Três dias e um quarto escrita por Yuki Max


Capítulo 5
Dia 3 e meio – Nostalgia, relógio e inesperada visita esperada


Notas iniciais do capítulo

Olá olá!

tudo bem?
Obrigada por estar lendo a história! ♥
Eu não costumo indicar muitas músicas para historias, mas nesse capítulo seria muito legal se você ouvisse "We can't be friends" da Lorene Scafaria! Sério, prometo! =)

Espero que goste do capítulo! Sei que está meio longo, então espero que não esteja cansativo!

Boa leitura,
=*



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Dia 3 e meio – Nostalgia, relógio e inesperada visita esperada 


 

O que Hitoka Yachi mais odiava no mundo, odiava acima de qualquer coisa – exceto, talvez, o sentimento de que não fizera o bastante quando mais poderia ter feito, a certeza de que não tinha absoluto controle sobre sua vida e o reconhecimento da própria imaginação como centro gerador de caos – era a inexorável incapacidade que tinha de deixar de criar expectativas, mesmo que perfeitamente reconhecesse o quão perigosas elas poderiam ser. 

O sorriso sem-fôlego preso no cantinho dos lábios em mordida suave, o dedo indicador correndo inquieto pela borda da caneca de cerveja já quase vazia, os olhos abertos enormes devorando expectantes cada mínimo movimento da garota sentada a seu lado: Yachi odiava, realmente odiava, o quanto nada podia fazer para impedir o perigoso rumo que seus desejos tomavam naquele novo dia que há pouco infiltrara-se sorrateiro para dentro de seu relógio de pulso enquanto, num pequeno e aconchegante pub no centro velho de Tóquio, empurrava gole de cerveja atrás de gole de cerveja por sua garganta seca. 

Já estava embriagada, não muito, mas estava. As canecas vazias marcadas com seu batom, o corpo leve, os sorrisos perdidos, as bochechas excessivamente coradas e o balance suave de seu corpo a cada gesto não a deixariam negar nem mesmo se quisesse.   

E ela não queria.  

Não naquele momento, ao menos. 

O coração ora sincronizando com a música baixinha que ao fundo soava, ora sustendo-se surpreso com algum movimento repentino de Kiyoko, ora disparando como louco em expectativa; os olhos ora semicerrando em risos enormes, ora fechando-se embalados pela meia-luz, ora abrindo-se enormes em expectação: as sensações que junto ao álcool aconchegavam-se em si eram tão confortáveis que ela não conseguiria, nem se muito tentasse, convencer-se que beber em plena recém-caída madrugada de quinta-feira era errado.  

Por mais que, inegavelmente, certo talvez também não fosse. 

Não podia ser, não é? 

Tantas luzes, tantos copos sobre a mesa pequena, tantos sorrisos bobos, tantas conversas sem ritmo e aquela sensação de que só seria necessário um pouquinho mais, só um pouquinho mais... pouquinho... bem pouquinho... um empurrãozinho de nada... 

Não, certo definitivamente não era! 

Não era não! 

Mas ainda assim escorregou mais um gole de cerveja por sua garganta, o gelado ressoando da ponta de sua língua até o fim de seu estômago, a música baixinha arrancando de seus olhos uma longa piscada e de seus lábios um sorriso meio bobo.  

Talvez... Talvez... 

...talvez... 

Talvez um pouquinho mais embriagada gostaria de estar, nem que bem pouquinho a mais, nem que apenas mais um gole. Nada de mais. Apenas mais um pouco, apenas o bastante para que não se sentisse tão contraditoriamente envergonhada e depravada a cada vez que seu corpo involuntariamente se inclinasse na direção de Kiyoko Shimizu. Só o bastante para que suas bochechas não corassem ardidas a cada vez que sua pele arrepiasse em contato com a dela. E só o bastante para que pudesse olhá-la nos olhos e assumir, sem receio ou hesitação alguma, querer fazer com ela todas as coisas que, por mais que parecessem tão incrivelmente erradas, queria fazer. 

Queria.  

Queria muito! Desesperadamente 

Queria que Kiyoko a tocasse mais. Forte 

Que a beijasse. Bem devagar 

Queria com as mãos ouvir a música suave ecoando pelo corpo dela.   

Queria tanto, tanto, tanto, tanto! que doía.  

Queria que Kiyoko a abraçasse tão firme quanto abraçara ao entrarem no pub, queria que corresse os dedos por seus fios como fizera ao retrançar seus cabelos no parque, queria que escorregasse as mãos por seu rosto como fizera durante a manhã ao limpá-la das migalhas do croissant... e queria, acima de qualquer um desses já conhecidos toques, que Kiyoko a tocasse como em nenhum momento daquele dia a havia tocado. Queria sentir o gosto da bebida adocicada que ela bebia. Queria sentir os dedos que buscavam quando em vez pelos seus debaixo da mesa apertarem-na de um jeito que faria todos naquele pub corarem. Queria abafar em sua pele os arquejos dela. Queria que os dentes dela cravassem-se impudicos em seus lábios. Queria senti-la perto, tão perto que nem mais saberia o que sentir. 

Mas aquilo não era algo que devesse querer. Não com Kiyoko. Não com a cartomante que supostamente deveria reatar seu amor. Não com a paixão colegial há muito deixada pra trás. Não com a amiga que tão gentilmente arrastara sua tristeza para um bar. Não com a ex-colega de time que com o coração tão complacente tentava fazê-la sentir-se melhor. Não com a mulher que, mesmo contra seus desejos, provavelmente não gostaria de fazer nada daquilo nem com ela nem com qualquer outra mulher alguma. 

Definitivamente não devia beber ainda mais! 

Pousou com força a caneca na mesa, o barulho ecoando alto através do pequeno pub, e direcionou os olhos para qualquer lugar, absolutamente qualquer lugar, que não a garota sentada a seu lado.  

O sininho pequeno pendurado à entrada do pub. As garrafas enfileiradas tão bonitas atrás do balcão. O caixa cheio de adesivos coloridos tão vívidos. O barman gracejando o copo de alguma bebida amarela. A velha caixa de música encostada à um canto. Os quadros com posters de artistas. Os cinco rostos tão sorridentes ao redor da mesa cheia de canecas de cerveja.  

O amargo do mais recente gole de cerveja prendeu-se à sua língua com força: culpa. Shouyou, Nishinoya, Asahi, Sawamura e Sugawara ali, com sorrisos enormes e ela, ali, com olhos presos ao sininho da entrada do pub, ridiculamente tentando impedir-se de fazer o pouquinho mais que faltava para que a garota a seu lado deixasse de ser apenas uma garota a seu lado. 

Com a mesma rapidez com que a culpa infiltrou-se em sua língua, contudo, também um sorriso inundou seus lábios. E antes mesmo que mais pudesse pensar sobre não prestar devida atenção aos amigos tinha os olhos fixos, enormes e curiosos, neles.  

Aparentemente, Shouyou havia achado que seria boa ideia trocar seu copo de alguma-bebida-doce-e-colorida pelo copo de suco de Asahi. E Asahi, por sua vez, aparentemente achara que seria boa ideia dar uma chance à bebida mesmo depois de ter percebido o engano, enquanto, ao lado dele, Nishinoya também, provavelmente, achara ser boa ideia pedir por outra bebida doce-e-colorida e oferecê-la a Asahi. E depois outra. E ainda outra. E outra. Até que, de alguma forma, em algum momento durante o tempo que Yachi havia passado empurrando pra debaixo da pele a vontade que tinha de arrastar Kiyoko até um dos boxs do banheiro pequenininho, eles perceberam que nenhuma daquelas ideias haviam sido assim tão boas.  

— Eu não devia ter bebido aquilo! Não quero mais! Por que eu bebi? Por que ninguém me impediu? 

Yachi tentou segurar, verdadeiramente tentou, repetindo a si mesma que rir de Asahi não era a melhor forma de se redimir por nem sequer ter percebido que devia tê-lo impedido de beber. Quando, contudo, no fim do lamento, os olhos castanhos contraditoriamente chorosos e intimidadores prenderam-se num misto de desespero e incredulidade no rapaz pequeno a novamente substituir a bebida doce-e-colorida recentemente esvaziada por outra cheia, Yachi não pode fazer nada para evitar que um riso sonoro escapasse de sua garganta.  

Adorava Asahi. Adorava todos ali, na verdade, mas Asahi estava em um nível totalmente diferente. Talvez exatamente porque tanto medo tivesse dele no começo. Talvez porque, no fim, havia sido em seu colo que ele chorara despedidas tristes após a formatura na Karasuno. Ou talvez porque, no fundo, ele ainda continuava o mesmo bebê chorão adorável de sempre.  

Olhou-o atentamente, ainda sorrindo pelo bico que tão estranho parecia no rosto tão maduro. 

Ele não mudara muito durante os três anos que não o vira: os cabelos continuavam longos, talvez até mesmo maiores que antes, a barbicha ainda estava lá e os traços mantinham o mesmo misto de intimidação e gentileza que tantos mal-entendidos haviam gerado quando estudavam juntos. A presença, doce e confortável, também era a mesma, assim como eram o tom educado como uma reverência e o sorriso suave de dentes escondidos. Havia, contudo – e ela não precisava se esforçar muito para perceber – algo de profundamente diferente nele, algo que não a deixava nem que por um instante contestar a passagem do tempo.  

Talvez fosse a segurança com a qual ele antes havia segurado o copo de bebida colorida-e-doce. Talvez fossem as visíveis olheiras de cansaço debaixo dos olhos gentis. Talvez fosse a forma quase descuidada como Nishinoya Yuu debruçava-se sobre ele. Talvez fosse tudo ao mesmo tempo. Asahi parecia, inegavelmente, muito mais maduro do que parecia quando arrastava-se curvado pelos corredores da escola, bebendo suco pelo canudo e escondendo-se no armário de limpeza junto ao pequeno líbero para beijarem-se longe dos olhos do restante do time. 

Ah, sim! Ela lembrava-se com perfeição dessa parte dos seus dias escolares. Meses e meses durante os quais o assunto romance pairou quase como tabu nas quadras de vôlei da Karasuno. Não que pudesse dizer que muito se surpreendera ao flagrá-los juntos – mesmo naquela época, Nishinoya e Asahi pareciam certos juntos – mas, sem dúvidas, não podia dizer que sua pequena eu do 1º ano colegial não ficara um pouco abalada ao encontrar lábios tão juntos e corpos encaixados quase como peças de quebra-cabeça no espaço tão apertado do armário de limpeza. Ficara chocada, sem dúvidas. Agora, contudo, assistindo a forma quase angelical como Nishinoya acarinhava os cabelos de Asahi em um consolo pelo suposto exagero na bebida, sentia-se quase nostálgica. 

— Foram só três copos, Asahi! Que exagero! 

A voz de Sugawara Koushi ecoou ríspida pela mesa e Yachi nada pôde fazer além de rir pelo tom meio repreensão meio indignação do antigo levantador da Karasuno.  

Mesmo que a pouca luz e o ângulo não a permitissem ver com perfeição o rapaz a apenas uma cadeira de distância da sua, Yachi não tinha dúvidas de que, de todos os presentes ali, era ele, Suga, quem mais havia mudado. Não era de todo uma surpresa, contudo. Sugawara Koushi, por mais diferente que estivesse, no fundo parecia apenas ter se tornado tudo o que já prometia ser quando mais novo, como se tudo nele – todas as qualidades, todas as nuances, todos os defeitos, todos os traços e trejeitos – tivesse tão perfeita e plenamente florescido que quase não se deixava acreditar. Tanto, que ela, mesmo que desde sempre soubesse o quão intenso, decidido e quase selvagem ele era, não pôde fazer nada que não encarar de olhos arregalados a postura tão ereta, o nariz tão empinado e beleza tão indiscutivelmente estonteante. Koushi havia se tornado tão imponente quanto desde jovem prometia ser, e isso, mesmo que surpresa não fosse, não deixava de ser surpreendente.  

Apesar disso, apesar do quão indiscutivelmente forte ele parecesse, a aura maternal que reluzia nos olhos cor de chocolate-quente enquanto eles corriam de um rosto a outro se mantinha tão intensa que Yachi, no fundo, quase ria ao pensar que havia coisas que nunca mudariam. 

— E vocês não deviam ter deixado ele beber tanto, Noya, Hinata! 

— Asahi-san é fraco pra bebidas, é engraçado! Uma vez ele começou a cantar e da- 

— Yuu! 

O apelido e a voz chorosa seguidos de uma risada gostosa e alta: a cena era tão familiar que Yachi sentiu-se obrigada a procurar por algo em Nishinoya que não fosse igualzinho ao que era quando estavam juntos na escola.  

Não havia nada.  

Nishinoya era, incrivelmente, o mesmo de antes. E mesmo o que era diferente – como a piscadela charmosa que ele lançou a Asahi e o cabelo curtinho bagunçado uniformemente na mesma cor – vestia-o tão bem que ela mal podia dizer que havia de fato uma diferença. Talvez fosse a aura perfeitamente autêntica e natural que desde sempre ele emanava, mas Nishinoya Yuu era Nishinoya Yuu e ponto final. Era antes e ainda agora era. 

— Não dê bebida pra ele se sabe que ele vai ficar assim, então, Nishonoya! E você – o dedo em riste do antigo capitão apontou diretamente para o rosto do ex-às – não se deixe enganar por esses dois tão fácil! Até parece que não conhece eles! 

Azumane se encolheu na cadeira quando a voz dura e grave de Sawamura Daichi irrompeu ao seu lado e, enquanto os outros na mesa riam das desculpas do antigo-às ao antigo capitão, Yachi o encarou em confusão. 

Sawamura havia crescido, sem dúvidas. Talvez, de todos ali, era quem mais havia mudado fisicamente. Estava maior e definitivamente mais musculoso, e, talvez exatamente por isso, parecia ainda mais com um líder. Ou talvez fosse a camisa social e a gravata. Ou talvez o cabelo minuciosamente penteado para trás, preso pelo gel. Ou talvez o terno pendurado na cadeira de maneira impecável. Ou talvez a voz grave e sensata ao mesmo tempo em que calma e confiante. Havia, contudo, alguma coisa no rosto dele, talvez as olheiras e os olhos a constantemente fixarem-se em Sugawara, que tornavam-no, apesar das evidentes mudanças físicas, extremamente parecido com o garoto que era no fim do terceiro ano do colegial.  

Yachi sabia que Sugawara e Sawamura não haviam estado juntos durante o colégio. Ainda que outros do time tenham ficado juntos após o período escolar (como seus dois melhores amigos), os únicos que estavam efetivamente em um relacionamento nos tempos da Karasuno eram Nishinoya e Asahi. Mas Yachi era observadora e esperta o bastante para ter certeza de que Sugawara havia se declarado para Sawamura pouco antes da formatura e, de alguma forma, mesmo embriagada e sem nenhum argumento a seu favor, tinha quase certeza de que, agora, o ex-capitão tinha no rosto a mesma expressão indecisa e receosa que tinha naquela época, como se estivesse preso a alguma decisão difícil.  

Torceu os lábios, confusa.  

Sentiu vontade de se inclinar em direção à Kiyoko e perguntar se os dois estavam juntos – mesmo que pensasse ser um pouco bobo perguntar isso vendo-os sentados lado a lado em clima tão amigável – mas, ao mesmo tempo, tinha medo do que sentiria se aproximasse-se de Kiyoko e outra vez deixasse a pele dela tocar a sua. 

— Não tem problema, gente! – a voz de Shouyou soou alta, interrompendo as desculpas que Asahi ainda entregava a Sawamura – É pra isso que a gente veio aqui, não é?! Pra beber! Pra beber! 

Shouyou desviou os olhos até um garçom e, timidamente, pediu por outras duas bebidas: uma caneca de cerveja e outra bebida doce-e-colorida que, Yachi tinha certeza, seria dada a Asahi como se nos últimos cinco minutos aquele não tivesse sido um motivo de discussão. Todos ali teriam brigado com ele por isso, absolutamente. Sawamura diria que ele nunca ouvia nada e sempre agia por impulso. Nishinoya fingiria repreendê-lo enquanto sorria divertido. Asahi lamentaria choroso. Sugawara tomaria majestosamente a bebida para si e diria resolver aquilo por eles. Naquele momento, contudo, ninguém pareceu perceber o que Shouyou aprontava. Todos os olhos, para infelicidade de Yachi, estavam presos demais em seu rosto para perceberem as travessuras de seu pequeno sol particular. 

Bom... Não era como se ela não estivesse esperando por aquilo.  Não precisava ser lembrada disso, afinal, para saber que todos estavam ali por causa dela, que todas aquelas canecas de cerveja e copos com resquícios de arco-íris haviam sido esvaziados em sua homenagem. Mas, verdadeiramente, no fundo havia acreditado que poderia fingir não saber disso por toda a noite. 

Memórias dos tempos do colégio. Problemas no trabalho. Prazos insanos da faculdade. A quase impossibilidade de alinhar a especialização com as horas passadas no trabalho. A loja de conveniência com promoção de salgadinhos. Jogos de vôlei do último mundial. A habilidade de Tanaka de gastar o salário em menos de duas semanas com alguma bobagem estranha. O intercâmbio que Tsukishima tinha conseguido no mês anterior. As fotos de Kageyama em uma revista de moda (e todos os necessários risos embriagados e piadinhas sobre isso). O clima das conversas estava tão leve que Yachi tinha se dado ao luxo de pensar que em momento algum falariam sobre o que os havia colocado juntos naquela mesa de bar numa quinta-feira: o término de seu namoro. E, durante três horas, a absoluta ausência de perguntas sobre o assunto e a fuga de qualquer conversa que envolvesse relacionamentos amorosos a haviam feito crer que realmente daria certo ignorar tudo. Que eles estariam ali só para os risos, só para a companhia doce e só para as piadinhas bobas. Só para o que queria compartilhar com eles, portanto.  

Não era como se não confiasse neles, contudo, ou como se não estivesse pronta para falar. A partir do momento em que os viu sentados esperando por ela com canecas de cerveja nas mãos, Yachi sabia que em algum momento falaria e esteve, durante todo o tempo, se preparando para isso: repetindo as mesmas mentiras bobas na cabeça, escolhendo as verdades mais convenientes, elegendo o meio-termo que a deixaria menos desconfortável e mancharia menos a memória do encontro com os amigos.  

Tudo parecia agora, entretanto, perdido.  

Quando cinco pares de olhos voltaram-se para seu rosto, tão gentis e compreensivos, tudo o que Yachi conseguiu pensar foi que, sem sombra de dúvidas, podia confiar neles para contar qualquer coisa, e que, exatamente por poder tudo contar, melhor seria nada dizer. 

Parecia uma contradição, ela sabia, poder dizer tudo e ao mesmo tempo nada dever dizer.  

Não era.  

A lógica era tão clara que nem mesmo canecas de cerveja poderiam turvar: se estavam eles dispostos a desviarem-se de seus caminhos apesar do trabalho, das aulas e do treino do dia seguinte, de sentarem-se com ela em uma mesa de bar em plena quinta-feira, de até mesmo não pressionarem-na por respostas, se estavam eles dispostos a tanto, o que ela, Yachi, menos queria, era força-los a fazer mais. Queria que tudo continuasse leve como estava. Queria que as sobrancelhas nos rostos tão queridos continuassem relaxadas e que os lábios que tantas palavras de conforto provavelmente ofereceriam se ocupassem apenas com sorrisos. 

Mesmo que estivesse pronta para falar, não estava pronta para fazê-los ouvir. E isso era coisa que ela não podia ignorar.  

— Eu estou pensando em me mudar, sabe?! 

As palavras escaparam tão baixinhas e incertas de sua boca que até mesmo Hitoka duvidou tê-las dito. Os seis pares de olhos a piscarem confusos foram prova o bastante, contudo, para perceber que fora ouvida.  

Encolheu na cadeira, envergonhada.  

Que tipo de declaração sem propósito era aquela? Devia ter dedurado a bebida que Shouyou havia colocado na frente de Asahi. Devia ter desviado o assunto para os olhares furtivos que Sawamura dava para Sugawara. Devia ter provocado Nishinoya com alguma piadinha barata sobre ele não ficar “alto” com toda aquela cerveja por uma questão genética. Devia ter começado novamente as piadas sobre o senso de moda de Kageyama. Devia ter falado sobre algo que eles já haviam antes conversado. Devia ter dito qualquer coisa... 

Qualquer coisa, afinal, teria sido melhor que aquilo. Não era o que os amigos queriam ouvir, não era o que ela mesma queria dizer, não era, no fim, absolutamente nada além do aglomerado das primeiras palavras que surgiram em sua cabeça, escapando por sua garganta antes mesmo que corretamente pudesse formulá-las. Não que fosse mentira. O pensamento de mudar-se estava, de fato, em sua cabeça. Ela havia, verdadeiramente, durante a noite do dia anterior e durante os minutos no trem até ali, considerado a hipótese de procurar uma nova casa. Mas agora, com olhares tão confusos presos a seu rosto, ela percebia que era exatamente isso o que fazia daquela declaração a pior possível: não era uma fuga do assunto, ela não queria – assim como não queria falar sobre o término de namoro – falar sobre aquela semente de pensamento que mal dentro de si mesma germinara e que, sem sombra de dúvidas, também não estava nascendo em terreno seguro. 

O que faria se levassem em consideração sua declaração e perguntassem o porquê do desejo de mudar-se? 

Diria que pensou em se mudar porque não havia mais sentido morar no apartamento alugado com a ex? Inventaria algum problema sobre infiltrações ou falta de janelas? Não queria, naquele momento, esforçar-se para externar uma decisão que nem mesmo internalizada estava.  

Encolheu-se ainda mais na cadeira, cerrando firme os punhos para controlar o desejo de correr até o banheiro e esconder-se até que todos ali esquecessem o que havia dito, esquecessem o que deveria ter dito, esquecessem até mesmo que precisava dizer algo. E rezou, apertando os dedos nas palmas, para que ninguém ali percebesse o quão boba ela era.    

E já quase, quase – incentivada pelo silêncio ainda intenso e os olhares ainda confusos – acreditava que sua tentativa boba de mudar de assunto seria ignorada e substituída por qualquer outro tópico de conversa que não envolvesse nada relacionado a seu antigo relacionamento, quando, após correrem por toda a mesa, seus olhos receosamente encontraram-se com os atentos olhos castanhos de Sugawara Koushi.  

Se cinco dos pares de olhos ainda pareciam confusos, aquele, pelo contrário, parecia bastante desperto. 

— Sério?! Legal! Mudar é sempre bom! Pra onde está pensando ir? 

Tremeu.  

Por um instante, bem breve instante, perguntou-se se Suga realmente sabia que ela e a ex-namorada moravam juntas ou se aquele estranho sorriso que emoldurava o rosto tão bonito era realmente só simpatia e interesse. Suspirou fundo. Isso realmente não fazia diferença alguma. Se Sugawara não sabia que a estava desmascarando, saberia no instante em que respondesse.  

— Eu... – começou, incerta, ciente de que estava caindo direto na situação que mais gostaria de evitar –... acho que quero um lugar menor... 

Suspirou de novo, rendida, e cerrou firme os lábios, desviando os olhos do rosto angelical cujo sorriso contraditoriamente demoníaco aumentara. Estava nas mãos de Sugawara. 

Sabia que não devia ter bebido tanto! 

— Hm... – mesmo que não mais o olhasse, sabia que o sorrisinho embriagado e travesso ainda estava lá. Suga sempre fora assim tão incisivo? Talvez ele também não devesse ter bebido tanto – No meu prédio vagou um lugar recentemente... Posso ver se ainda está vago, se quiser! Mas é um lugar bem pequeno... – a voz gentil e sorridente endureceu levemente e Yachi sentiu-se obrigada a olhá-lo, assistindo, então, as mãos delicadas, bem mais delicadas do que eram quando escorregavam por bolas de vôlei, desenharem no ar um quadrado pequeno – Daqueles de solteiro, sabe?! 

O entendimento percorreu a mesa, silencioso, com lábios se abrindo e sobrancelhas levantando-se discretas, e, gradativamente, os cinco pares de olhos até então confusos voltaram-se para seu rosto, expectantes. Talvez, naquele momento, se não fossem os dedos de Kiyoko outra vez entrelaçando-se aos seus de seu lado direito e a mão firme de Shouyou apertando sua perna de leve do lado esquerdo, tivesse realmente fugido. 

Não havia fuga, contudo. Tudo, absolutamente tudo, a comprometeria. Se dissesse que sim, que não planejava com mais ninguém morar, se dissesse que não, que ainda queria junto à ex ficar, se dissesse verdades ou se contasse mentiras, se afirmasse não saber ainda ou mesmo se corresse pra longe e nada dissesse: não havia saída, toda reação seria uma resposta. E isso, ao mesmo tempo em que assustava, quase empolgada a deixava.  

Queria um resposta. Para si mesma e para eles. 

Realmente queria. 

Mas, ainda que tão intenso eles a encarassem e ainda que tão firme ela retribuísse o olhar, Yachi ainda não tinha o que dizer. Não sabia como responder Sugawara, não sabia que tipo de resposta queria entregar a eles ou que tipo de resposta queria ter para si mesma. 

Piscou duro. Desviando por fim os olhos para baixo e fixando-os no polegar delicado de Kiyoko acarinhando as costas de sua mão. Quis fazer, mas não desviou a mão. Mais do que isso, desta vez deixou-se levar pelos impulsos que desde o começo da noite tal como balão inflavam em seu peito, e, sem tentar conter-se, encostou a testa no ombro da ex-veterana, roçou de leve nela o nariz, inspirou fundo como quem traga coragem, e separou os lábios, mesmo sem saber ainda o que diria.  

E teria dito algo, provavelmente, mesmo sem saber o que, se no segundo seguinte, um empolgado “wow” não soasse imediatamente a seu lado. 

Tudo, então, aconteceu rápido demais para que pudesse processar.  

Em um instante, Hinata afastou o celular da orelha e sussurrou em um de seus ouvidos um “salva pelo gongo”. No outro, Kiyoko infiltrou uma mão por seus cabelos em carícia delicada enquanto sussurrava um “você não precisa dizer nada se não quiser, vou falar com Koushi e pedir pra ele parar de pressionar. Ele está terrível ultimamente” em outro de seus ouvidos. No outro, Sugawara Koushi desviou os olhos maliciosamente inquisidores de seu rosto e corou até o último fio de cabelo, perdendo a pose enquanto seus lábios formavam um embriagado e levemente envergonhado “hey”. E, por fim, quando deu por si, mais duas cadeiras haviam sido colocadas ao redor da mesa e sobre elas sentavam-se, lado a lado, um Kageyama Tobio com cara de pouquíssimos amigos sussurrando algo no ouvido do namorado, e um Oikawa Tooru, cujos olhos interessados passeavam pela mesa e o sorriso estonteante brilhava divertido. 

Tudo o que pode fazer, então, foi piscar confusa enquanto o silêncio absoluto se acomodava, pela primeira vez em três horas, na larga mesa daquele pub pequeno. 

Cabelos molhados apesar do frio, bolsa esportiva pendendo de um dos ombros, agasalho do principal time de vôlei de Tóquio, suco de laranja sendo pedido enquanto o pouco significativo cardápio de comida tomava toda a atenção dos olhos castanhos-caramelo: não era difícil saber que o antigo capitão da Aoba Johsai havia recentemente saído de um treino.  Nem difícil era saber que estava cansado, e com fome, e com sono: a forma como as expressões se moldavam naquele rosto desde sempre tão bonito eram tão sinceras e cruas que nada do que ele fazia parecia grande mistério. Mesmo assim, mesmo que tanto pudesse ser dito sobre Oikawa Tooru apenas olhando-o por um segundinho, os olhos de todos ao redor daquela pequena mesa de bar estavam fixos nele como se amarrados.  

Oikawa estava antes em um treino. Oikawa estava com fome. Oikawa estava cansado. Oikawa estava com um pouco de frio, talvez por conta dos cabelos molhados. Isso tudo era fato, mas nada disso, absolutamente nada disso, explicava por que Oikawa estava ali, no meio de tantos ex-integrantes da Karasuno, em plena madrugada de quinta-feira. E isso, exatamente isso, era o que mantinha nele por tanto tempo tantos dos olhos naquela mesa: mesmo olhando-o tão fixo, ninguém ali parecia entendê-lo.  

Mesmo que, contudo, aquela parecesse questão fundamental o bastante para manter todos tão concentrados e estáticos, os olhos mel de Hitoka Yachi tiveram tempo de correr até Kageyama – que ainda sussurrava algo a um sorridente Shouyou – e até cada um dos rostos tão confusos quanto seu próprio antes que, finalmente, o recém-chegado percebesse toda a atenção em si e levantasse os olhos do cardápio. 

— Tobio-chan me convidou. – a voz melodiosa ecoou despreocupada, sobressaindo-se à música de fundo que, como se sincronizada com os ânimos, tornara-se mais agitada.  

E enquanto desleixadamente os olhos do rapaz voltavam ao cardápio, toda a atenção da mesa voltou-se para Kageyama Tobio, que remexia-se desconfortável e torcia ainda mais o cenho. 

— Não convidei! – se despreocupada soava a voz de Oikawa, o oposto soava a de seu calouro. Inclinando-se para longe do veterano, travando a mandíbula, apertando os lábios: Kageyama não parecia sequer um pouco confortável com a atenção gerada pelas palavras de Oikawa.  

— Convidou! 

— Não convidei não! 

— Você disse ‘faça o que quiser’. – os olhos atentos já não mais fixavam-se no cardápio, e nem mais tão despreocupada parecia a voz que ridiculamente engrossava para imitar a de Kageyama – E daí eu fiz o que eu quis: eu vim. 

— Eu quis dizer ‘faça o que quiser, desde que faça bem longe de mim’! 

O riso de Hinata, tão pouco condizente com o clima que se instalava na mesa, soou alto, arrastando a atenção de Yachi até ele. Diferente de boa parte das pessoas ali, ele não parecia sequer minimamente incomodado com a evidente irritação que Kageyama direcionava a Oikawa, fitando os dois com um divertimento que nada combinava com a expressão assustadora do namorado.  

Yachi torceu os lábios, encarando com mais atenção o rosto de seu pequeno sol particular.  

Forçando a memória, lembrava-se de ter dele ouvido que Kageyama e Oikawa haviam sido contratados pelo mesmo clube, ou por clubes rivais com muitos treinos-coletivos, ou algo assim. Não era difícil supor, portanto, que era daí a familiaridade com que se tratavam e também daí, provavelmente, que vinha a proximidade entre eles que resultou em ambos sentados juntos naquela mesa. Se não estava enganada, Nishinoya treinava também junto a eles, o que talvez explicasse o olhar amigável que o líbero direcionava ao ex-levantador do Aoba Johsai, rindo sem ressalvas da careta debochada que ele direcionava a Kageyama.    

— Mas não foi isso o que disse! 

— Eu estava no meio de uma ligação com Hinata! – suspirou, cansado, desviando os olhos primeiro para o rosto do namorado e então para todos os outros na mesa, detendo-se por mais tempo do que o necessário no rosto de Sugawara – Estava saindo do treino e ele me ouviu falando com Hinata sobre vir até aqui. Ficou me enchendo o saco que era por isso que Noya-san tinha saído mais cedo e perguntando quem estaria aqui. Então resolveu me seguir até aqui como se fosse a coisa mais normal do mundo... 

Outro riso ecoou pela mesa, tão alto quanto o de Hinata e Yachi se surpreendeu, verdadeiramente se surpreendeu, ao notar que era dos lábios de Sugawara Koushi que ele escapara.  

— Isso parece bem com ele... – o ex-vice-capitão da Karasuno sorriu mais baixinho, cerrando suave os olhos e cobrindo os lábios com as mãos. 

Yachi ainda ouviu Kageyama reclamar um pouco mais, e ouviu Nishinoya juntar-se a ele para pentelhar o colega de treino, e ouviu Asahi tentar apaziguar os ânimos exaltados, mas, verdadeiramente, a nada disso dedicou atenção. Os olhos castanhos mel estavam, enormes e estupefatos, totalmente presos na expressão que invadiu o rosto de Oikawa Tooru no instante em que Sugawara Koushi sorriu.   

— Eu também estranhei quando vi pela primeira vez. Surpreendente, né?! – o sussurro soou baixinho bem perto de seu ouvido, e, fosse outro o momento, talvez Yachi tivesse por completo se arrepiado. Naquele instante, contudo, assentiu apenas para a garota a seu lado. 

Era surpreendente, sem dúvidas. 

Os olhos semicerrados. A boca entreaberta. O peito inflado. Os lábios em meio-sorriso. 

— Ele parece idiota. – sussurrou de volta e ouviu Kiyoko rir. 

— Acho que apaixonado é a palavra certa, Hitoka-chan. – sorriu divertida da repreensão recebida, voltando mais uma vez os olhos para Oikawa, que, ainda alheio à tempestade que Kageyama formava à sua volta, encarava Sugawara que, agora, também o encarava de volta, uma das sobrancelhas levantadas e um sorrisinho pequeno arredondando de leve as bochechas rosadas de cerveja – Kageyama está rosnando. Acho melhor a gente fazer alguma coisa antes que acabe mordendo. 

Acenou outra vez, afastando-se de Kiyoko e, decidida, desviando a atenção até o rapaz que, ainda que recentemente não admitisse com frequência, era, junto a Shouyou, seu melhor amigo.  

— Ah... hum... eu... – resmungou, a voz tão baixinha que tinha dúvidas se seria ou não ouvida. Mas foi. Aos poucos, todos os sons cessaram. Não era como se quisesse a atenção mais uma vez em si, mas sabia que era a única que poderia parar a discussão boba entre os dois levantadores – Eu... eu não me importo que Oikawa-san esteja aqui. – completou, a voz pouco mais alta, a atenção presa no rosto de Tobio.  

O desconforto evidente, os lábios em fina linha, os olhos azuis escuros fixos nos seus brilhando em um silencioso pedido de desculpas: Yachi entendia, realmente entendia, o porquê de Kageyama estar agindo de forma tão hostil. Não que concordasse com o comportamento e não que achasse aquela a forma certa de lidar com a situação, mas, ainda assim, o entendia. Sem sombra de dúvidas o entendia: Kageyama Tobio agia daquela forma para protegê-la. Era bobo, rude e despropositado, mas, ainda assim, era a forma como ele fazia as coisas, a forma como sempre fizera, desde quando mais novos.  

Ele tinha medo de que a presença de Oikawa a fizesse retrair-se.  

Tinha medo de que ela se chateasse. 

A voz tão rígida, o mau-humor tão evidente, os ombros caídos e os olhos baixos não a deixariam duvidar nem por um momento: mesmo que brigar com Oikawa fosse, provavelmente, a pior maneira de demonstrar isso, Kageyama brigava porque preocupava-se e Yachi, verdadeiramente, sentia-se grata pela boa intenção por trás de todos os rosnados e caretas. Ao mesmo tempo, não era como se ele estivesse errado; ela realmente sentia-se um pouco intimidada com a aura potente do antigo capitão da Aoba Johsai, mas não o bastante para querer que ele fosse embora, e não, definitivamente, o bastante para que ficasse brava ou chateada com Tobio. E ele pareceu, depois de alguns instantes encarando-a, entender isso, assentindo suave e deixando escapar um longo suspiro antes de dar de ombros, resignado.  

Sorriu para ele antes de permitir-se voltar a olhar para o inesperado companheiro de mesa, lançando a ele um sorriso um pouco mais aberto do que o que entregara ao amigo. Sorriso que foi retribuído no mesmo instante. 

— Viu, Tobio-chan, falei que não teria problema! – Yachi revirou os olhos com a clara provocação que havia na piscadela que Oikawa direcionou a Kageyama e sentiu Kiyoko rir a seu lado, relaxadamente levando outra vez a bebida adocicada aos lábios – Ok, então... – recomeçou ele, a voz animada como se há pouco não estivesse quase a ser expulso da mesa – ...o que é que a gente tá comemorando hoje? 

Yachi não soube direito o porquê de tê-lo feito, mas, ao ouvir a pergunta de Oikawa Tooru, tão direta e tão animada, tudo o que pode fazer foi rir baixinho. Não precisou olhar, contudo, para o restante das pessoas com quem dividia a mesa para perceber que fora a única a sorrir. Bastou que mantivesse os olhos no rapaz que fizera a pergunta, assistindo lentamente, lentamente, bem devagar, o sorriso dele morrer e dar lugar à uma expressão tão confusa que quase a fez rir de novo.  

— Não é isso? – ele continuou, a voz fraquinha indicando que talvez só continuasse a falar porque ninguém mais o fazia – Bar de quinta-feira é comemoração, não é?! 

Os olhos castanhos-caramelo correram por cada um dos rostos ali e, mesmo querendo acompanha-los, Yachi permaneceu quieta.  

Mesmo quieta, contudo, sentiu quando Kiyoko remexeu-se incomodada a seu lado e viu quando Sugawara inclinou-se em direção a Oikawa, quase dobrando-se sobre a mesa. E, mesmo que ainda perfeitamente estática, percebeu, também, quando Shouyou tomou fôlego para algo dizer.  

Nenhum deles, contudo, se manifestou em voz alta. Então, mesmo ainda quieta, mesmo ainda sem querer atenção para si e mesmo ainda com o sorriso inadequado nos lábios, resolver fazê-lo: 

— Eu tomei um pé na bunda. 

Ela sabia que sua escolha de palavras não havia sido a melhor. Sabia bem que melhor deveria explicar e sabia que mais sutil deveria ter sido. Mas, de toda forma, sabia que não havia motivos para enfeitar o que diria e nem queria fazer isso.  

O silêncio outra vez inundou a mesa. Pesado. E Yachi quase acreditou que, desta vez, ele realmente ficaria por ali, fazendo-os companhia e impregnando dolorosamente o encontro que agradável deveria ser.  

Estava enganada. 

— Oh! Eu... Eu sinto muito... 

Ele estava desconcertado. Oikawa Tooru estava desconcertado. Yachi quis outra vez rir, não era todo dia, certamente, que alguém conseguia deixar o ‘grande-rei’ sem graça. E talvez realmente tivesse rido, nem que para quebrar o silêncio, se no instante seguinte o causador de seu possível riso sem-graça não tivesse de súbito se levantado e deixado a mesa.  

Não riu, portanto, nem um pouquinho – por mais que o desespero e a embriaguez quisessem-na forçar a isso – enquanto ele dirigia-se até o balcão e conversava com um atendente. Nem riu quando viu-o sorrir simpático e receber duas canecas grandes demais de cerveja. E também não riu quando uma das canecas enormes foi colocada na mesa, à sua frente.  

Quando, por fim, os olhos estranhamente sérios de Oikawa Tooru fitaram firmes os seus enquanto a segunda caneca grande demais pendia diante de seus olhos para um brinde, Hitoka percebeu que havia perdido a chance de rir e de fingir que tudo era engraçado e sem importância.  

— Quer conversar sobre? – ele perguntou, e, ainda que do outro lado da mesa um firme e repreensivo “Oe, Tooru” tenha soado, ele continuou firme, a caneca grande em riste, encarando-a sério.  

E ela não esperava por isso. Verdadeiramente não esperava.  

Ao longo de toda a noite, ao longo de todas as três horas e meia que ali estava, o assunto de seu término havia pairado entre eles como tabu. Falavam das novidades, mas não falavam de amor. Perguntavam com saudades e preocupação sobre sua vida, mas não perguntavam sobre sua vida amorosa. Era tudo tão leve, tão confortável e tão fácil, mas, ainda assim, durante todo o tempo, havia uma névoa de tensão que, a qualquer momento, parecia prestes a explodir.  

Com aquela caneca a sua frente, contudo, não havia tensão alguma, nem velada nem presente. Havia uma caneca enorme transbordando cerveja, um par de olhos firmes e uma pergunta que colocava todo o poder de decisão em suas mãos. Algo na postura do rapaz dizia que, caso respondesse com um “não”, receberia apenas um brinde e, então, não mais pairando como tabu, o assunto se encerraria.  

E foi, talvez, exatamente por isso, por ser tão perfeitamente fácil dizer não que, no fim, disse 

— Acho que sim, na verdade.  

E até mesmo ela, Yachi, chocou-se com a sinceridade das palavras que deixaram seus lábios. Porque era verdade, ela realmente queria conversar. Suspirou fundo, portanto, batendo devagar sua nova caneca de cerveja à caneca ainda em riste e levando-a em seguida aos lábios para um gole amargo.  

— Eu fiz uma coisa que não devia ter feito. Uma coisa que eu sabia que não devia ter feito. Mas fiz e tudo acabou. – explicou, plenamente ciente de que não eram só os olhos caramelo que estavam fixos em seu rosto – E agora não sei se estou arrependida. Não sei mesmo. Porque, parando pra pensar, quando eu fiz tudo, eu já meio que sabia o que ia acontecer... Eu sabia que ia acabar e fiz mesmo assim. Fiz porque achei que era certo. – outro gole desceu por sua garganta – Mas, apesar disso tudo... acho que não sei lidar com o resultado final... Porque tudo parece tão, tão mais difícil ainda quando ela não está por perto... Mas daí lembro de tudo o que me levou a fazer o que fiz. E lembro que fiz tudo mesmo sabendo que ia dar merda e sinto que não tenho direito de sentir falta dela porque foi por minha culpa que tudo acabou.  

Inspirou fundo, soltando todo o ar de uma só vez e cerrando bem de leve os olhos. 

Era a primeira vez que colocava aquilo pra fora, a primeira vez que admitia sentir falta da ex, a primeira vez que, conscientemente, usava o gênero certo dos pronomes. A sensação era quase como se, agora colocadas pra fora, ali, do lado de fora, todas aquelas verdades desconfortáveis ficariam. Bem longe do seu peito, bem longe de seus ombros antes tão pesados. Já não se importava com o que Kiyoko pensaria ao descobrir que a pessoa com quem queria supostamente voltar a namorar era uma garota. Já não se importava se Sugawara interpretasse tudo o que disse como uma resposta à sua pergunta sobre o apartamento de solteiro. Nem se importava se Kageyama a olhasse repreensivo por admitir sentir falta da ex que ele tanto odiava. Não se importava com nada que não a caneca cheinha em suas mãos e a música novamente suave, quase sensual, ecoando através dos poros de sua pele estranhamente quente. 

Abriu novamente os olhos – quase com surpresa de ter ainda público – quando um riso sem nenhum humor deixou a garganta de Tooru. 

— Eu conheço uma história parecida com essa... que merda, né?! 

Piscou para ele, genuinamente surpresa. Podia jurar, quando começou a conversa, que ela seria uma via de mão-única. Que diria e Oikawa ouviria. Ou, ainda, que nem a ouviria, que seu monólogo seria ouvido apenas pelos outros na mesa. Agora, contudo, olhando a forma como ele atentamente ouvia e empaticamente respondia, quase podia entender porque aquele rapaz tinha tantos pretendentes a seus pés quando mais novo. 

Ele estava errado, contudo, e isso foi tudo o que conseguiu pensar, sorrindo meio torto na direção dele. Ela podia estar sendo demasiadamente prepotente ao concluir isso, poderia estar se adiantando nas suposições que embriagadamente fazia sobre a declaração de Oikawa, mas a história que ele provavelmente queria comparar com a sua não era, definitivamente, parecida. E, de alguma forma, sentia urgência em esclarecer aquele mal-entendido.  

Talvez realmente tivesse bebido demais. 

— Não é não... – rebateu, a caneca outra vez tocando seus lábios, a cerveja enchendo de coragem seus pulmões conforme sua voz mais alta tornava-se – Sua história não é parecida com essa minha. Você quer ele de volta, não quer?! O jeito que olha pra ele... você quer, não é?! E tem certeza disso, não tem?! Certeza que quer ele de volta... E eu... eu não mais sei se quero minha ex de volta... Eu tinha certeza, eu acho. Mas não tenho mais... 

Os olhos castanhos-caramelo arregalaram-se surpresos, piscando algumas vezes, fixos no rosto da garota que outro gole tomava, antes de desviarem-se, enormes, ansiosos e apressados, para o rosto de Sugawara Koushi, e se Yachi, até aquele momento, ainda tinha qualquer dúvida sobre o que havia insinuado, ela se desfez no momento em que Oikawa voltou a olhá-la, acusador, sobrancelhas franzidas e claro desconforto. 

Naquele momento, sendo encarada com tamanha intensidade, Hitoka Yachi entendeu, mesmo que Oikawa nenhuma palavra dissesse, exatamente o que acontecia.  

Não tinha mais dúvidas de que a comparação que Oikawa tentara fazer era sobre sua história com Sugawara. Não tinha mais dúvidas de que fora a presença de Sugawara Koushi a colocar o ex-capitão do Aoba Johsai em meio a tantos ex-jogadores da Karasuno. E não tinha mais dúvida, absolutamente nenhuma dúvida, de que havia acertado em um ponto frágil do rapaz sentado a sua frente. 

Mordeu, incomodada, os lábios, levemente culpada por expô-lo tão descuidadamente. Logo os soltou, contudo, em um estalo surpreso, enquanto percebia que, mesmo exposto e mesmo visivelmente desconfortável, Oikawa em momento algum fez menção de negar o que dissera ou de levantar-se da mesa. 

Arregalou os olhos, piscando para o rapaz ainda sentado à mesa. Mais uma vez surpresa pela presença dele naquele bar. 

Talvez fosse isso o que fazia a comparação de Tooru tão impossível e tão inaceitável: ela, Hitoka Yachi, nunca, absolutamente nunca, estaria na mesma situação que Oikawa, dividindo tão casualmente uma cerveja com um ex-amante.  

Era pouco o que sabia pouco do relacionamento entre os dois levantadores, na verdade. Somente as poucas e pobres informações cedidas por Kageyama e somente o que junto a Shouyou especulara. Sabia que os dois haviam começado a sair por algum tipo de coincidência. Sabia que durante um tempo eles se encontravam sem nenhum tipo de compromisso. Sabia que Oikawa terminara com Sugawara dizendo que queria de volta a vida de solteiro. Sabia que isso tinha sido logo após Sawamura voltar do intercâmbio. Sabia que Oikawa não poucas vezes requisitara a presença de Kageyama para, segundo ele próprio, “esquecer as merdas”. Sabia que Oikawa desde o término não tinha saído sério com ninguém. E sabia que desde que chegara ali, Oikawa não tirava os olhos de Sugawara. Mesmo sabendo tão pouco, contudo, não precisava ser um gênio para juntar as peças e entender exatamente o que se passava com o rapaz desconcertado a sua frente.  

Era isso, exatamente isso, o que os fazia tão diferentes e era isso também, provavelmente, que a fazia sentar-se naquele momento e, dentre todas as pessoas a susterem a respiração naquela mesa, conversar justamente com Oikawa: ela nunca estaria ali, sentada junto a uma pessoa que namorara e que tão obviamente ainda gostava. Ela nunca seria para a ex-namorada o que Oikawa parecia ser para Sugawara. Nunca sorriria tão doce caso encontrasse com a ex sem estarem juntas; nunca seria tão cortês ao ponto de dividir a mesa com a (provável) atual namorada dela; nunca seria empática ao ponto de olhar preocupada caso a ex tossisse; nunca seria desapegada ao ponto de silenciosamente emprestar seu próprio cachecol para aquecê-la; nunca olharia tão interessada para qualquer coisa que a ex fizesse. Nunca, absolutamente nunca, seria capaz de encontrar com a ex, sabendo que ela provavelmente voltara com um namoro antigo, e assistiria a felicidade dela como se fosse sua própria. Nunca partiria seu próprio coração para ver a ex feliz e nunca seria capaz de voluntariamente ficar por perto para checar essa felicidade. 

Ao mesmo tempo, contudo, tudo isso parecia tão absurdamente idiota, absolutamente despropositado, masoquista e ridículo, mas tão bonito e tão doce que não podia evitar pensar que provavelmente o problema estava na forma como ela, Hitoka Yachi, compunha sua própria felicidade. 

Porque, no fim, ali estava Oikawa, ouvindo sua história com um meio sorriso nos lábios e olhos sérios, tão inteiro e impassível apesar de tudo, parecendo tão decidido mesmo que fazendo coisas tão idiotas; e lá estava ela, quebrada em mínimos pedacinhos, brincando de trazer de volta um amor que provavelmente nem queria mais e rezando para que ninguém percebesse o quão idiota era. Sentia-se até mesmo envergonhada por ter sido comparada a ele.  

Não sabia, de verdade não sabia, se o que Oikawa sentia por Sugawara era amor. Mas tinha certeza, enquanto o olhava, que ao menos ele estava mais próximo disso do que ela mesma estava. 

— Aconteceram... – recomeçou, a voz quase abafada pela música alta, assistindo os olhos acanhados de Oikawa encontrarem novamente os seus – algumas coisas nos últimos dias que me fizeram pensar direito, sabe?! E daí... – hesitou, outro gole da bebida gelada descendo por sua garganta – acho que fazia um tempo que eu não pensava nas coisas por mim mesma e muito tempo que eu não passava tempo comigo mesma, e... e foi como se eu me conhecesse de novo, sabe?! – riu, envergonhada, sentindo-se boba por dizer em voz alta coisas como aquelas – E talvez essa nova eu que conheci não queira mais... talvez não queira mais a minha ex. – desviou os olhos dos de Oikawa, sabia que, no fundo, o que dizia agora não era dito só para ele. Sabia que todos ali a ouviam atentamente – Mas é um pouco assustador pensar coisas assim.... E machuca um pouco, também....  

— Ah, mas... é... na verdade sempre machuca... – a voz de Oikawa, outra vez calma, alcançou resignada seus ouvidos – Isso não é opção... Tudo que importa dói ao menos um pouco e a gente não pode fazer tanto assim sobre isso. Não pode fazer tanto assim pra evitar se machucar... Só... – riu baixinho, os olhos desviando-se até a caneca entre seus dedos, balançando-a desleixado – Só dá pra gente tentar escolher quem a gente vai deixar machucar. Só... tentar escolher por quem vai valer a pena sair magoado...  

Encarou-o com os olhos arregalados e, de alguma forma – mesmo que apenas para ele tivesse naquele momento olhos – tinha certeza que também todos os outros ali naquela mesa de bar também o encaravam. E enquanto, bem devagar, bem devagarinho, anestesiada pela bebida, ia pouco a pouco entendendo o que com aquilo queria Oikawa dizer, ia também, bem devagar, devagarinho como se hesitante caminhasse sobre cacos, tão baixinho como se oração, invadindo sua cabeça o pensamento de que talvez, talvez..., talvez!, não quisesse que a ex-namorada a machucasse nunca mais.  

O som alto de uma cadeira arrastando-se, contudo, bruscamente arrancou Yachi dos pensamentos que aos poucos cresciam. Confusa, focou na fonte do som sua atenção apenas a tempo de assistir Sugawara deixar apressado a mesa, um “não fode, babaca do caralho, discursinho de merda” ecoando alto no silêncio da mesa. Quando, então, outra vez encarou Oikawa, soube de imediato que já não havia mais nenhuma possibilidade de que mais conversassem, não quando, num arrastar de cadeira tão alto quanto o anterior, a cadeira do ex-capitão do Aoba Josai deslizou pelo chão e, num pulo, ele pôs-se de pé, os olhos enormes acompanhando as costas do rapaz que há pouco deixara a mesa.  

Um risinho baixinho ecoou a seu lado e Yachi não pôde fazer nada que não morder devagar o canto dos lábios ao sentir Kiyoko aproximar-se o bastante para novamente tocarem-se. Não foi somente, contudo, a sua atenção que Kiyoko roubou com o riso baixo, Oikawa também olhava e, diferente dela mesma, ele parecia entender muito bem o motivo de riso tão desconexo. 

— Você sabe bem que devia ir atrá- – começou ela. 

— Você sabe que não posso. – interrompeu ele, os olhos abertos ao máximo desviando-se do rosto de Kiyoko às costas cada vez mais distantes de Sugawara, inegavelmente desesperados. Desespero que intensificou-se como se fosse a qualquer momento gritar para, no instante seguinte, arrefecer, os olhos caramelo cerrando-se em tão clara tristeza que Yachi não pode evitar virar-se na cadeira para, curiosa, fitar a mesma direção que Oikawa fitara. Foi a vez, então, de os olhos castanhos-mel compreensivamente entristecerem-se – Ainda mais agora... 

Com os olhos incomodados pela escuridão, Yachi percebeu que, diferente de Oikawa, que permaneceu parado no mesmo lugar, Sawamura havia se levantado e ido até o rapaz que fugira da mesa. 

— Eles não estão mais juntos, sabe? – a voz de Kiyoko ainda soava risonha, mas Yachi desconfiou que isso era mais culpa da bebida adocicada que ela bebia do que de algum divertimento que ela pudesse de fato ver no rosto chocado e ainda tristonho de Oikawa Tooru. 

— Bom, então alguém esqueceu de avisar pro senhor-intercâmbio-terno-e-gravata ali. – os olhos castanhos, levemente irritados, desviaram-se finalmente até o rosto de Kiyoko – E você não tem que me dizer isso. Não faz diferença nenhuma. Eu sou um “cuzão do caralho”. 

— “Babaca do caralho” – corrigiu a garota a seu lado e Yachi, mesmo bêbada, quis dizer a ela que aquela não era hora pra esse tipo de pragmatismo – E não ligo. Nem se quisesse conseguiria ser tão “babaca do caralho” quanto Daichi foi. Suga só... – hesitou, sorrindo na direção do amigo, que, do outro lado do bar, gentilmente desviava da mão que Sawamura colocava em seus ombros – só... se machucou muito mais quando você foi babaca do que quando Daichi foi babaca. Você sabe o que isso significa, né?! 

Oikawa sabia, Yachi tinha certeza disso. A forma como ele encarava Kiyoko, com os olhos bem arregalados e as mãos inquietas no encosto da cadeira, denunciavam que sabia. 

— Tem certeza? – perguntou, ansioso, os dedos apertando com força a madeira. 

— Que ele ficou mais chatead-? 

— Não, não isso. – interrompeu-a – Que eles não estão mais juntos.  

— Não estão. 

— Tem certeza? – os olhos correram, ansiosos, de Kiyoko até Asahi e Nishinoya. 

— Eu já tinha te dito isso antes, cara. Um monte de vezes. – o líbero confirmou – Certeza absoluta. 

Os olhos castanhos-caramelo olharam mais uma vez na direção dos banquinhos no bar, depois para a caneca de cerveja, depois de novo para o bar. E Yachi quase riu diante da possibilidade de Oikawa estar avaliando se precisava ou não terminar sua cerveja para ter coragem de ir atrás de Sugawara. Não teve tempo de rir, contudo. Não teve nadinha de tempo. Num instante Oikawa virou em um só gole a cerveja, noutro serpenteou apressado as pessoas no bar até o lado oposto, noutro parou diante de Sugawara e, visivelmente, berrou para ele algo que arregalou enormes os olhos de Sawamura e, então, tomando ambas as mãos do ex-vice-capitão da Karasuno nas suas, curvou-se. Tudo em uma velocidade tão absurda que Yachi não pôde sequer piscar.  

— Aposto dez pratas que eles vão estar se pegando em quinze minutos.  

Quando finalmente piscou, Yachi o fez confusa. Primeiro por perceber que fora Kiyoko a fazer a tão descuidada afirmação, depois por entender que sim, a sempre tão doce garota realmente falava sério sobre apostar. 

Estava bêbada demais pra entender o rumo que as coisas estavam tomando naquela noite, mas, ao olhar o sorriso enorme que Kiyoko Shimizu dirigia ao lado oposto do bar e a força com que apertava seus dedos ainda entrelaçados juntos, tinha quase certeza de que a garota a seu lado também não estava tão sóbria quanto num primeiro olhar parecia estar.  

— Dá pra acreditar que ele chegou gritando “Eu te amo, Koushi!” do nada?! – a voz de Sawamura soou baixinha, inquestionável indício de que nem mesmo ele acreditava no que contava, os ombros levemente baixos e os olhos ainda arregalados – Levei um susto! E ficou todo mundo olhando! 

Yachi fitou surpresa o rapaz a novamente acomodar-se à mesa. Mais tarde, naquele dia, pouquinho antes de dormir, ela pensaria que havia um pouquinho de decepção e tristeza amargando a voz chocada dele e que, de alguma forma, devia ter dito algo para confortá-lo; naquele momento, contudo, tudo o que fez ao ouvi-lo foi abrir um sorriso tão largo quanto o de Kiyoko e olhar para Oikawa – que gesticulava excessivamente diante de um sorriso enorme de Sugawara – com quase orgulho. Aquele garoto realmente havia ido com tudo o que tinha! 

— Sério?! Boa, Oikawa! Suga adora essas coisas! – Nishinoya gritou, animado, os olhos desviando do rosto de Sawamura para voltarem-se brilhantes na direção do relógio de pulso de Kiyoko e então para os dois rapazes do outro lado do bar – Quinze minutos, você disse?! Dobro o valor que três serão mais do que o suficiente! 

— Reconciliação miojo! 

— Shouyou! – o nome do amigo escapou de Yachi em misto de repreensão e divertimento. Hinata, com o sorriso enorme, limitou-se a morder os lábios e dar de ombros. Não era difícil perceber o quanto seu pequeno sol particular estava se divertindo com aquela situação toda. 

Mas não tanto, sem dúvidas, quanto Kiyoko. Sob a luz suave do bar e embalada pela música baixinha, Kiyoko parecia brilhar de felicidade, balançando-se levemente e sorrindo tanto, tanto, que, outra vez, Yachi já não podia fazer nada que não olhá-la. Ela ficava linda sorrindo daquela forma tão aberta e despojada.  

Tão linda que Yachi não pôde sequer fingir vergonha ao ter sido pega encarando-a. E, de toda forma, qualquer vergonha certamente perderia força diante da inegável gentileza que havia naqueles olhos cinzentos que agora fitavam-na diretamente. Não teve saída alguma, portanto, ao vê-la aproximar-se de seu ouvido que não oferecê-lo de bom grado, inclinando-se perigosamente em direção aos lábios dela. 

— Koushi adora essas coisas... – a voz divertida, baixinha, soou tão próxima a sua pele que Yachi quase pode sentir-se tocada. Cerrou os olhos devagarzinho pelo quase contato, mas, ainda que seu corpo parecesse implorar para inclinar-se ainda mais, permaneceu quietinha, ouvindo – Ele adora de verdade e fica tão feliz... Espero que eles fiquem juntos de novo, porque, sério, olha aquele sorriso dele!... Oikawa terminou com ele porque é um idiota inseguro. Koushi nunca quis voltar com o Daichi. Até tentou... Mas é claro que daria errado! O Koushi só é um bobão orgulhoso demais pra ser sincero e teimoso demais pra ser o primeiro a ceder. E... e o tanto que eles gostam um do outro só torna tudo ainda mais bobo! Koushi é louco por ele! E Oikawa sabe exatamente do que Koushi gosta. E gosta também... Gosta de volta, sabe?! Chega gritando pra todo mundo que o ama e vai ficar com ele como se ninguém estivesse olhando. Foi assim desde o começo... E Daichi nunca faria isso, nunca.... Eu adoro o Daichi, mas ele foi tão idiota, fez tantas coisas que magoaram meu Koushi. Hitoka, ele merece mais, sabe?! Merece isso... Koushi merece um bobão que goste dele mesmo quando tem alguém olhando e que faça um monte de babaquice porque acha que é o melhor pra ele. 

Yachi acenou uma, duas, três vezes enquanto Kiyoko sussurrava em seu ouvido, e sorriu aberto quando ela terminou de dizer o que queria e afastou-se com um sorriso embriagado preenchendo os lábios. Fosse pela proximidade, pela embriaguez ou pela quantidade absurda de palavras ditas tão rápidas, contudo, não havia de fato entendido o que Kiyoko falara. Entendia-a em partes, por algum motivo, afinal, achava a forma como Kiyoko falava de Sugawara muito parecida com a forma como ela mesma falava de Hinata. A partir disso, não era difícil entender o essencial: Sugawara era o Hinata de Kiyoko, o que significava que Kiyoko estava feliz por vê-lo feliz. 

— Você também, sabe?! – ela voltou a sussurrar, novamente inclinando-se em sua direção e plantando um pequeno beijo em sua bochecha – Você também merece mais, Hitoka-chan. Bem mais! 

Os olhos castanhos-mel arregalaram-se enormes enquanto, pouco a pouco, o sorriso enorme cedia até tornar-se surpresa. Dali aproximadamente três horas, quando finalmente se deitasse para dormir, Yachi se arrependeria de não ter perguntado o que Kiyoko pretendia com a afirmação feita de forma tão crua em voz tão séria, se arrependeria por não ter dado a devida atenção, por não ter perguntado o porquê do beijo na bochecha e por não ter pedido mais explicações. Naquele cinquenta minutos passados da meia-noite de quinta-feira, contudo, quando tanto álcool circulava por seu sangue e tantos arrepios corriam do fundo de seu estômago até o finzinho de sua nuca, a única coisa que Yachi conseguiu pensar foi no quanto absurdamente queria que aquele beijo não tivesse sido na bochecha.  

O tipo de pensamento mais perigoso do mundo, portanto.    

O tipo que gritava que se um pouquinho mais para a esquerda o beijo teria acertado o canto de sua boca. Que sussurrava baixinho que não seria estranho se ela se inclinasse sobre Kiyoko para retribuir o beijinho. Que quase implorava para que o que quer que fosse o mais que Kiyoko dizia ser ela merecedora, que envolvesse beijos que não acertassem bochechas. 

O pior tipo de pensamento para uma garota embriagada que supostamente ainda gostava da ex-namorada. 

— Na bochecha?! Por que na bochecha?! – a voz excessivamente animada de Nishinoya soou acima do som da música, congelando cada centímetro do estômago de Yachi – Ah, droga! De toda forma eu perdi! Mas você também perdeu, Kiyoko-chan! Foram doze minutos, não quinze! – os olhos cinzentos até então presos aos seus desviaram-se até o pequeno líbero antes que um sorriso bobo substituísse o rosto até segundo atrás sério de Kiyoko Shimizu. Yachi inspirou aliviada, unindo as mãos em frente ao peito e levantando os olhos até o rosto confuso do rapaz do lado oposto da mesa apenas para confirmar que os olhos deles encaravam longe. Não era dela que Nishinoya falava! – Quer dizer... nem sei se acabou a contagem. A gente apostou que eles iam se pegar e o Oikawa tá grudado feito sanguessuga na bochecha do Suga. Mas é na bochecha... conta?! Sério, por que foi na bochecha? Desde quando eles se beijam na bochecha? 

A indignação de Nishinoya arrancou um riso de Hinata, uma gargalhada de Kiyoko, um olhar de entendimento de Asahi e uma carranca desconfortável de Kageyama e de Sawamura, o que, para Yachi, era mais do que o bastante para fazê-la confusa. De um lado, entendia perfeitamente o riso de Hinata – que já há um tempo ria para qualquer coisa – a carranca de Kageyama – que achavam todos os beijos exceto os de Hinata nojentos –, e o desconforto de Sawamura – que assistia o ex-namorado ganhar beijos, mesmo que na bochecha –, mas, em definitivo, não entendia as reações de Kiyoko, Asahi e nem a indignação imensa do pequeno líbero. Como se lesse seus pensamentos, Kiyoko disse, os olhos nos seus, um sorriso nos lábios e uma distância dolorosamente saudável: 

— Esses dois normalmente são um pouco mais...é... intensos?! 

— Intensos, Kiyoko-chan?! – retrucou Nishinoya – Eles não têm noção nenhuma de nada. Talvez o Oikawa esteja beijando tanto assim a bochecha do Suga porque só agora descobriu que ele tem uma! Não... na verdade tem duas, você entendeu... 

— Eles têm um lance físico muito... forte. – acrescentou Asahi, as bochechas coradas denunciando que mesmo parcialmente bêbado não se sentia tão confortável falando sobre isso quanto o namorado. 

— Um monte de foto deles juntos apareceu no twitter quando eles namoravam. O treinador ficava louco...  

— Será que é por isso, então?! – arriscou Yachi, apontando na direção na direção dos dois garotos no bar. 

— Não sei... Oikawa não ligava muito, mesmo quando teve aquela matéria escrota naquele site. 

— E se ligasse não estariam assim tão juntos... – palpitou Asahi, os olhos sondando as reações do ex-capitão, sentado a seu lado. 

— Então será que não voltaram? – a dúvida na voz de Hinata denunciava que nem ele mesmo acreditava na possibilidade que jogava à mesa. 

— Não voltaram. 

A afirmação, tão convicta e tão inesperada, levou toda a atenção até Kageyama Tobio que, despreocupadamente, bebericava um copo com alguma bebida que Yachi sabia não conter sequer uma gota de álcool. Ele, definitivamente, parecia bastante certo do que falava, mesmo diante de todos os olhos que o olhavam incrédulos. 

— Só porque o beijo foi na bochecha?! Mas isso não tem nad- 

— Não é por causa da bochecha... – interrompeu, os dedos ao redor do copo remexendo em provável desconforto – Oikawa nunca voltaria com Suga assim... 

— Quê?! Mas era ele que estava aqui com aquela cara d- 

— Não é porque ele não quer... – outra vez interrompeu, desta vez olhando diretamente o pequeno líbero, plenamente ciente de que, de todos ali, ele, por melhor conhecer o levantador, entenderia perfeitamente o que queria dizer – Você sabe, né?! O Suga bebeu demais... – correu os olhos azuis escuros pela mesa, bufando ao perceber que não fora entendido – Oikawa não voltaria com o Suga bêbado. Porque seria injusto... com o Suga... 

Um sorriso enorme, tão grande quanto podia naquele momento, invadiu o rosto de Yachi enquanto ela mais uma vez olhava os dois rapazes sentados nos banquinhos do balcão, de mãos entrelaçadas, conversando animadamente. Era adorável. Talvez não muito mais discreto do que um beijo seria e talvez também não carregasse o distanciamento ideal para um rapaz determinado a esperar pelo fim da embriaguez, mas, ainda assim, era adorável. 

E olhando-os com o riso tão enorme, Hitoka Yachi demorou a perceber seus olhos a embaçarem-se e seus ombros devagarinho começando a chacoalhar.  

Quando percebeu, Yachi se arrependeu, mais uma vez na noite, de ter bebido tanto. 

Um pouco tarde demais, ela soube, para arrependimentos. Nada mudaria o fato de que estava bêbada o bastante para chorar baixinho de inveja diante de todos aqueles olhares preocupados. Era lamentável, tão lamentável que não hesitou nem sequer segundo antes de inclinar-se na direção de Shouyou e pedir colo, afundando o choro em seu peito e buscando em desespero pela mão de Hinata com uma das mãos e pela de Kageyama com a outra.  

Era ainda mais bobo do que o choro na tarde anterior, acima de tudo porque, no fim, era o segundo choro. A segunda vez que chorava em menos de 24 horas! Tão lamentável que não pôde evitar começar a rir em meio ao choro, esfregando as duas mãos presas às suas em seus olhos.  

— Gente, eu tô chorando... – ofegou, não conseguindo evitar que risos entremeassem os soluços. Com os olhos cerrados bem firmes e a cabeça baixa, Yachi não viu Asahi afastando sua caneca de cerveja para longe, nem viu a expressão dolorosa de quase choro no rosto de Kageyama, nem a hesitação das mãos de Kiyoko antes de deslizarem por seu cabelos em um suave carinho – Que merda, né?! Não consigo parar... É só que é tão fofo e tão legal... que... que... eu nem sei mais... 

— Hitoka! Você é muito fofa e muito legal também! – a voz animada de Hinata arrancou de seus pulmões outro riso dolorido.  

— Super legal. – um dos dedos de Kageyama apertou sua bochecha delicadamente.  

— Ah... Yachi, eu vou acabar chorando também! – Sawamura, do outro lado da mesa, escorregou uma das mãos até alcançar o topo de sua cabeça, onde entregou um carinho meio desajeitado. 

— Você não se atreva, Sawamura Daichi! – as mãos de Kiyoko pararam a carícia somente pelo breve instante que levou para afastar a mão do antigo capitão – Eu ainda tô brava demais com você pra te deixar lamentar agora por coração partido! 

— Kiyoko! Mas até o Suga já m- 

— O Suga te desculpou e isso é com ele. Eu respeito a decisão dele de te perdoar mas isso não significa que eu te desculpei! Só porque eu te adoro não significa que você não é um babaca! – a voz, tão visivelmente teimosa e embriagada, arrancou de Yachi outro riso, dessa vez intenso o bastante para cessar as lágrimas e levantar seu rosto. Kiyoko era com Suga tão parecida quanto ela mesma era com Hinata que só pôde rir. 

— O mesmo vale pra você, Kageyama – começou, um sorriso enorme nos lábios enquanto encarava os rostos confusos a fitarem-na – pode ir tirando essa mão da minha cara que quem te desculpou foi o Shouyou e não eu! Ainda tô brava também! Só porque eu te adoro não significa que você também não é um babaca! 

O levantador a encarou firme, os olhos levemente arregalados e os lábios separados em choque, antes de sorrir tão aberto que Yachi foi obrigada a esticar-se até ele e apertar ela mesma o dedo indicador nas bochechas dele. Quando voltou a seu lugar, recostando as costas na própria cadeira, sentiu os braços de Kiyoko envolverem-na pela cintura e então, como se choro nenhum tivesse acontecido, todos à mesa encararam-na sorrindo. No fim, de alguma forma, fosse por aquele encontro já ter ficado tão esquisito e tão pesado quanto podia ficar – mais esquisito e mais pesado até mesmo do que Yachi acreditava que ele pudesse se tornar – ou porque todos ali já estavam tão cansados e bêbados, mas o clima depois da conversa desconfortável com Oikawa, a em-andamento-reconciliação entre ele e Sugawara, e o choro bobo havia ficado mais leve. Tão, mas tão leve, que antes mesmo que pudesse se dar conta, tinha a sua frente um copo de suco nadinha alcoólico e uma conversa despreocupada sobre relacionamentos. 

Descobriu que dali dois dias Asahi e Nishinoya fariam aniversário de namoro. Descobriu que Lev e Yaku de Nekoma estavam juntos e jogando profissionalmente na Alemanha, ainda que não para o mesmo time. Descobriu que Daichi havia realmente namorado a Michimiya após a graduação na Karasuno. Descobriu – sussurradinho em seu ouvido como segredo – que o primeiro beijo de Kiyoko havia sido com Iwaizumi meio que sem querer durante uma confusão estranha entre duas pessoas desconhecidas em um jogo amistoso.  

E deixou-os descobrir sobre si também.   

Confirmou para Nishinoya que a ex-namorada era realmente uma garota e não um garoto como havia feito todo mundo até então pensar. Contou que namoravam escondido na biblioteca da faculdade. Contou do dia engraçado quando Hinata e Kageyama, extremamente envergonhados, chamaram-na para uma conversa e assumiram, aos gaguejos e truncamentos, que estavam juntos mesmo que, na verdade, ela já os tivesse flagrado juntos ao menos três vezes na semana anterior à revelação. Dedurou que Shouyou teve uma queda pelo Aone durante o primeiro ano do Ensino Médio. Foi dedurada sobre uma queda boba que tivera por uma professora no primeiro ano da faculdade.  

Conversou, no fim, sobre todas as coisas que teria conversado se desde o começo todo mundo tivesse dito tudo o que queria. 

Conversou até que a bebida doce não alcoolizada deixasse-a menos bêbada, até que Oikawa e Sugawara percebessem que não estavam sozinhos no bar e juntassem-se a eles à mesa – com um “Opa, aí não, baby!” por parte do ex-capitão do Aoba Johsai quando Suga fez menção de voltar ao mesmo lugar de antes e sentar-se ao lado de Sawamura, e com um sorriso descaradamente provocador por parte do ex-vice-capitão da Karasuno ao apontar para o colo de Oikawa e perguntar “E aí, pode, baby?!” – e até que bocas começassem a abrir-se em enormes bocejos sonolentos e o dono do bar pouco gentilmente avisasse sobre o fechamento às exatas 2 horas e 30 da manhã.    

— A gente não sabia como contar pra vocês... Agora pensando nisso é meio bobo, mas na época a gente teve medo de que vocês se afastassem.  

A pequena nuvem de fumaça a escapar junto às palavras de Asahi denunciavam o quão falso era o calor que os acolhia dentro do pequeno bar. Do lado de fora, o frio intenso estendia-se sem ressalvas pela madrugada de Tóquio, forçando mãos para dentro do bolsos e zíperes casaco acima. Não era o melhor momento para uma caminhada, mas talvez Yachi ainda não estivesse sóbria o bastante para pensar sobre isso. As ruas vazias, o calor do ombro de Kiyoko tocando o seu, as luzes de alguns anúncios que tão mais intensas pareciam no escuro silencioso da cidade que dormia mesmo que teoricamente não devesse nunca dormir faziam-na, apesar do frio, querer caminhar.  

De toda forma, Asahi e Nishinoya não moravam muito longe dali, haviam dito. Só dez minutos a pé. Doze até o pequeno apartamento de Sugawara. Quinze até o de Kiyoko. Então um taxi entregaria, a partir dali, Sawamura do outro lado da cidade. E outro atravessaria o equivalente a cinco estações de metrô para deixar em um quarteirão Yachi e em outro não tão longe Kageyama, Hinata e Oikawa, que havia convencido, depois de insistir muito, o casal de namorados a deixá-lo dormir no sofá do apartamento deles.  

De toda forma, mesmo que fria, aquela caminhada parecia ser a melhor forma de encerrar aquela noite. Assistir Asahi amparar os passos cambaleantes do pequeno líbero, Hinata e Kageyama andarem de mãos dadas, e Sugawara entregar pequenos beijos no queixo de Oikawa enquanto sentia a mão firme de Kiyoko em sua cintura era, definitivamente, um bom fechamento. (talvez não muito para Sawamura, de fato, mas, ela, Yachi, não podia negar estar bastante satisfeita). 

— Asahi nem queria ir pra escola depois daquele dia que você encontrou a gente no armário de limpeza, Yachi! – o riso do pequeno líbero ecoava bêbado pela rua deserta – Eu falava que não tinha problema porque todo mundo lá era gay, mas Asahi não acreditava em mim!  

— Que exagero! Tanaka é hétero, Ennoshita também é... Parando pra pensar, o pessoal do segundo ano era todo hétero, não era?! – a voz grossa e séria de Sawamura certamente não combinava com o quão para esquerda seus passos tendiam a desviar-se – E Kiyoko é bi, não é?! O mesmo pra mim... E Yamaguchi se confessou pra você, né, Yachi?! 

Yachi não queria ignorar o ex-capitão, realmente não queria. Mas ouvir sobre a orientação sexual de Kiyoko enquanto sentia a mão dela acarinhar sua cintura a deixava um pouco atordoada. Não devia, ela sabia. Não era hora pra isso, afinal. Ouvir, contudo, que a garota que passara as últimas 16 horas desejando beijar beijava também garotas era demais para Yachi. Era informação demais para ser processada, principalmente quando acompanhada da revisitação mental de todos os toques que havia trocado com Kiyoko ao longo daquele dia e quando colocada como centro de mais uma série de devaneios com todas as possibilidades que aquela informação trazia. Estava ainda bêbada demais para conseguir lidar com tudo e ainda responder Sawamura. 

— Se confessou. – Hinata respondeu por ela – Um pouquinho antes da formatura. 

— Eu sempre achei que vocês formavam um casal bonito... – Asahi, claramente sonolento, apoiou o rosto no topo da cabeça de Nishinoya e lá escondeu um bocejo – Não deu certo?! 

— Ah!... não... eu não gosto de garotos... – disse de uma só vez, ainda distraída pela bissexualidade de Kiyoko e as perigosas possibilidades trazidas por ela – Quer dizer, eu gosto de garotos. Eles são legais. Eu só não gosto de sair com eles... romanticamente falando... Assim, só garotas... 

Talvez se ao invés da última cerveja – aquela bem grande trazida por Oikawa – Yachi tivesse bebido um suco. Ou talvez se tivesse comido melhor naquele dia. Ou talvez se não tivesse acordado tão cedo para arrumar o cabelo e escolher a roupa. Talvez se Yachi estivesse em um estado melhor do que semiembriagada e extremamente sonolenta na madrugada de Tóquio, ela tivesse percebido o quão incrivelmente estranho era afirmar, com todas as letras e diretamente, o quanto gostava de garotas quando tinha uma garota – uma garota, não sua garota – agarrada à sua cintura. Porque, ainda que em seu atual estado não pudesse com tanta clareza pensar sobre isso e ainda que os acontecimentos do dia – todos os pequenos e sutis toques casuais e o delicado e constante dar de mãos – pudessem tentar convencê-la do contrário, era definitivamente estranha toda aquela proximidade. Ou talvez, no fim, o maior problema era que Yachi queria demais aquele contato para poder perceber o quão estranho ele era.  

Por isso, exatamente por isso, ela não entendeu direito o que foi o olhar suspeito que recebeu de Nishinoya e de Hinata. Nem entendeu porque Sugawara chamou baixinho, em repreensão, o nome de Kiyoko. Nem entendeu porque, de repente, Kiyoko a puxou ainda mais próxima e sussurrou com o hálito a cheirar bebida adocicada de morango um “hum” de compreensão. 

Porque queria, queria tanto, que todo aquele contato fosse normal que não conseguia perceber o quanto ele não era despropositado. O quanto era, inquestionavelmente, tudo, menos casual e normal.    

Yachi só foi isso tudo perceber depois de mais três minutos de uma conversa boba com Nishinoya e depois de outros cinco minutos de uma caminhada silenciosamente sonolenta quando, ao parar em frente a um prediozinho pequeno de apartamentos sem sacada, sentiu outra vez o cheiro adocicado da bebida doce de morango enquanto Kiyoko Shimizu inclinava-se em sua direção e pousava os lábios no canto dos seus.  

E ela quase riu, ainda nessa hora, porque não acreditava que aquele pequeno estalo fora proposital e precisava rir, então, para que o engano provavelmente causado pela embriaguez e algum declive na calçada não se tornasse motivo de constrangimento quando sentiu, dessa vez, o gosto – gosto! não o cheiro – da bebida doce de morango ao ter seus lábios – lábios! não bochechas – tomados em um estalo meio preguiçoso meio úmido meio gelado.  

— Não como cartomante... Posso te ver amanhã? – a voz era só sussurro doce em seus lábios – Posso te ver amanhã como eu mesma? 

E ela riu, de verdade, dessa vez, mesmo que não tivesse pensando em motivo algum para rir. Mesmo que não tivesse pensado em absolutamente nada. Só riu e aproximou-se novamente de Kiyoko para roubar por ela mesma um beijo. Outros dois. Daquele tipo que estala alto porque estala dos dois lados. 

Não disse que sim.  

O 'sim' Yachi só foi dizer em casa. Bem alto, para as paredes do teto do quarto, debaixo do cobertor quentinho e com as bochechas queimando de felicidade, o celular ao lado do travesseiro brilhando ainda a mensagem que combinava o encontro para o dia seguinte, às dez horas da manhã, na mesma cafeteria aconchegante na qual começara o dia anterior.  

O sim que foi repetido no dia seguinte, para o mesmo teto branco do quarto enquanto a mesma mensagem brilhava do lado do travesseiro. 

E repetido outra vez quando tomou o remédio contra dor de cabeça. E repetido quando lutou para conseguir escovar os dentes adequadamente apesar do enjoo. E quando escolheu uma roupa com a toalha de banho enrolada nos cabelos molhados e quando encaixou nos pés um sapatinho ainda mais bonito do que o que encaixara aos pés no dia anterior. 

E que repetiu, baixinho, como se só pra testar se sua voz sairia, às exatas cinco para as dez horas da manhã, enquanto trocava repetidamente o peso de um pé a outro, os lábios inquietos deslizando pelo batom quase vermelho, em frente à cafeteria com o cardápio tentador. 

E que repetiu enquanto esperava pelos cinco minutos adiantados.  

E que repetiu enquanto esperava por outros cinco, atrasados.  

E que parou de repetir para, então, um pouco nervosa e ansiosa, passar a esperar, apenas. 

E esperou. 

Esperou o bastante para que o batom queimasse em constrangimento seus lábios. O bastante para que o sapatinho apertasse-lhe os pés. E o bastante para que o coração, disparado em expectativas, desacelerasse-se frustrado.  

Esperar não era problema. Não era, repetia amarga no lugar do “sim” tão doce. Estava acostumada a esperar. De verdade que estava. Era boa aluna e a ex-namorada a mais empenhada das professoras. Aprendera muito bem o quão rápido o relógio podia girar e o quão variadas eram as desculpas para as inevitáveis voltas que ele dava.  

Entendera errado o horário de encontro. Algum relógio não despertara, outro despertara cedo demais. Não ouvira quando a hora fora alterada. Algum tempo a mais e outro a menos não fariam tanta diferença. Não era grande coisa.  

Esperar não era, portanto, o problema... 

...o problema era esperar por Kiyoko. O problema era ter tanto tempo a mais quando justamente dele alimentavam-se suas expectativas. O problema era o quanto de expectativas tinha criado desde a noite anterior e o quão já não mais podia controlá-las. O problema era o quão expectativas eram perigosamente muito, muito, muito suscetíveis às voltas do relógio. 

Porque, no fim, em algum momento, a pequena e agitada cabeça de Hitoka Yachi muito, muito, muito mais rápido do que as voltas do relógio começou a girar e, inevitavelmente, o tempo da pequena menina-mulher desregulou-se todo.  

Desregulou-se tanto, mas tanto, que Yachi em momento algum parou para contar as horas que tinha e as horas que já não tinha mais. E em momento algum percebeu, portanto, o quanto já estavam perto do fim – aproximando-se inexoravelmente enquanto permanecia a olhar os ponteiros do relógio girarem em frente à cafeteria e enquanto sentava-se no metrô de volta com o relógio escondido dentro da bolsa – das setenta e duas horas do prazo de entrega prometido pelo papel amarelo-gema colado à parede do restaurante universitário. 

Se tivesse percebido, talvez Yachi não tivesse estranhado o elevador antigo parado no seu andar. Nem a porta do apartamento destrancada. Nem o cheiro de comida e nem o rádio ligado. 

Mas estranhou. E, assim estranhada, foi pega de surpresa ao ser recebida por braços que enroscando-se ao seu pescoço, pelo cheiro de perfume de jasmim e por um beijo manchado de vermelho. 

No fim, talvez Kiyoko não estivesse nadinha atrasada. A Kiyoko cartomante, ao menos, estava pontualmente dentro do prazo. O suposto amor havia sido trazido de volta em três dias. 







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Notas finais do capítulo

Olá, olá, tudo bem até aqui?

Espero que tenha gostado do capítulo. Acho que, de todos, esse foi o mais divertido de escrever... provavelmente porque foi o que mais gente teve! hahahhaha
E também provavelmente porque pude escrever bastante do meu OTP supremo de Haikyuu: OiSuga. Inicialmente, não teria tanta coisa assim deles aqui em "Três dias e um quarto", mas quando percebi eles roubaram uma partezona do capítulo! XD... Acho que é o amor pelo OTP vazando mesmo em histórias que não são sobre ele...
E eu sei que um monte de questões ainda estão sem resolução, não só sobre OiSuga, mas também sobre KageHina e DaiSuga. A minha ideia é fazer uma história para eles, na verdade. E espero por isso em prática até o fim do ano. Eles ainda aparecerão por aqui, mas não com a história completa porque o foco é KiyoYachi.
Enfim... espero que tenha gostado! Gostando ou não, a caixa de comentário está sempre aberta pra sua opinião e sugestão! Sou super receptiva mesmo com críticas (só não me xinga, pfv, q o sol é geminiano mas vênus é em câncer e eu choro)
Na próxima semana sai a parte dois do dia 3! Nos vemos lá?

Obrigada por ler ♥
Beijo, beijo, =*
Yuki



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