseguiu terminar.

A Fantasma olhou para os irmãos de cluster. Todos olhavam um para o outro, olhavam para a arma ainda na mão de Braz e se olhavam novamente sem saber o que dizer ou fazer. Luis continuava imóvel, os olhos atentos.

“Eu preciso saber que você estará disposta a fazer o que eu pedir.” A voz de Braz invadiu os pensamentos do cluster.

“Eu...” Roberta ofegava ainda cansada do combate.

“Apenas um tiro.”

Roberta pegou a pistola em mãos ainda incerta. Luis havia feito isso também? E Lidia? E quantas pessoas mais passaram por esse processo? Comfrey tomou a frente, sentiam que todos os quatro seguravam a arma naquele momento, aquele odioso instrumento. O Nômade apontou a arma para Lidia, que ainda estava de cabeça baixa e quando ele destravou a pistola, Anna fechou os olhos e Roberta precisou desviar o olhar, tentando ao máxima focar os pensamentos nos irmãos e na mãe. Anna se lembrou que disse ao seu cluster uma vez que eles compartilhariam todos os momentos juntos, quisessem eles ou não. Os quatro seguraram a respiração juntos e, no ultimo momento, puxaram o gatilho.

Lune foi o primeiro a abrir os olhos, encarando Lidia ainda ajoelhada no chão, mas algo estava errado. O único som vindo da pistola foi um simples clique, não houve disparo algum. Então finalmente Lidia olhou para cima, encarando Roberta nos olhos, mas com um sorriso estranhamente amigável.

“As vezes a intenção é mais importante do que a ação em si.” Ela disse, e Roberta ficou com a impressão que Lidia já ouvi essa frase várias vezes.

Braz pôs uma mão no ombro de sua mais nova estagiária e estendeu-lhe a outra. Ainda em choque, Roberta o cumprimentou, mas o aperto não foi tradicional. Braz pôs a mão para frente de forma que segurasse o pulso de Roberta, e ela fizesse o mesmo com o pulso dele. O rei a olhou nos olhos.

“Sua mãe está segura e seus irmãos também. Vá para casa. Tome um banho. E se prepare, pois o dever te chamará.” Ele olhou ao redor, o círculo de pessoas recheado de burburinhos. “Bem vinda, Sales.” Ele disse em tom de voz alto, mas ainda assim, cirúrgico.

O círculo de pessoas começou lentamente a se dissipar, Luis conduziu Lidia para fora dali apoiada no ombro e o próprio Braz entrou calmamente em uma das vielas dali, deixando na Arena apenas Roberta, as vozes na sua cabeça e a pistola em sua mão. Comfrey, a eterna mãe do grupo, a abraçou bem forte, e logo Anna e Lune se juntaram num abraço coletivo. Depois de uma vida inteira, o abraço afrouxou um pouco, mas os quatro continuaram em contato.

“Eu preciso visitar a minha mãe.” Foi tudo que Roberta disse.


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