Quadras escrita por Alisson França


Capítulo 14
Piscina


Notas iniciais do capítulo

Você já ouviu falar em demisexualidade?
Kesha – Hymn



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Desde que ouviu a dica do irmão de Aleksei, Anna procurou fazer seu treino diário com mais afinco. Agora não mais treinava apenas para uma futura competição ou pela eletricidade que corria pelo seu corpo, mas porque deveria estar pronta para ajudar seu cluster quando fosse necessário. E depois do treino habitual, Anna foi para o seu banho. Adorava a sensação da água percorrendo o seu corpo que, apesar de magro, era extremamente definido pelos exercícios que praticava todos os dias a mais de ano.

A garota massageava os cabelos loiros com prazerosa calma, fincando os dedos como garras em seus tímidos cachos que iam até o ombro quando secos. A água quente lhe acalmava os nervos e a permitia pensar com clareza, Anna imaginou que o chá quente tinha o mesmo efeito nos outros, o que explicava tamanha avidez pela bebida. E para a sua própria surpresa durante seu transe particular proporcionado pelo banho ela se viu pensando em Danila.

Há quanto tempo eles se conheciam? Três meses? Talvez isso e mais uns dias e, ainda sim, o que ela sabia sobre o rapaz? Ele tinha vinte anos de idade, morava sozinho e frequentava a academia dos Korzh de segunda a sexta feira. Na verdade Anna se lembra de uma vez ter se perguntado de onde o Danila tirava dinheiro seu dinheiro, mas ela logo achou algo mais importante pra fazer na ocasião então simplesmente ignorou o assunto.

Diante da questão, Anna resolveu dar de ombros e seguir com sua rotina quase banal. Se secou, pôs uma roupa e desceu para a academia onde casualmente ajudaria um ou outro iniciante por ali. Geralmente quem fazia isso era seu tio Sergei, mas ultimamente ele tem passado mais tempo em seu escritório, o que fazia de Anna a encarregada de guiar as pessoas que estavam treinando. Entre uma dúvida e outra que ela sanou ela checava o celular. Havia uma mensagem de Danila. Essa cara tava perseguindo Anna?

Ele falava que estava ansioso para a sua próxima aula de auto defesa e Anna riu do fato de ele não ter pedido nenhuma explicação. Aparentemente Danila já estava se acostumando as repentinas escapadas que ela dava sempre que elas iam transar. A garota ficou encarando a tela do celular sem saber o que responder até que ouviu a voz de Comfrey.

“Porque não chama ele pra sair?”

A garota deu um pulinho de susto e logo olhou ao redor, mas aparentemente ninguém havia visto. Anna se permitiu riu do próprio susto e só então olhou para o garoto ao seu lado. Apesar de ter falado em tom um tanto jocoso, Comfrey parecia não exatamente cabisbaixo, mas no mínimo pensativo. Os dois se olharam nos olhos e Anna esboçou um sorriso.

“No que você anda pensando?”

Já era alta madrugada em Fallon, nos Estados Unidos e Comfrey estava com o jeans surrado dobrado até o joelho, seus calcanhares submersos na piscina balançavam devagar. Atrás do garoto um conjunto de dois andares com pequenos quartos, numa placa se lia “Owly Night Hotel”. Sem pensar muito no assunto, Anna pôs os pés de tênis e tudo na água fria.

“Está bem frio aqui, onde está a Sam?”

“Quarto 202. A gente resolveu deixar de dormir na caminhonete uns dias agora que ela ta ganhando um dinheiro tomando conta das crianças dos Moore.” Comfrey respondeu.

“Você não parece muito feliz por ter uma cama de verdade pra dormir.” Anna jogou um pouco de água pra cima com o pé direito.

Comfrey esboçou um sorriso de canto de boca, mas logo voltou a sua feição absorta “Eu não consegui dormir, tenho muita coisa na cabeça agora.” Ele fez uma pausa organizando as idéias na sua mente “Sabe, hoje mais cedo Sam e eu fomos a um bar local. A Sam foi jogar sinuca, mas eu preferi só ficar olhando. Daí uma mulher veio falar comigo.”

Visões vívidas do que Comfrey narrava brotavam na cabeça de Anna como uma lembrança. No tal bar, a mulher (que Comfrey certamente achou muito bonita) se aproximou dele com intenções tão claras que eles nem precisaram que Lune aparecesse magicamente. Um diálogo meio constrangedor se estabeleceu entre a mulher e o nômade até que ela avançou, de forma que ficasse com o rosto bem próximo do de Comfrey.

Quase que por instinto, ele recuou. O movimento surpreendeu tanto Comfrey quanto a mulher. Envergonhada, ela se desculpou e disse que não deduziu que Comfrey não gostava de garotas, o que o surpreendeu de igual forma. De fato Comfrey gostava e já sentiu desejos sexuais e românticos por mulheres antes, mas era algo tão raro.

“Eu gosto de garotas, quanto a isso eu não tenho dúvidas. Mas eu sinto que não gosto delas como o resto das pessoas gosta sabe?” Comfrey se sentiu finalmente confortável para falar “Eu lembro que eu gostava de uma menina no meu high schoool, mas eu não gostava de mais ninguém naquela escola. Não desse jeito pelo menos. Isso sempre me incomodou sabe? Parece que sei lá, eu sinto de forma errada. Como seu eu tivesse vindo com defeito.”

Os dois ficaram apenas encarando a água por alguns instantes até que algo estalou na mente de Anna “Eu acho que sei do que você ta falando, Comfrey. Você pode achar garotas bonitas, mas não sente vontade de transar com elas num primeiro momento. A amizade tem que vir antes não é?”

“Parece uma forma adequada de descrever.” Comfrey assentiu.

Anna sorriu por estarem conversando sobre um assunto que ela dominava “A sexualidade das pessoas é algo bastante complicado sabe? É normal a gente ficar confuso quanto a isso, não saber onde se encaixar. Eu mesma tive muitas noites assim, como a que você está tendo agora, antes de me identificar 100% como pansexual. Apesar de estar na sua cabeça, Comfrey, eu não posso te dizer qual é a sua sexualidade. Só quem pode fazer isso é você mesmo. Mas eu posso te dizer uma coisa: você não tem nenhum defeito e não tem nada de errado em sentir diferente das outras pessoas. Todos nós somos diferentes e individuais, e essa é exatamente a beleza do ser humano, sabe?”

Os dois se olharam e sorriram simultaneamente, primeiro de forma tímida, mas logo mostrando todos os dentes.

“Acho que já tenho a minha resposta.” Comfrey encostou as costas no chão sem tirar os pés da água.

“E qual seria?” Anna o seguiu.

“Eu não preciso de uma.”

Os dois sorriram largamente enquanto observavam as estrelas. Eles não fazem idéia de quanto tempo passaram ali, mas eventualmente, eles receberam um convite de Roberta.

(...)

Rafael Sales andava com dificuldade, ainda visivelmente fraco e abatido pelo tempo que passou com Lidia, tinha o braço esquerdo nas mãos da única irmã, Roberta. Os dois chegaram na esquina da tripla casa da família, mas pararam ao ouvir alguém os chamando baixinho de uma casa vizinha. Rafael e Roberta expressaram confusão ao ver a Dona Aldenir no portal da porta, mas eles logo foram invadidos por uma onda de felicidade ao verem, dentre as pernas da velinha, os pequenos João Baco e João Sergio com seus inconfundíveis cabelos ruivos.

Os meninos logo correram para os irmãos mais velhos, mas Aldenir os segurou pela gola das camisas e os puxou para dentro, entrando logo em seguida. Roberta guiou Rafael para dentro da casa no mesmo instante. Aldenir trancou a porta atrás deles e, finalmente, permitiu que os gêmeos corressem para abraçar os irmãos. Os quatro se abraçaram com força e Roberta sorriu e gargalhou como não fazia há muito tempo. Era bem verdade que seus irmãos a ignoravam completamente e a tratavam bem mal a maior parte do tempo, mas ela não conseguia não os amar. E, em momentos como esse, ficava claro que esse amor era recíproco, mesmo que se fizesse escondido.

Depois do abraço em grupo Roberta ajudou Rafael a se sentar numa poltrona, os gêmeos em seu colo. A fantasma se sentou no sofá junto de Dona Aldenir que logo se pôs a falar.

“Bom, você deve estar esperando uma explicação.”

Apesar de ela ter se referido a Roberta, Foi Rafael quem se queixou “Nem me fale!”

“Uma explicação seria mesmo bem vinda.” Roberta disse.

A garota olhou para os irmãos mais novos e depois inspecionou rapidamente o cômodo em que estava. A Dona Aldenir morava naquela casa desde que a Capitu (supostamente) traiu o Bentinho, e vendia bolos caseiros desde tal época, portanto, todos no bairro a conheciam. Apesar de nunca terem conversado nada além de uma rasa troca de palavras sempre que Roberta comprava algum bolo dela, a garota sentia um carinho especial vindo da velinha.

“Umas noites atrás eu ouvi o quebra quebra vindo da sua casa e corri para a janela. Assim que vi Sergio e Baco correndo, os chamei pra dentro e estou tomando conta deles desde então. Eles me disseram o que aconteceu, então fiquei esperando você chegar.”

“Fico muito agradecida, Dona Aldenir.” Roberta segurou as mãos da velinha.

“Tudo bem, filha. Eu posso imaginar como deve ter sido angustiante pra você não saber onde eles estavam.”

“Espera, o Miguel está em casa não é? Porque você não deixou os meninos com ele?” Rafael questionou.

“Deixar crianças praquele idiota tomar conta? Eu prefiro deixar eles com alguém que saiba o que está fazendo, como a Roberta aqui.”

Roberta riu feliz com o reconhecimento que acabara de receber e Rafael franziu os lábios, obrigado a concordar com Dona Aldenir. A conversa continuou entre os meninos e Aldenir, mas Roberta se recolheu nos próprios pensamentos. Era muito bom saber onde os irmãos estavam, melhor ainda ver eles juntos (com exceção de Miguel), mas ainda assim suas preocupações não cessavam, apenas trocavam de lugar. Miguel não fazia idéia do paradeiro do resto dos irmãos; Rafael não poderia ir ao hospital pois assim o Braz descobriria onde a mãe deles estava; e até quando a Dona Aldenir aceitaria tomar conta dos gêmeos? E será que ela aceitaria tomar conta também de Rafael? E seria justo com Miguel não contar pra ele onde os irmãos estavam?

Por outro lado, porém, Roberta poderia acabar com tudo isso, ela só precisava aceitar tomar a dívida do irmão para si. Dessa forma, Rafael poderia ir ao hospital de forma segura e ela não precisaria mais se preocupar com a mãe nem com o próprio Miguel, que só está vivo a essa altura para servir de isca para Roberta e os irmãos. Ela se lembra bem de Luis falar que havia alguém na casa deles apenas esperando sua chegada. Depois de organizar tudo em sua mente Roberta interrompeu o assunto.

“Senhora Aldenir.” Ela começou “Você se imporá se tomar conta do Rafael também? Eu preciso resolveu umas coisas com o Miguel e...” ela fez uma pausa não intencional “Eu posso resolver a situação, mas preciso de uns dias. Mas não se preocupe, eu com certeza irei te recompensar assim que puder!”

“Como assim, ficar aqui?” Rafael reclamou “Eu tenho que ir pra um hospital, olha pra mim.”

“Você não pode Rafael.” A garota foi seca e cirúrgica “Se for, eles vão descobrir onde a mamãe está.”

“Você já pensou em chamar a policia?” ele debochou enquanto os gêmeos olhavam para os dois como que acompanhando um jogo de ping pong.

“E de que lado você acha que a polícia está?” Roberta metralhou o irmão com os olhos.

Apesar de a Dona Aldenir ter ficado em duvida quanto a ficar mais tempo com os Sales em sua casa, naquele momento ela se convenceu de que Roberta estava no controle da situação.

“Tudo bem, filha.” Ela disse “Eu tomarei conta dos seus irmãos.”

A garota sorriu e agradeceu a nova amiga. Em seguida beijou os irmãos e foi em direção a sua casa, disposta a dar um jeito na ultima das preocupações. Enquanto andava rua abaixo ela olhou para Comfrey e Anna deitados na beira da piscina, não muito preocupada com os detalhes.

“Podem me ajudar aqui?” ela disse sem parar de andar e no mesmo instante os dois surgiram um de cada lado, os passos sincronizados.

“Estou feliz por você, Roberta. Eu estava com saudade deles também.” Comfrey acariciou o ombro de Roberta sorrindo.

“Melhor forma de terminar a noite.” Anna não pôde evitar de sorrir. Aquele sorriso característico de quando ela estava prestes a encarar um desafio que sabia que ia ganhar.

Os três chutaram a porta sem escrúpulos. Miguel veio correndo da cozinha junto de um cheiro de comida queimada, ele tinha as roupas sujas e parecia exausto. No sofá da sala um homem alto e forte sentava com os pés num criado mudo, o controle remoto na mão.

“Eu estava esperando por você.” Ele tentou soar ameaçador.

“Eu também!” Disseram Roberta, Anna e Comfrey em uníssono.

Naquele momento Anna se alimentou de tudo o que sentia (e o que não queria sentir) por Danila; Comfrey tomou a recém adquirida não resposta e a gentil euforia de não estar com defeito algum; e Roberta somou todas as preocupações que agora lentamente se dissipavam para serem substituídas por outras um pouco menores. Sentimentos acumulados e conflituosos que, no fim, foram finalmente extravasados. Sem muito esforço, o homem estava no chão. Miguel continuava no mesmo lugar tremendo de medo.

“Caralho Roberta, onde você tava. E o que raios acabou de acontecer?” ele exclamou confuso.

“Miguel, meu amor.” Roberta falava com sorriso não tão amigável assim “Eu assumi a sua dívida com o Braz.”

“Você o que?” ele exclamou ainda mais alto.

“Fique tranquilo que ninguém mais vai mexer com você, com a mamãe ou com alguns dos nossos irmãos. Aliás eles estão bem e estão num lugar seguro. Mas você e o seu dedo de Midas podre não vão chegar nem perto deles, okay? Você vai ficar bem onde está até que eu resolva a merda que você criou!”

Os três sensates riram juntos com a temporária vitória. Antes de ir tomar banho, porém, Roberta se dirigiu ao homem que gemia encolhido no chão tentando tampar o sangramento no nariz com as mãos.

“Você!” Ela exclamou “Volta pro buraco de onde você veio e avisa a Braz que eu to pronta pra Arena!”


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