Quadras escrita por Alisson França


Capítulo 15
Pipoca


Notas iniciais do capítulo

AND I SAY HEEEYY WHAT'S GOING ON???
The Cure - In Between Days



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Sam e Comfrey acabaram ficando mais tempo do que pretendiam em Fallon, Nevada. Depois de menos d uma semana eles já conheciam vários moradores da cidade e, consequentemente, todos os conheciam, o que se provou uma mina de ouro para os bicos que Comfrey realizava. Ele até ensinou algumas coisas para Sam, que estava mais radiante a cada dia. Era nítido que a garota nunca havia sido tão feliz quanto naqueles dias. Comfrey ainda não sabia do que ela estava fugindo, mas nem fazia mais questão de saber. Ambos sabiam muito bem como era bom viver ali onde ninguém os conhecia, onde seus passados não os afetariam. Eles se sentiam verdadeiramente livres.

Já no quarto dia um senhor de setenta anos disse que pagaria a Comfrey a sua idade caso ele caçasse um veado na floresta. A caça foi particularmente fácil com a velocidade que os olhos de Lune percorriam o local, captando vários detalhes que o próprio Comfrey deixava passar. Antes de voltar para as ruas da cidade, porém, ele decidiu seguir uma recomendação de Anna. Segundo ela, era importante que os quatro do cluster maximizassem as suas habilidades para o caso de alguma coisa ruim acontecer com algum deles. Dessa forma, Comfrey pôs o veado na caçamba da sua caminhonete vermelha e treinou sua suas habilidades tanto com o rifle de caça quanto com a velha pistola que ele carregava consigo desde que saiu de casa, dando tiros em pilhas de latas.

Depois de mais ou menos uma hora Comfrey voltou para a área urbanizada, se é que Fallon pode ser chamada de urbanizada, e recebeu os setenta dólares do velinho. Depois disso ele foi a pé até a casa dos Moore, onde Sam estava trabalhando como babá, a Lua já em posição.  Sam se dava muito bem com as duas crianças da família, Amanda de onze anos e Miles de nove, tão bem que já era a quarta noite (não seguida) que cuidava das crianças. Chegando a porta, o Sr. Moore o recebeu vestindo um terno cinza bem chique.

“Olá, Comfrey, pode entrar, por favor. A Sam já está aqui.”

“E aonde o senhor vai arrumado desse jeito?”

“Ora para o Baile Flashback óbvio! Um dia vocês também terão os seus.”

“Eu tô louquinha pra dançar Beyonce quando eu tiver oitenta anos” Sam riu do sofá.

A garota estava com as duas crianças em frente a TV, uma bandeja de pipoca para cada um. Quando Comfrey se juntou a eles no sofá a Sra. Moore desceu as escadas, obrigando todos os presentes a soltarem um suspiro. A mulher estava na casa dos quarenta e exibia com orgulho os seus poucos fios de cabelo grisalho. Os Moore viviam em Fallon desde sempre, tiveram uma vida simples e pacata, e todos tinham aquele sotaque do interior tão gostoso de ouvir.

“Tem comida na geladeira, os nossos números de celular estão na agenda no hack. E nada de dormir tarde, okay?” A Sra. Moore beijou as crianças e acariciou o cabelo de Sam antes de partir com o marido.

Então Sam, Comfrey, Miles e Amanda assistiram a um filme qualquer da Pixar que terminou um pouco depois das dez da noite. Depois disso, Sam pôs as crianças para dormir no segundo andar e se sentou com Comfrey novamente no sofá, trazendo uma ultima vasilha de pipoca.

“Comfrey, isso é incrível! Tudo nessa cidade é tão, sei lá... americano!”

“É mesmo uma cidade incrível. E nós estamos fazendo dinheiro a beça aqui, eu não me lembro de faturar tanto assim no mesmo lugar, e olha que eu já dirijo há um ano!”

Sam e Comfrey dividiram um cigarro enquanto falavam sobre coisas sem sentido por quase uma hora, deviam esperar acordados até que os pais de Amanda e Miles chegassem.

“Ei, você sabe que o baile dos velinhos é só o primeiro evento da Semana de Aniversário de Fallon não é?”

“Sim. O que tem?”

Sam pegou um panfleto do criado mudo e o mostrou para Comfrey “Aqui diz que na terça-feira eles terão um show de talentos, qualquer um pode ir.”

“Parece interessante.”

“E é mesmo. Eu estava pensando em inscrever a gente, o que acha?”

“Essa é uma ótima ideia na verdade, quanto eles pagam?”

“Coisa pouca, cinquenta dólares só. Mas vai ser divertido não acha?”

“Eu não toco violão há um tempão mesmo.”

Comfrey deu de ombros fingindo um desinteresse, mas logo foi atingido por um ataque de cócegas de Sam e eles cuidaram para não rir alto demais para não acordar as crianças. Na manhã seguinte Comfrey foi até a Casa de Pedra para inscrever ele e Sam no show de talentos e no fim daquele dia panfletos com os seus nomes já começaram a aparecer.

O tempo passou num piscar de olhos e de repente eles já estavam na noite da apresentação. Os Moore emprestaram roupas chiques que não usavam há muito tempo para Comfrey e Sam, visto que as suas roupas eram todas velhas e surradas (apesar de limpinhas). Ficou combinado que, dentre as atrações, Comfrey seria a terceira pessoa a se apresentar, tocando violão e cantando. Depois dele viria Sam, que apenas cantaria, estando o violão a cargo de Comfrey.

A Casa de Pedra, basicamente o único local disponível de Fallon para eventos de qualquer natureza, tinha sua entrada numa porta com cobertura e uma escada para baixo. Já no subsolo, tinha o palco, uma dúzia de mesas e o bar, com uma variedade surpreendente de bebidas tão velhas que seus rótulos estavam todos ilegíveis. Sam e Comfrey se sentaram no bar esperando a sua vez em suas roupas chiques recém adquiridas: Comfrey numa camisa social bege, sapatos de escritório e o usual jeans velho; e Sam numa camisa rosa claro de corte longo, um jeans curto e as botas já características.

A primeira apresentação foi um show de stand up do jovem Mike da serralheria. Foi até engraçado em alguns pontos, mas acabou com a sensação de que durou tempo demais. A segunda foi um show de ilusionismo barato, porém, divertido de Angela, uma das garçonetes da Casa de Pedra. Então finalmente chegou a vez de Comfrey, que tomou o violão e subiu no palco meio sem jeito, pelas roupas e pelo nervosismo. Mas assim que o garoto se sentou em frente ao microfone ele se viu num ônibus do Brasil. Ao seu lado, Lune estava de pé tamborilando na calça o ritmo de uma musica que Comfrey adorava quando criança. Eles sorriram um para o outro e voltaram para Nevada.

 “Boa noite, meu nome é Comfrey Todd e eu vou tocar In Between Days, do The Cure.”

“Eu amo essa música!” Roberta surgiu ao lado de Comfrey e Lune.

Comfrey cantou a primeira estrofe da musica sem o violão e de forma lenta, quase como que recitando uma poesia. Também em Moscou, Anna cantarolava enquanto Aleksei mexia no computador do clube secreto.

“Não sabia que gostava dessas musicas de velho.” O garoto comentou.

“Ela me lembra de uma pessoa muito especial.” Comfrey disse, através de Anna, pensando em sua mãe.

Na Casa de Pedra, após cantar essa única estrofe, Comfrey começou a dedilhar, percebendo que todos no local reconheciam a musica. Ali todo o cluster já estava presente. Ele tocava com um sorriso no rosto, mas quando se preparava para começar a cantar, Anna tomou o microfone e cantou ela mesma. Roberta dançava pelo palco, sentindo a musica penetrar até os seus ossos, sensação que invadiu também seus irmãos de cluster. De repente Comfrey também se levantou e começou a girar e pular enquanto tocava.

Chegou a vez de uma segunda voz e Lune tratou de dividir o microfone com Anna. Foi uma sensação incrível: todos os quatro sentiam que tocavam o violão; todos os quatro sentiam que cantavam; todos os quatro sentiam que rodavam livremente pelo palco. Tudo simultaneamente. Sem perceber, Lune começou a cantar no ônibus em que estava, nem ligando pros outros passageiros, dividindo o apertado corredor com o seu cluster. Lune então puxou Anna de seu habitual puff em Moscou e ela começou a rodopiar com os outros. Em Amadora, Anna e os outros três começaram a dançar no meio de um supermercado, como se o resto do mundo nem existisse.

Eles gargalhavam, dançavam e cantavam, estavam se divertindo como nunca antes. Quando a musica acabou, o cluster parou ofegante no palco, ainda rindo. A platéia de boca aberta aplaudiu de pé, inclusive Sam.

“Eu sabia que conhecia esse garoto de algum lugar.” Disse o barman atrás dela.

“O que? O Comfrey?” Sam não via como o barman poderia conhecê-lo visto que era a primeira vez que Comfrey passava em Fallon.

“Foi esse o nome que ele te deu? Eu sei quem ele é por causa de sua mãe, Amy Altman. Esse é o filho dela, Jason.”

Sam franziu o cenho, se lembrava vagamente de uma noticia que saiu há alguns meses. Amy Altman era uma cantora que fez muito sucesso na Califórnia, mas acabou se tornando alcoólatra. Mas Sam definitivamente não se lembrava de ela ter tido um filho. Comfrey reverenciou a platéia e foi com um sorriso de orelha a orelha para onde Sam estava.

“Comfrey, você foi incrível! Todo mundo adorou você!” a garota resolveu ignorar o barman

“Foi ótimo, não foi?” Comfrey se dirigia mais ao seu cluster do que a Sam.

“Foi foda pra caralho!” Roberta gritou e todo o cluster gargalhou.

Ainda exaltados, Comfrey e Sam já se dirigiam ao palco, mas foram interrompidos por um grito que invadiu a Casa de Pedra como um tsunami. “Hey! Eu estou procurando por Sam Woodleft!”

“Ele não tem boas intenções.” Lune avisou.

“Nem precisamos do seu super poder pra saber disso” Roberta disse.

O salão rapidamente se encheu de burburinhos, pois aquele homem que descia imponente as escadas não era um morador da cidade. Ele era jovem, não aparentava ter mais de vinte e cinco anos, usava uma camisa xadrez aberta, tinha barba e longos cabelos loiros. A primeira vista, era basicamente uma versão mais musculosa e menos hippie de Comfrey.

“Puta merda. Comfrey precisamos sair daqui, agora!” Sam sussurrou sem tirar os olhos do homem que andava na direção deles.

“Parece que descobrimos do que você ta fugindo.”

“Não me venha dar lição de moral, Jason Altman.” Sam o provocou.

Os dois se olharam ríspidos “Conversamos sobre isso depois.”

“Ótima idéia.”

“A única saída é a escada.” Anna disse analisando todo o ambiente em busca de lugares para escalar.

“Então teremos que derrubá-lo.” Disse Roberta.

 “Vamos, Sam, mamãe vai ficar bem feliz em saber que eu te achei. Quem diria não é? E você ainda disse que eu era o irmão mais burro.” O homem se aproximava como um lobo se aproximando de sua presa, era quase possível ver a baba escorrendo de seus lábios.

“Se afaste Wade!” Sam quebrou uma garrafa no balcão e ameaçou o homem.

“Uau, que perigosa.” Wade ironizou “Já vi porque meu irmãozinho se apaixonou por você”

Num movimento rápido Wade avançou sobre Sam, mas o cluster foi mais rápido. Os quatro seguraram seu braço e deferiram-lhe um soco no queixo, fazendo o homem cambalear para trás. As pessoas presentes começaram a gritar para que os delinquentes saíssem dali, e foi o que eles fizeram. Aproveitando o momento de desleixo de Wade, Sam e Comfrey correram para as escadas.

“Ele vai voltar, o que a gente faz?” Comfrey perguntou ofegante

“Segura ele aqui, eu vou pegar a caminhonete.”

Comfrey faria mais perguntas, mas nesse momento Wade surgiu pela porta e Sam tratou de correr.

“A bruxa enfeitiçou você também, garoto?” Wade caçoou da origem nativa de Sam “Não é a primeira vez que ela faz isso. Meu pobre irmãozinho também caiu no encanto dessa aí.”

“Já pensou na possibilidade eu não dar a mínima pra você ou pro seu irmão?” Lune disse através de Comfrey, pois sabia o eu aconteceria.

Como esperado, a provocação deixou Wade mais puto, e o fez avançar sobre Comfrey sem nem pensar muito bem no que faria. Anna e Lune desviaram dos seus golpes com facilidade e Comfrey tratou de dar-lhe um sono no ombro, apenas forte o suficiente para empurrá-lo. Wade avançou novamente e, quase que simultaneamente, Comfrey desferiu-lhe um sono no rosto e Roberta deu a volta no homem, ficando de cara pras costas dele, e rapidamente Anna o imobilizou pelas costas (um movimento que aprendera com Danila).

Comfrey olhou rapidamente para todas as direções procurando por Sam, não poderia segurar o homem por muito mais tempo. Sua salvação foram os faróis da sua velha caminhonete que se aproximavam rápido. Comfrey chutou as costas de Wade no momento exato em que Sam descarregou a velha caminhonete em cima dele. Não o suficiente para matá-lo, mas o suficiente para jogá-lo no arbusto mais próximo. Comfrey entrou no carro e Sam imediatamente dirigiu em direção a estrada, saindo de Fallon em velocidade máxima, deixando algumas roupas e comida no Owly Night.

Quando já estavam dirigindo a meia hora, Comfrey quebrou o silêncio. “Já podemos encostar.” Mas a menina continuava dirigindo em alta velocidade. “Sam, já estamos seguros, pode encostar em meio a essas árvores.”

“Não estamos seguros, eles já sabem onde estamos! Temos que continuar dirigindo.”

“Sam, para logo esse carro!” Comfrey exclamou, obrigando Sam a fazer uma freada brusca no meio da estrada.

Ela ficou encarando a rua uns instantes e logo se despedaçou em choro. Comfrey rapidamente a segurou os ombros e disse em voz calma. “Deixa eu sentar aí, eu escondo a caminhonete na floresta e a gente pode conversar, tudo bem?” Sam engoliu o choro e fez que sim com a cabeça. Eles trocaram de lugar e estacionaram profundo na floresta ao lado da estrada. Sam se sentou na caçamba e se enrolou num cobertor. Comfrey bebeu um copo de água e deu outro para Sam, se sentando ao lado dela.

“Sam, quem é o Wade?”

A voz de Sam era trêmula “Ele é o irmão do meu ex-namorado, Alex. Eles, e mais três irmãos, junto com a mãe, formam uma quadrilha de roubo de bancos. Quando eu conheci o Alex ele não me contou é claro, mas eu acabei descobrindo. Ele nunca esteve muito de acordo com os roubos, mas era coagido pela mãe e pelos irmãos a cometê-los. Eu acabei o convencendo a denunciar o esquema e fazer um acordo com a justiça para sair ileso judicialmente. Mas Wade e os outros descobriram.” Sam se encostou em Comfrey, de forma que o mesmo a abraçasse por trás. “Eles mataram a minha mãe. Mataram o Alex e tentaram me matar, mas eu fugi.”

Comfrey ficou uns instantes em silêncio, Sam chorando baixinho.

“Meu nome de verdade é Jason Altman, eu adotei Comfrey Todd quando fugi de Sacramento, na Califórnia. Minha mãe é Amy Altman, uma famosa cantora de musica country. Bom, ela era famosa pela musica, mas há uns dois anos papai morreu e a ela não soube lidar com isso muito bem. Se tornou alcoólatra e viciada em heroína. Não demorou muito pra ela começar a vender os móveis da casa.” O garoto respirou fundo “Eu abandonei ela.”

Só quando terminou de falar Comfrey percebeu a presença de Lune, sentado de frente pra eles.

“Eu sei como é ter dois nomes.” Ele começou “Mas jamais diga que Comfrey não é seu nome de verdade, okay? Você é Comfrey Todd, e não deixe ninguém te convencer do contrário.”

Comfrey conseguiu emboçar um sorriso, mas logo fechou os olhos, abraçando Sam bem forte.

“Você deixou o violão lá.” Ela disse secando o choro.

“Pelo menos ganhamos roupas novas.”

Nenhum dos dois riu.


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