Quadras escrita por Alisson França


Capítulo 10
Samovar


Notas iniciais do capítulo

A cada capítulo que eu escrevo eu fico mais triste por não ser parte de nenhum cluster :c
Romano – Immun



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/752494/chapter/10

Quando a reunião acabou Roberta se preparou para dormir e os outros três voltaram para suas vidas. Eram seis da noite em Nevada, nos Estados Unidos, e Sam estava sentada numa cadeira de praia armada perto da fogueira contando o dinheiro.

“Acho que vou sair essa noite pra conhecer a cidade. Quer vir comigo?”

“Não, eu to bem aqui.” Ele parou um instante “Na verdade, podemos passar na lavanderia, não é?”

Juntos, Comfrey e Sam reuniram todas as suas roupas num sacolão preto que carregaram se revezando em direção à cidade, não sem antes cobrir os seus pertences com o pano velho. A cidade em que eles estavam era chamada de Fallon e tinha pouco mais de oito mil habitantes. Uma cidade em que literalmente todo mundo se conhecia e que era possível chegar em qualquer lugar apenas andando, e foi isso que os dois fizeram.

Eles chegaram na lavanderia em apenas quinze minutos e, além dos dois, um velinho se debruçava sobre um jornal local enquanto esperava por suas roupas. Sam e Comfrey utilizaram duas máquinas para lavar tudo, levaria mais ou menos uma hora e meia.

“Pode ficar aí esperando as nossas roupas? Eu vou dar uma passada nos comércios daqui. Tem até um cinema, você viu?” Sam disse excitada

“Pode ir, eu tenho palavras cruzadas.”

“Tudo bem. Tchau tchau.”

A menina saiu andando depresssinha pelas ruas da pequena cidade de Fallon com uns trocados, deixando Comfrey sozinho com seu livretinho e as maquinas rodando suas roupas num redemoinho de limpeza. O garoto, porém, sabia muito bem que não estava sozinho. Pensava na reunião que tivera com o resto de seu cluster há poucos minutos. Uma dúvida lhe surgiu à mente e, sem perceber, começou a falar consigo mesmo “Como a gente conseguiu conversar sendo que falamos línguas diferentes?”

“A gente compartilha conhecimento, lembra? Assim a gente pode se entender mesmo falando línguas diferentes.” Anna surgiu sentada ao seu lado.

“Então que língua eu to falando agora?” Comfrey percebeu que o velinho que lia o jornal saltou os olhos até onde o menino estava sentado.

“Pela cara daquele velho, eu aposto que é russo.” Os dois sensates riram.

 “Então a gente fala três línguas agora?” Comfrey se viu andando ao lado de Anna pelas ruas de Moscou.

“É. E eu preciso contar isso pro Aleksei!” Anna disse animada.

“Seu melhor amigo.” Comfrey se lembrou.

“Uhum. Ele vai surtar quando souber que eu sou uma sensate!”

Assim que Anna e seu parceiro de cluster adentraram no clube de teatro eles fizeram silencio. Todas as luzes estavam apagadas, exceto a do palco, onde os estudantes (inclusive Aleksei) ensaiavam uma peça. No primeiro banco da platéia, o Sr. Lov assistia criticamente a performance, fazendo rápidas anotações em seu caderninho. A recém chegada se sentou num dos últimos bancos da platéia para que pudesse conversar com Comfrey.

“Aquele ali é o Aleksei.” a menina apontou para o rapaz loiro que gesticulava amplamente no palco.

“Você gosta bastante dele.” Comfrey falou baixo para não atrapalhar o ensaio, mesmo sabendo que ninguém ali o ouviria.

“Uhum! Nos conhecemos há três anos, numa apresentação aqui mesmo. Uma menina da academia vivia puxando assunto comigo e a gente trocava vários olhares, mas eu não sabia se ela estava afim de mim ou não, então quando eu fiquei sabendo que ela ia se apresentar aqui eu comprei um ingresso na mesma hora. É claro que eu poderia só ter perguntado, mas eu não tinha um total entendimento da minha sexualidade na época então eu era meia tímida por causa disso. Enfim, depois da peça  eu fui atrás da garota até o camarim.”

“E o que aconteceu depois?” Comfrey via imagens vívidas do que Anna estava narrando como se estivesse revisitando as próprias memórias.

“Bem, acabou que ela não gostava de meninas e me deu um fora. Eu me sentei no meio fio e me esforcei pra não chorar. Eu sinto vergonha alheia desse momento até hoje.” Ela riu.

“Sente mesmo.” Comfrey tinha autoridade para dizer afinal, sentia que era ele próprio chorando na calçada.

“Mas foi bom por um lado. Quando Aleksei me viu ali chorando ele foi me consolar sem nem pensar muito no assunto.” Anna suspirou “Eu o conheci uns dias depois que o irmão dele fugiu.”

“O sensate”

“Isso. Antes da primeira carta, nem Aleksei nem o Sr. Lov sabiam porque Makar havia fugido tão repentinamente.”

“E porque ele fugiu?”

“O Aleksei disse que um agente do BPO achou ele.”

Comfrey pensou sobre a tal organização do mal que Anna chamava de BPO. Porque eles caçavam sensates? E porque eles mantinham a existência deles em segredo? O menino resolveu evitar esses pensamentos “E a garota?”

“Ah, ela se mudou duas semanas depois. Fim da história.” Ela riu.

Durante toda a conversa, os cotovelos de Anna e Comfrey estavam juntos. Agora, focados na apresentação que acontecia a sua frente, seus dedos se entrelaçavam, quase que involuntariamente. Anna percebeu o movimento e olhou para Comfrey, que a encarou de volta. Os dois sorriram.

“Eu tô tão feliz que eu achei vocês.” Ela disse

Num gesto de carinho, Comfrey encostou a sua testa na de Anna e lhe deu um último sorriso antes de voltar as suas palavras cruzadas. A apresentação acabou e uma das alunas foi para trás do palco para acender as luzes todas. O Sr. Lov se sentou no canto do palco e os aprendizes se sentaram em meia lua ao seu redor, ouvindo a crítica do mestre acerca dos destaques positivos e negativos daquele dia. Então, já morrendo de fome, o Sr. Lov. dispensou os alunos e cumprimentou Anna com um abraço.

“Olá, minha flor! Vamos tomar um chá enquanto eu preparo o almoço, gostaria de vir?”

“Claro, Sr. Lov! Mas vai ter chá frio?”

“Você é uma desonra para a Rússia, menina!” O Sr. Lov brincou.

“Ei, chá gelado é gostoso!” Comfrey protestou

Anna riu do garoto aparecendo repentinamente ao seu lado “Chá gelado é ofensivo aqui na Rússia, Comfrey.”

“Com quem está falando, Anna?” Aleksei se aproximou deles.

“Já conto pra vocês.” A garota sorriu e seguiu pai e filho para o segundo andar, mas Comfrey a parou em um dos degraus.

“Espera, o Aleksei é hacker não é?”

“É sim, porque?”

“Você acha que ele pode achar um mapa pra Roberta? Ela não sabe andar pela Cova da Moura.”

“É uma ótima ideia! O que será que ela acha?” Anna mentalizou a garota portuguesa que conhecera a pouco na esperança de visitá-la sem esforço, mas não funcionou. “Ué, cadê ela?”

“Ela está aqui comigo.” Lune disse, e os quatro agora estavam em seu apartamento.

O jovem estava deitado na sua cama com as costas na cabeceira, Roberta se encontrava dormindo em seu colo. José em pé ao lado da cama completava o cenário.

“Ela não estava conseguindo relaxar lá em Portugal daí apareceu aqui.”

“Mais algum deles apareceu?” perguntou José reparando que o amigo não se dirigia a ele.

“Estamos todos aqui agora.” Lune disse.

“A que faz academia e o cara de Nevada também?” José então olhou pro nada e acenou, meio sem jeito “Olá.”

Anna e Comfrey o cumprimentaram mesmo sabendo que ele não os veria ou ouviria e se sentaram na cama, ao redor de Roberta, que ainda dormia. Anna não pôde deixar de ficar impressionada em como, da noite pro dia, ela se importava com aquelas pessoa e nem sabia o porquê.

“Ela está muito preocupada com os irmãos.” Comfrey acariciou a mão de Roberta.

“E está perdida. É horrível sentir o que ela está sentindo.” Lune olhos para os irmãos esperando uma confirmação, e eles logo fizeram que sim com a cabeça. De fato, sentiam a angustia de Roberta no seu âmago.

“Comfrey pensou numa forma de ajudá-la.” Anna começou “Aleksei pode arranjar um mapa da cidade e, além disso, consegue facilmente as plantas de todos os prédios de lá, e os seus registros também.”

“Assim a gente não vai conseguir se perder. Genial!”

“Você pode me dar um contexto pelo menos?” José não sabia nem o que fazer.

“Eu te explico tudo depois, Zé.” Disse Lune, indo pra Rússia com a maior facilidade.

“Como você chegou aqui?” Anna perguntou inconformada.

“Anna.” Lune pôs a mão no coração da irmã “Todo o universo está contido em você e você está contida em todo o universo em igual proporção. Quando entender isso, poderá ir pra qualquer lugar.”

“O que...?”

“Mas exercícios de respiração também ajudam.” Lune disse subindo as escadas.

“Panteísmo” Comfrey deu de ombros e seguiu Lune.

Assim como a casa do tio de Anna, a casa dos Lov era acima de sua fonte de renda, nesse caso o teatro. Ao contrário da casa dos Korzh, porém, ela era bem chique: tinha dois quartos, uma suíte, uma cozinha bem abastecida e uma TV grande na sala. Por um momento, Anna se perguntou se ainda dava tempo pra começar a atuar.

“Achei que não chegaria nunca.” Aleksei disse sentado a mesa, sem tirar os olho do celular.

“Aleksei, você pode me arranjar um mapa confiável de Amadora?” Anna se sentou de frente pra ele e segurou as suas mãos, o obrigando a largar o celular.

“Amadora? Aonde fica isso?” Aleksei olhou para  amiga desconfiado.

“Em Portugal. Pega o computador que eu te mostro.”

“Mas porque você quer um mapa desse lugar?”

“Aleksei, eu vou te contar uma coisa e você não fará perguntas, okay? Eu sou uma sensate, e uma das minhas irmãs de cluster está em perigo, nós precisamos de um mapa da Cova da Moura agora!”

Normalmente Aleksei não acreditaria naquilo, mas ele viu a seriedade nos olhos de Anna. Também o seu pai ficou imóvel a caminho da mesa com o samovar na mão. Pai e filho se entreolharam e rapidamente agiram. Sabiam mais do que ninguém como os sensates corriam perigo. Aleksei voltou do quarto com o notebook e o pôs na mesa, sentando ao lado de Anna. Comfrey e Lune estavam atrás dela, de olho na tela do computador.

Com agilidade nos dedos, Aleksei abriu um mapa de Amadora, em Portugal. Na altura em que o Sr. Lov. se sentou do outro lado de Anna pondo três xícaras de chá na mesa, Aleksei já havia achada o nome da principal construtora da região, o que era bem útil visto que a maioria das casas eram feitas pelos próprios moradores. Otimista com o rápido progresso, Lune tomou um gole do chá servido.

“Está uma delícia!” ele falou.

“Você tomando chá quente, Anna?” o Sr. Lov. se espantou.

“Esse é o Lune, aliás.” Disse Anna, deixando os dois homo sapiens da sala bem confusos. Ela olhou de novo para o quarto de Lune e tomou a mão de Roberta, ainda dormindo. “Vai ficar tudo bem. Nós vamos te ajudar.”

Anna, Comfrey e Lune abraçaram a irmã e ficaram ali apenas aproveitando o sentimento de segurança que passava por eles quatro.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Quadras" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.