Três dias e um quarto escrita por Yuki Max


Capítulo 7
Um quarto


Notas iniciais do capítulo

Oi, oi,

a música "Anchor", de Mindy Gledhill, é uma ótima pedida para este último capítulo!

Boa leitura,
espero que goste!



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Um quarto 


O que Hitoka Yachi mais amava no mundo, amava acima de qualquer outra coisa, mesmo aquelas que amava muito, como café, sorvete, dias de sol, jogos de vôlei decididos no quinto set e imagens bem diagramadas, era a sensação de estar em casa.  

Os pés descalços no piso frio, os lábios presos em pequeno sorriso, os ouvidos atentos ao jazz que escapulia pelo celular e ecoava pela cozinha em perfeita harmonia com os miados baixinhos da gatinha que enroscava-se em suas pernas para pedir pelo pouquinho de leite que acabara de despejar no café recém passado: Yachi amava, realmente amava, o quanto cada pedacinho daquele pequeno apartamento, cada mínima parte das oito paredes, das duas janelas, dos seis espelhinhos pendurados cá e lá e dos pelos branquinhos espalhados pelo chão de taco desgastado podia, ainda que naquele meio de primavera tão estranhamente gelado, manter-se quentinho e aconchegante como nenhum outro lugar no mundo inteiro jamais havia sido capaz de manter-se. 

Não era grande, verdadeiramente. Vinte e oito passos bem caprichados e o atravessaria por inteiro. Nem era nada demais. Três cômodos bastante modestos. Cozinha simples, banheiro sem janelas, quarto tão pequeno que a obrigara a trocar as grandes estantes de livros por prateleiras pregadas às paredes e montinhos aqui e ali. Na maior parte do tempo era até mesmo problemático. Azulejos antigos, piso riscado, mofo no cantinho da parede, mancha suspeita numa parede, rangido estranho num dos tacos debaixo da cama, uma fresta inencontrável que obrigava o aquecedor a trabalhar ao máximo apesar da inegável impossibilidade financeira da moradora: aquele apartamento não tinha, inegavelmente, nada de especial e, sem sombra de dúvidas, provavelmente arrancava de seus lábios mais reclamações que suspiros... Mas, ao mesmo tempo, aquele lugar tinha alguma coisa... 

... os quadros coloridos demais espalhados por todo canto, talvez...  

... ou o troféu de uma competição de design exposto no corredor de acesso aos cômodos...  

... a medalha do nacional de vôlei de anos atrás pendendo da parede branquinha da cozinha...  

... ou talvez a prateleira no centro do quarto que exibia fotos de caretas sorridentes que antes ficavam escondidinhas em álbuns... 

.... a desordem de pompons e brinquedinhos de gato dispersos por todo o chão...  

... ou a cortina de bolinhas de todas as cores que pendia ao lado do chuveiro...  

.... talvez o trio de canecas combinadas absolutamente horríveis constantemente sujas na pia... 

... Aquele apartamento tinha alguma coisa... 

Alguma coisa que o fazia, apesar da pequenez, da trivialidade e da quantidade de problemas que causava, o exato lugar no mundo que Hitoka Yachi queria estar. Alguma coisa que o fazia, do cheiro constante waffle no forno até a poeira no canto mais escondido da escrivaninha, um lar.  

E isto, exatamente isto, era o que Yachi mais desejava no mundo: estar em casa. Sua casa. Só sua. 

Não que houvesse sido fácil chegar até ela. Não foi. Realmente não. 

O caminho que a colocou atrás da porta branca de tinta descascada foi mais difícil do que ela, agora sentada na pequena mesa de canto com a gata no colo e o café-com-leite quentinho entre os dedos, podia um dia ter imaginado. E ela precisou, definitivamente precisou, de muito mais do que vinte e oito passos para atravessá-lo.  

O mais fácil de todos foi, surpreendentemente, o primeiro. E isso foi para ela o mais engraçado de tudo – mesmo que naquela altura ela não tivesse rido nem sequer um pouco – porque crescera ouvindo que o primeiro passo era sempre o mais difícil e que, depois dele, todos os outros o seguiriam como se o caminho se abrisse por inteiro.  

Era mentira. A maior de todas as mentiras que já ouvira. 

Talvez porque já soubesse exatamente qual ele deveria ser, talvez porque já o tivesse ultrapassado inúmeras vezes dentro da própria cabeça, mas, no fim, o primeiro passo foi o mais fácil de todos: 

terminar com a garota de olhos verdes e perfume de jasmim foi  

inacreditável fácil e leve 

Houve choro, sim. E promessas. E desculpas. E revolta. E gritos. E celulares arremessados do janela do quarto andar. E ameaças. E mandíbulas travadas. E carinhos estranhos. E palavras infundadas de consolo. Mas, no fim de tudo e apesar de tudo, havia tantas e tantas vezes repetido para si mesma ser forte o bastante para aguentar tudo o que viesse que, de alguma forma que não conseguia explicar, sentiu como se fosse sua obrigação permanecer inteira. E então permaneceu. Permaneceu absolutamente impassível. Porque era tudo o que conseguia fazer e porque era tudo o que ainda podia ser feito.  

De todas as lágrimas derramadas, nenhuma foi sua. Dos xingamentos desferidos, nenhum deixou os lábios seus. Dos soluços de revolta, nenhum estourou de seu peito. À Hitoka Yachi restou, ao fim dos dois anos e meio de namoro – ao fim das histórias bonitas contadas no bar sobre flertes em bibliotecas, ao fim dos choros deitados aos travesseiros e das marcas roxas escondidas por casacos – apenas algumas palavras de consolo sussurradas em voz baixa, um aperto doloroso na garganta, a necessidade de comprar um celular novo, duas malas com roupas, meia dúzia de caixas de livros e um silêncio desconfortável como surdez. Só. 

Só.  

Bem menos do que achou que sobraria, na verdade. 

Tão pouco, tão pouco...  

... tão pouco que mal pesou quando finalmente foi embora. 

Fácil como girar chave na fechadura.  

Fácil como nunca imaginou que seria.  

O difícil veio só depois disso...  

Só depois desse primeiro passo as coisas realmente começaram a ficar complicadas. Porque só depois de começar a caminhar e a devagarzinho se afastar, Hitoka Yachi percebeu que o que carregava, mesmo que pouco, não era tão leve quanto inicialmente pensou que fosse, e que esse pouquinho, mesmo que pouquinho, ficava mais pesado a cada novo passo.  

Foi pesado correr até Shouyou carregando tudo o que tinha. Foi pesado perceber que não mais queria muitas das poucas coisas que haviam restado. Foi pesado livrar-se de algumas delas. Foi pesado comprar um celular novo e foi pesado dizer que não queria recuperar o número antigo. Foi pesado viajar até Miyagi com a mala carregando apenas algumas sobras. Foi pesado encontrar a mãe e abraçá-la como há meses não abraçava. Foi pesado voltar à Tóquio. Foi pesado voltar à universidade. Foi pesado encontrar-se com os amigos de curso e pedir ajuda para salvar as disciplinas que ainda podiam ser salvas. Foi pesado começar a procurar por um novo estágio. Foi pesado voltar à biblioteca para estudar os conteúdos perdidos. Foi pesado cancelar os dois tickets de uma viagem marcada para dali três meses. Foi pesado buscar por um apartamento novo.  

Foi pesado... 

Mas não foi aí, ainda, que Yachi chorou.  

Não, não ainda!  

Conseguiu um trabalho novo. Tirou uma nota relativamente boa numa disciplina terrivelmente difícil. Vestiu uma saia que há meses não vestia. Encontrou um apartamento dentro de seu orçamento (mesmo que a mãe a tivesse ajudado um pouco com gastos iniciais). Reencontrou em mesas de bares alguns colegas que há alguns semestres não via.  

E em nenhum desses momentos chorou

O choro só veio – daqueles sofridos de culpa e vergonha – quando acordou na mesma cama do mesmo apartamento que há um mês e meio havia deixado, presa aos cobertores com cheiro de jasmim, o hálito fedendo a vodca, as pernas enroladas nas pernas que havia jurado de pé junto nunca mais dividir o mesmo caminho. 

E com o choro, como se misturadas ao sal das lágrimas, vieram as mais difíceis de todas as coisas. 

O pedido de reconciliação. A vergonha de não conseguir resistir a ele. O medo de ficar tão sozinha quanto na verdade já se sentia. O desespero de não ser boa o bastante nem para ir nem para ficar. O receio de ser pega nas mentiras que voltara a contar nas mesas dos bares. O nojo de acordar, dia após dia, nos mesmos lençóis com o mesmo cheiro jasmim. 

Dia após dia 

Dia após dia 

Até que, num dia desses, recebeu pela primeira vez em um bom tempo uma mensagem de um número desconhecido que assinava como “Kiyoko Shimizu”. 

Estaria mentindo se dissesse que não se abalou.... O susto foi tanto que, também pela primeira vez em um bom tempo, não dormiu nem despertou nos lençóis de jasmim. No lugar disso, ficou horas acordada, quase a noite toda, encarando as letrinhas na tela pequena. 

Segundo elas, Kiyoko sentia muito. E Yachi ficou um tempão pensando o que era o tanto que Kiyoko sentia antes de apagar a mensagem sem responder. Não estava pronta pra isso: era o que repetia para si mesma a cada vez que a mensagem já apagada vinha em sua memória.  

E não estava mesmo. Definitivamente não estava pronta para saber o que o outros sentiam – fosse muito ou pouco – quando tantas coisas ainda estava sentindo por si própria. Mas, mesmo não estando pronta, a vontade de saber um pouco mais ficou martelando no fundo da cabeça. E, então, sem perceber, as horas que normalmente perdia se culpando por dormir em lençóis de jasmim passaram a ser dedicadas a pensamentos infundados e ansiosos sobre os sentimentos de outras pessoas.  

Quando a segunda mensagem chegou, então, quase vinte dias depois da primeira, Yachi, mesmo que não inteiramente pronta, já estava mais pronta que antes.  

Já fazia um tempo, então, que tinha deixado de dormir nos lençóis jasmim e trocado as horas culpadas por noites dormidas nos lugares errados por horas/aula num curso novo de revisão de texto que ajudaria bastante em um possível futuro trabalho que poderia, talvez!, conseguir por recomendação do chefe do estágio.  

A mensagem era, dessa vez, um pouco maior do que um “sinto muito”, mas era, ainda assim, um pedido de desculpas. Segundo ela, o despertador de Kiyoko não havia despertado (ou havia, mas Kiyoko estava bêbada e o desligou) no dia que haviam combinado de encontrarem-se na cafeteria e por isso não havia ido. Havia tentado ligar – a mensagem dizia, com alguns pontos de exclamação – mas não havia sido atendida e só depois soube tudo o que tinha acontecido. Dizia, ainda, que sentia muito por tudo e por ter demorado a entrar em contato, mas que Hinata e Suga haviam-na impedido de aparecer antes e terminava, então, com um convite para um café e uma caretinha sorridente.  

Yachi pensou em aceitar o convite, de verdade que pensou, assim como pensou também em responder, desta vez... Mas estava tão terrivelmente ocupada com o curso novo, e com a faculdade, e com o estágio e com a busca frustrada por um outro novo apartamento que coubesse no seu orçamento e que fosse totalmente desconhecido pela garota de olhos verdes que conseguiu com sucesso fingir que ia responder enquanto adiava a resposta até que uma semana se passasse e ela decidisse que era vergonhoso responder depois de tanto tempo. Então, mesmo que mais longa e que capaz de roubar os pensamentos de Hitoka Yachi por uma semana inteira e um pouco mais, também a segunda mensagem de Kiyoko não recebeu resposta alguma.  

Não foi por mal, Yachi não estava brava nem nada. Sabia que Kiyoko falava a verdade ao dizer que não havia acordado e isso, por mais que fosse, sim!, um motivo para deixá-la chateada por um tempo, não era motivo para mantê-la chateada por mais de dois meses. Mas Yachi só percebeu que sua falta de resposta poderia ter soado como sinal de que estava com raiva quando Hinata levantou a possibilidade. 

“Eu não quero que ela seja minha muleta”, foi o que disse a ele, então, dias depois, enquanto dividiam atenção entre o jogo de vôlei na TV e a empolgação de Missô por ver o rosto de Kageyama dentro da tela, depois de algumas cervejas terem-na dado coragem. “Eu não quero pensar nisso de sair com pessoas agora. Não quero gostar de ninguém... Nem mesmo dela... E não quero passar tempo com ninguém... Nem mesmo com ela.” 

E por mais que tenha se arrependido, depois de sóbria, por ter sido tão sincera, sentiu-se aliviada ao finalmente perceber por que responder uma mensagem de Kiyoko parecia um trabalho tão além de suas forças. Sentiu-se poderosa pela primeira vez em tempos. Por estar tão no controle, por poder decidir qual o peso que queria ou não carregar naquele momento, por poder assumir que encontrar Kiyoko Shimizu era mais do que conseguiria aguentar. Por poder, também pela primeira vez, resolver não estender as pernas por um caminho que estava além do que o que queria cruzar. Já havia aprendido, afinal, como passos podiam ser pesados... 

A maior arrancadora de casquinhas do mundo resolveu,  

pela primeiríssima vez,  

deixar cicatrizar 

Mas talvez exatamente por estar tão desconfiada de passos e dos perigos enormes trazidos por eles, manteve-se alerta como quem espera por tragédias. Morreu de medo, as mãos suando e o coração disparado, esperando algo grande, algo que a faria correr assustada, algo planejado minuciosamente, algo que chegaria como um terremoto e arrancaria do chão seus pés.  

Não foi, contudo, nada disso o que aconteceu.  

Quando o que tanto tinha medo chegou, chegou devagar e silencioso como se nas pontinhas dos pés. Tão natural como se tivesse estado sempre ali (o que, talvez, nem fosse um pensamento tão errado assim). 

Era natural, afinal, que acabasse encontrando com Kiyoko, tinham os mesmos amigos, frequentavam lugares parecidos. Era natural que Shouyou sugerisse irem aos mesmos lugares. Era natural quererem todos os ex-alunos da Karasuno se reaproximar depois de terem-se reencontrado. Era natural que o clima estranho dos primeiros encontros se dissolvesse depois de um tempo. Era natural que, assim como era na época da escola, ela e Kiyoko sentassem lado a lado para conversar. Era natural que suas mãos parassem de suar de medo. Era natural que, conversando, percebessem o quanto ainda tinham para conversar. Era natural começarem a sair mesmo quando os outros não podiam estar juntos. Era natural que Kiyoko, há um pouco mais de tempo na cidade, a ajudasse a procurar por um apartamento. Era natural que Kiyoko tenha sido uma das únicas pessoas, mesmo dentre os amigos, a ouvir a história completa do término com a ex. Era natural que Kiyoko tenha sido, ao lado de Shouyou, a pessoa com que mais conversou sobre o que ainda a incomodava. Era natural irem ao cinema juntas, e combinarem cafés, e mandarem mensagens de manhã, e encontrarem-se. Era natural estar com Kiyoko. Era natural querer a atenção de Kiyoko. Era natural sentir-se feliz depois de estar com ela. Era natural querer vê-la no dia seguinte. E no dia depois daquele, e depois, e depois... 

... e depois... 

... e depois... 

... e de novo... 

... e de novo... 

Então, antes mesmo que pudesse perceber como aquilo tinha acontecido ou de onde exatamente tinha vindo, tinha as mãos de Kiyoko ao redor de sua cintura, suas próprias mãos enroscadas aos cabelos dela, as costas afundadas no pufe amarelo macio que ajudara Kiyoko a escolher um mês antes, a camiseta amassada num canto qualquer e os lábios tão juntos aos da garota que tanto evitara que não seria exagero pensar que não se soltariam nunca mais.  

E, céus, tudo o que Hitoka Yachi conseguia pensar era que aquilo era a coisa mais gostosa que já fizera na vida, que era a garota mais sortuda do mundo por poder deslizar os lábios pela pintinha no canto da boca de Kiyoko, que queria passar o resto dos seus dias sentindo as mãos de Kiyoko passearem por seu colo, que não deveria nunca mais na vida escovar os dentes para nunca mais perder aquele gosto incrível que ficara em sua língua, e que, inegavelmente, esses eram os pensamentos mais assustadores que já tivera em toda a sua curta vida e, portanto, era de extrema urgência que corresse desesperadamente para longe e não olhasse nunca mais para trás.   

Então ela correu. Porque se o amor com a ex, que chegara todo barulhento, era perigoso, aquele que chegara com Kiyoko, todo sorrateiro como se tivesse sempre lá estado e planejasse para sempre lá ficar, devia ser ainda pior!  

Se era medo?! Era sim! Era e ela sabia perfeitamente disso. Sabia perfeitamente que era medo, sabia perfeitamente que não tinha razão para ter medo, sabia perfeitamente que Kiyoko não era como a ex, sabia perfeitamente que estava sendo irracional e sabia perfeitamente que saber disso não fazia a menor diferença... Sabia que metade dos monstros dos quais tinha medo estavam dentro de sua própria cabeça, mas não podia deixar de alimentá-los e acarinhá-los com cuidado. Precisava ignorar as mensagens que recebia, precisava bater em retirada em desespero quando sabia que Kiyoko estava por perto, precisava arregalar os olhos assustada a cada vez que algum dos amigos a mencionava, precisava passar as madrugadas acordadas relembrando o gosto do beijo de Kiyoko. Precisava fingir indignação quando Sugawara propôs que reencontrasse a garota para acertar tudo, assim como precisava fingir estar brava quando Shouyou disse com todas as letras que estava se sabotando. 

... era só que, no fundo no fundo, tudo só era grande demais. Grande demais pensar na possibilidade de nunca ter esquecido seu amor adolescente mesmo em oito anos. Grande demais pensar que Kiyoko sabia tudo o que tinha passado. Grande demais pensar que Kiyoko pudesse rejeitá-la por ser um pouquinho quebrada. Grande demais pensar que Kiyoko podia gostar dela do jeito que ela era e querer outras tantas vezes arrancar sua blusa e prensá-la num pufe amarelo. 

Daí ela só tentou continuar como se nada disso fosse um problema.  

Continuou ignorando as mensagens. Alugou um apartamento novo. Adotou uma gatinha. Conseguiu um emprego (mesmo que não aquele que queria). Gastou mais do que devia numa cortina de bolinhas. Encheu o refrigerador de sorvete e waffle. Sonhou acordada tantas vezes quanto dormindo com o que aconteceria se, ao invés de fugir, tivesse ficado, enquanto incansavelmente repetia para si mesma todos os dias que seguira em frente sem arrependimentos.... 

... estava enganada, claro, terrivelmente enganada.  

Na realidade, não fez nada além de correr em círculos, espalhando rastros e largando portas escancaradas 

não respondia nenhuma mensagem, mas enviava várias, aleatórias e bobas, a cada vez que uma gota de álcool tocava seus lábios 

não aceitou a ajuda oferecida quando mudou-se, resmungando a si mesma que não queria que ela soubesse seu endereço, mas não hesitou momento algum antes de mudar-se para o apartamento que o melhor amigo dela deixara para trás ao mudar-se para a casa do noivo 

não contou a ela sobre a gatinha adotada, mas não pensou duas vezes ao escolher a gatinha com uma pintinha bonitinha ao lado da boquinha 

Então, no fim, é claro que numa dessas corridas inúteis em círculos,  

uma hora Kiyoko resolveu correr consigo 

E dessa vez, dessa terceira vez que Kiyoko Shimizu apareceu em sua vida como se contraditoriamente nunca tivesse dela saído, Hitoka Yachi estava pronta. Não havia mais ex, não havia mais receio, nem relutância... havia – e isso ela não negaria – ainda um pouquinho de medo, mas não o bastante para impedi-la de afundar os dedos nos cabelos negros e beijar o canto do sorriso complacente irritantemente lindo da garota que irritantemente roubava pela terceira vez em sua curta vida o seu coração... 

... o que, de alguma forma, tornava a história muito engraçada quando contada em meio a sorrisos em mesas de bares: a cartomante, no fim das contas, assim como inicialmente suspeitara ao encontrar o anúncio amarelo-gema berrante horrivelmente mal diagramado, era, indiscutivelmente,  

uma perigosa ladra de órgãos,  

uma predadora incansável,  

reincidente,  

que sem piedade alguma roubou seu coração.  

ainda que metaforicamente 

Um riso divertido escapou baixinho pelos lábios de Yachi e foi impossível evitar um remexido envergonhado na cadeira ao lembrar-se de tudo o que acontecera nos últimos meses. Um atento olhar felino fixou-se em seu rosto, questionador, e não foi difícil à inquieta garota entender que a pequena gatinha em seu colo não havia gostado nem um pouco de ter sido incomodada em seu trabalho de vigiar o café-com-leite ainda cheio – mas já frio, infelizmente – em suas mãos e receber o carinho que distraidamente entregava em suas orelhinhas pretas. 

Devolveu o olhar da gatinha antes de piscar demorado para ela, sorrindo quando os dois olhos azuis piscaram de volta, preguiçosamente.  

— Mochi, ela vem hoje pela primeira vez... aqui!... O que que eu faço? – sussurrou baixinho, o sorriso morrendo em uma careta de ansiedade e preocupação – Será que ela vai perceber que passei o produto de limpeza errado no chão?! Três vezes? Será que vai pensar que o apartamento era muito mais legal quando o Suga morava aqui? Será que vai gostar da comida daquele restaurante chinês? Ou será que vai pensar que sou muito preguiçosa por não cozinhar? Será que vai pensar que estamos indo rápido demais? Será que vai olhar pra mim e perceber que na verdade não era bem isso o que queria? – Mochi permanecia em silêncio, atentamente olhando para o rosto da dona, os olhinhos azuis piscando demorado outra vez – Mochi, o que vou fazer? Aquela roupa ficou boa, não ficou? Meu deus, eu acho que não tenho cara pra vestir aquela lingerie vermelha! É melhor tomar outro banho, né?! – um miado baixinho escapou da gatinha quando Yachi afundou o rosto em seu pescoço branquinho – Será que ela vai pensar que sou louca se eu cancelar tudo agora?! Vai, né?! E acho que tô ficando louca mesmo... O que eu faço, Mochi?! 

Um novo miado baixinho e um par de patinhas fofinhas obrigaram Yachi a afastar-se o bastante para fitar com atenção o focinho da gata, e, enquanto as patinhas afundavam-se em suas bochechas na tentativa de afastá-la, Yachi só conseguiu pensar em como nem mesmo a gata conseguia aguentar mais de seus resmungos medrosos sobre a novo passo que estava prestes a tomar. 

Não era como se fosse grandíssima coisa.  

Depois de quase três meses de relutâncias e fugas, ela e Kiyoko estavam finalmente saindo há algum tempo. E nesse tempo, já haviam trocado consideravelmente mais do que os beijos envergonhados que trocavam no início. E nem era como se fosse virgem. E, de toda forma, se não tivera vergonha de chorar copiosamente no colo dela, ou de ignorar mensagens dela, ou de deixar-se apalpar num banheiro de bar mesmo vestindo a terrivelmente mais horrível combinação de calcinha colorida de ursinhos e sutiã rosa-bebê rasgadinho na renda, definitivamente não devia sentir vergonha alguma por convidar a garota para passar a noite em seu apartamento. 

Não! Agora não era a hora para entregar-se a lamentos. Os dois colarzinhos combinados já estavam embrulhadinhos no papel de presente mais bonito que já vira. As rosas amarelas tão bonitas já estavam num vasinho de água improvisado no quarto. O vestidinho preto bonitinho já estava separado na cama ao lado da lingerie vermelha. A garrafa de vinho que Oikawa prometera ser muito gostoso já estava gelando. O relógio já estava marcado para despertar às exatas cinco horas e quarenta e cinco minutos – exatos quinze minutos antes do horário marcado para a chegada de Kiyoko – para que o perfume fosse passado no tempo exato para recebê-la. 

Não era hora, definitivamente não, para perder-se em pensamentos e inseguranças.      

Era hora de comer alguma coisinha junto com o café-com-leite já frio. Era hora de alimentar Mochi. Era hora de passar o aspirador pela casa mais uma vez. Era hora de ligar para Shouyou para confirmar pela enésima vez que o vestido preto era mesmo bonito. Hora de entrar no banho. Hora de experimentar alguns penteados antes de decidir por uma trança clássica. Hora de se desesperar porque o vestido ficara mais bonito quando o experimentara na loja. Hora de correr desesperada para desligar o despertador. Hora de sentar-se rigidamente na mesa da cozinha para esperar pelo momento que a campainha tocasse. 

E hora de sentir o coração – aquele que jurava ter sido completamente roubado – ir à boca ao abrir a porta e encontrar, parada, alguns minutinhos adiantada, Kiyoko Shimizu com um sorrisinho tímido nos lábios. 

Hora de resmungar um 

— Oi, é pequenininho, mas se sinta em casa... 

hora de roubar um pouquinho do batom alaranjado de Kiyoko enquanto a assistia olhar com carinho para a medalha pendurada na cozinha 

— Ficou perfeito, Hitoka! 

E, inegavelmente, hora de roubar para si o coração daquela garota que tão graciosamente roubara o seu: 

— Ficou legal, né?! Enfim... Só tem um quarto, espero que não se importe... 

— Um quarto é perfeito, Hitoka! Sério, um quarto é perfeito... 









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Notas finais do capítulo

Olá, olá,

primeiro de tudo: Obrigada, do fundo do meu coração, por ter lido esta história até o fim.
De um jeito bem egoísta, confesso que a ideia de que você só terminou de ler essa história porque, por consequência, eu, antes disso, terminei de escrever, me deixar com bastante orgulho de mim mesma! Hahahhahahahaha... Mesmo!
Ela foi bastante doída de escrever, afinal. E eu fico feliz tão feliz por ter terminado que espero que, no fim, ao terminar de ler, você também tenha um sorriso bem grandão e bem felizão no rosto.
Espero que tenha se divertido, e espero que, assim como fez comigo, essa história tenha mexido nem que um pouquinho com você!

Enfim... Obrigada por ler!
Se gostou, me deixe saber! =)
Eu sei que deixei um monte de pontas soltas (principalmente em relação a outras histórias que aparecem aqui e que não são da Kiyoko e da Yachi), mas isso foi de propósito: eu pretendo escrever uma KageHina e uma OiSuga (com DaiSuga e IwaOi) relacionadas a acontecimentos de "Três dias e um quarto". Quando eu fizer isso, me fará muito feliz se você também ler! =D

Obrigada!!!
Beijo, beijo, =*
(e até uma próxima, quem sabe?!)
Yuki



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