Três dias e um quarto escrita por Yuki Max


Capítulo 3
Dia 1 – Cartomante, café-com-leite e métodos pouco convencionais




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Dia 1 – Cartomante, café-com-leite e métodos pouco convencionais 


O que Hitoka Yachi mais odiava no mundo, odiava acima de qualquer coisa – exceto, talvez, o sentimento de que não fizera o bastante quando mais poderia ter feito e a certeza de que não tinha absoluto controle sobre sua própria vida – era perceber como incapaz era, apesar do quão inquestionavelmente perigoso isso fosse, de impedir a si mesma de perder-se dentro dos próprios pensamentos agitados demais. 

Os olhos tão ansiosos correndo por todo o restaurante universitário, os dedos das mãos torcendo-se juntos ao redor da caneca de café-com-leite, as pernas repetidamente remexendo-se por baixo da pequena mesa de dois lugares: Yachi odiava, realmente odiava, o quanto mal podia acalmar-se o bastante para manter sobre controle a respiração enquanto esperava a dona do número de telefone que encontrara ao pé do papel amarelo-gema chegar e sentar-se à sua frente. Mesmo que, independente do quanto repetidamente imaginasse a cena em sua mente, ainda faltassem dez minutos para que isso acontecesse. Dez longos minutos.  

Dez minutos dos quais – apesar da precisão com a qual os cronometrara no pequeno relógio em seu pulso – já dolorosamente se arrependia. 

Eles eram, afinal, ainda que parte de seu plano, agora ela percebia, uma ingenuidade completa. 

Sorriu ansiosa.  

Plano! Sentia-se boba por ter realmente acreditado nele! 

O banho rápido, a roupa discreta, o cachecol e a touca a cobrirem-na parcialmente o rosto, o pedacinho de chocolate lançado para dentro, o suspiro intenso lançado para fora, a mensagem cuidadosa enviada à colega de turma com desculpas para sua ausência na aula, a escolha cautelosa da mesa que possibilitasse a interferência de Shouyou caso necessária, a distância calculada com cuidado para que, apesar da proximidade, o ruivo passasse despercebido, e, por último, os dez minutos de antecedência para que familiarizasse-se com o ambiente e preparasse-se para quando a cadeira à sua frente fosse finalmente ocupada: tudo perfeitamente calculado – desde o instante no qual acordara até o instante no qual sentara-se na mesa escolhida – para que nenhuma ponta ficasse solta e nenhuma chance tivesse aquele encontro de ser tão absurdo quanto parecia irremediavelmente destinado a ser. 

Ingenuidade! Pura ingenuidade!  

Agora sentada, com a xícara grande de café-com-leite entre as mãos e os olhos presos aos ponteiros que pareciam-se arrastar-se por entre os números pequeninos, tinha tempo mais que o bastante para perceber o quão absurda fora a ideia de que poderia de alguma preparar-se para o que estava prestes a acontecer. Como iria preparar-se para algo que nem sabia como era? Para encontrar alguém que desconhecia por completo? Para fazer algo com o que nunca nem sonhado havia? Era impossível! Não havia caminho ou plano algum capaz de guia-la. E a cada novo segundo pulsando em seu relógio mais certeza tinha de que também não havia nela pulmões o bastante ou no mundo oxigênio o suficiente para que pudesse convencer-se do contrário e acalmar-se.  

Dez minutos era tempo demais! Tempo demais! E ela, apesar de ingênua o bastante para tê-los deliberadamente escolhido, não era ingênua ao ponto de acreditar que eles não fariam estrago algum.  

Fariam. 

Muito. 

Dez minutos, ainda mais daqueles que tão mais do que 60 segundos pareciam durar, seriam mais do que o bastante para que seu coração sobrecarregasse, tão rápido que batia, e parasse de vez. Para que, enquanto seu coração ainda batesse, sua imaginação vagasse por todos os lugares possíveis – absurdos, sensatos, fundamentados, infundados, doces, amargos. 

O quão perigoso era encontrar-se com alguém que não conhecia. O quão perigoso era revelar detalhes de sua vida para uma desconhecida. O quanto de histórias que já havia ouvido sobre jovens sequestrados. O quanto valiam seus órgãos no mercado-negro. O quão estranhas deviam ser transações no mercado negro. O quão longe iria para conseguir um órgão para alguém que amava e precisasse urgentemente. O quanto deveria ter escolhido comida melhor do que um café-com-leite para ser sua última refeição. O quanto, apesar disso, aquele café-com-leite era especialmente mais gostoso do que o da cafeteria da lanchonete da faculdade de Artes. O quanto não deveria estar tomando café, fosse ele com ou sem leite, bom ou ruim, quando já estava tão nervosa. O quanto a ex-namorada dizia para controlar com cuidado a quantidade de cafeína e açúcar. O quão irônico era estar encontrando uma cartomante para trazer de volta a ex enquanto bebia cafeína tão terrível e exageradamente adocicada. O quão pouco provável era que a ex descobrisse o que fazia se não fosse ela mesma a contar. O quanto não devia criar expectativas sobre a promessa no papel amarelo-gema e acreditar que encontraria a ex para contar sobre o café. O quanto criava expectativas mesmo assim. O quão mal diagramado era o papel amarelo-gema. O quão ruim era a cor dele. O quão surpreendentes eram os kanjis que o assinavam. O quanto de tempo fazia que não via a ex-gerente do clube de vôlei da Karasuno. O quanto não devia estar pensando na ex-gerente do clube de vôlei da Karasuno. O quanto de saudades sentia do colégio. O quanto de tempo não ouvia falar de alguns dos amigos. O quanto gostaria de retomar contato com eles caso sobrevivesse ao ataque da cartomante-sequestradora-ladra-de-órgãos. O quanto tão melhor seria se, ao invés de cartomante-sequestradora-ladra-de-órgãos, sentasse-se à sua frente a ex-gerente do clube de vôlei. O quão mais doce tornava-se o café enquanto progressivamente esfriava-se. O quão absurdo era pensar que aqueles kanjis pertenciam a Kiyoko Shimizu. O quanto não tinha prova nenhuma disso. O quão perigoso era, portanto, encontrar-se com alguém que não conhecia... 

... e revelar detalhes de sua vida... 

... porque podia ser uma sequestradora.... 

... e que então deveria ter fumado ao menos uma vez na vida, só pra fazer seu pulmão um pouquinho menos melhor... 

... mesmo que não tivesse certeza do quão bem ele estava funcionamento naquele momento... 

... o que talvez o fizesse valer menos no comércio ilegal de órgãos... 

— Hitoka-chan, acalme-se! 

A voz alta demais, animada como se risonha, arrastou os olhos que Yachi mantinha ainda tão focados ao relógio de pulso para a cadeira à sua frente, agora ocupada por Hinata Shouyou, o rapaz que deveria estar olhando-a de longe e vigiando para evitar que seus pulmões – e todos os outros órgãos, se possível – fossem roubados. 

Piscou algumas vezes, confusa, antes de mais uma vez desviar dele os olhos e deixá-los correr pela lanchonete, agora mais cheia do que antes, em quase desespero. 

— Shouyou! O que está fazendo aqui?! E se ela chegar? 

— Se ela chegar, é melhor me encontrar aqui com você do que te encontrar hiperventilando sozinha. – os olhos castanho-avermelhados reviraram-se levemente – Eu estava lá, olhando de longe só... Mas vim buscar algo pra comer e te vi com esses olhões arregalados. Está pensando demais de novo! 

Torceu o cenho, rendida, e sentiu o peito pesar. 

— Shouyou, qual a possibilidade de que isso tudo seja uma má ideia? 

A risada alta de Hinata foi tudo o que precisou para entender qual era a resposta para aquela sua pergunta. E, ainda que pouquinho, permitiu-se tentativa de expirar um sorrisinho nervoso.  

— Relaxa, apesar disso vai dar tudo certo... Planejamos tudo, não é?! E o restaurante está mais ou menos cheio, nada de ruim vai acontecer... – ele disse, dessa vez mais baixo, a voz bem firme – Se se sentir desconfortável, é só levantar e sair. Eu vou estar te olhando da minha base secreta... Bem ali. – apontou, os olhos castanhos-alaranjados fitando brevemente a mesa a alguns poucos metros de distância antes de revirarem-se – Ali, olha só, do lado daquele cara suspeito de óculos de sol e boné dentro de um restaurante fechado! – suspirou fundo, rindo baixinho – Desculpa, Hitoka-chan, ele insistiu e eu acabei falando para ele o que íamos fazer... acho que ele ficou preocupado...  

Hitoka encarou ainda por um breve instante a expressão arrependida do amigo e a mesa para a qual ele apontava antes de entender o que acontecia.  

Um riso escapou fugido de seus pulmões, como se cuspido, enquanto os olhos castanhos-mel fitavam surpresos o rapaz que encarava fixamente a mesa que no momento dividia com Shouyou. E, então, não foi preciso segundo olhar algum para reconhecer nele Kageyama Tobio.  

Realmente gostaria de dizer que a surpresa deixara-a brava. Realmente gostaria. Ver o antigo levantador da Karasuno vestir-se daquela forma era, contudo, nostálgico demais para que pudesse zangar-se com ele. E, ainda que não gostasse de admitir, vê-lo ali –teimosamente ali, mesmo que não convidado – para ajudá-la em um plano com o qual ele sequer concordava era o bastante para amolecer seu coração.  

Limitou-se a bufar, portanto, falsa irritação. 

— Por favor, só tira dele aquele boné terrível. – pediu, os olhos sorrindo disfarçadamente enquanto assistia Shouyou afastar-se e caminhar a passos rápidos em direção à mesa escolhida pelo namorado, duas mesas afastadas de onde ele inicialmente sentara-se. 

Inspirou fundo para esconder a vontade de deixar escapar novamente o riso ao ver o dedo acusatório de Shouyou apontar para o boné, e seu peito pareceu bem devagarinho livrar-se da tensão que acumulava até então ao assisti-lo sentar-se à distância pequena de Kageyama, relaxado e sonolento. Podia jurar, mesmo assim longe, que escondidinhos debaixo da mesa os dedos do discreto casal atavam-se juntinhos. 

Inspirou fundo outra vez.  

Talvez não fosse tão má coisa ter Kageyama de volta.  

O alívio, contudo, e o sorriso discreto que já não mais podia conter, sequer tiveram tempo de perfeitamente instalarem-se em seus olhos antes que eles ao máximo abrissem-se, assustados pelo apito alto do celular sobre a mesa.  

Uma mensagem! 

A atenção desviou-se rapidamente para o relógio de pulso apenas como garantia do que já desconfiava: os dez minutos haviam-se passado. 

“Acabei de chegar. Como te encontro?” – leu na pequena tela, letras negras no fundo cinza. 

Aquela era, oficialmente, sua última chance de recuar. Um ‘Nossa! Desculpa, esqueci completamente que havíamos marcado! Fica pra próxima, então! Desculpa fazer você vir à toa’ e todos os seus problemas respiratórios e cardíacos estariam imediatamente resolvidos.  

Antes que se decidisse, contudo, sobre recuar ou sobre perder de uma vez tudo o que havia dentro do peito, uma nova mensagem pululou na pequena tela: 

“Esquece! Já te achei!”  

'Esquece! Já te achei! Esquece! Já te achei! Esquece! Já te achei!' 

Leu outras três vezes, rapidinho, o conteúdo das pequenas letrinhas, antes de plenamente entendê-lo.  

Olhou ao redor em desespero.  

Como fora achada?  

Não lembrava-se de ter enviado a descrição das roupas à cartomante. Lembrava-se perfeitamente, afinal, de como fazia parte de seu plano – parte fundamental! – que a cartomante se descrevesse primeiro e que ela mesma só o fizesse depois de dar uma boa olhada nela.  

Fora a touca? O cachecol? Ela parecia suspeita demais? Era assim que pessoas se vestiam antes de encontrar cartomantes? 

Ou era parte do poder dela? Trazer o amor de volta e reconhecer quem precisa dele? 

Ou tinha o rosto tão evidentemente desesperado por amor de ex-namorada que tornara-se a única possibilidade possível de abordagem dentro do restaurante quase cheio? 

Qualquer que fosse o motivo, teve certeza de que não teria tempo para encontrá-lo e escondê-lo no momento no qual, involuntariamente, seus olhos cruzaram rapidamente com os de Shouyou e Kageyama. No momento em que viu os olhos castanho-alaranjados abrirem-se largos em misto de diversão e empolgação e os olhos azuis escuros esconderem-se envergonhados por trás do boné, Hitoka Yachi não teve dúvidas que era tarde demais para qualquer coisa. 

— Quanto tempo, Yachi! 

Os olhos ainda presos nos dois rapazes a algumas mesas de distância fecharam-se apertadinhos enquanto, sem nada que pudesse fazer para evitar, seu rosto voltou-se para baixo e corou-se intensamente.  

Aquela voz! 

Lembrava-se tão bem dela que não pôde evitar que suas bochechas coradas fossem empurradas devagarzinho para o um sorriso pequenino.  

Quanto tempo não a ouvia? Quatro? Cinco anos?  

Os olhos abriram-se de súbito quando ouviu alto o som da cadeira à sua frente arrastar-se, e, mesmo que ainda os tenha mantido baixos por todo o tempo durante o qual a garota à sua frente acomodava-se, não teve dúvidas em momento algum quanto a quem era a dona da voz.  

Estaria mentindo, afinal, se afirmasse estar surpresa.  

Tinha clandestinamente imaginado aquela exata cena tantas e tantas vezes e de tantas e tantas formas diferentes... 

... a voz baixinha, o perfume suave, a proximidade quase palpável... 

... tantas e tantas vezes a mesma imagem, e tantos e tantos desfechos para tudo. 

Mas, agora, com a realidade a botar louco seu coração, não sentia-se capaz sequer de levantar os olhos da sapatilha vermelha bonitinha remexendo-se inquieta e fitar o rosto de Kiyoko Shimizu.  

Diria o quê? Fingiria ter sido pega de surpresa enquanto envergonhada dizia a Kiyoko que já esperava por alguém e que a cadeira estava ocupada só para ouvi-la confirmar que era a cartomante? Fingiria que sabia desde o começo que era ela a cartomante e diria que fora tudo um plano seu e de Shouyou para juntar novamente o pessoal do clube de vôlei? Diria que, no fundo, estava surpresa por estar certa em suas desconfianças e feliz por ver a ex-gerente?  

Diria o quê? 

— Ah! Desculpa... sou eu, Kiyoko Shimizu. Karasuno, lembra? 

Os olhos presos ao chão levantaram-se de imediato, surpresos e culpados.  

Kiyoko achava que não lembrava-se dela? Como poderia não lembrar-se? 

Separou os lábios, decidida... 

‘Eu nunca me esqueceria de você!’, era o que gostaria de poder gritar, provavelmente enquanto balbuciava incongruentemente memórias do tempo passado na Karasuno para provar o quão bem se lembrava.  

... Mas nada saiu.  

... Nada além de um suspiro. Meio bobo, meio engasgado. 

Abaixou o rosto de novo, envergonhada, não conseguindo evitar que sorriso enorme preenchesse todo seu rosto. 

Ela estava tão linda!  

Kiyoko estava tão absolutamente linda! 

E Yachi podia jurar, jurar de pés juntinhos, que já sabia o quão bonita aquela mulher poderia ser e que não cairia nunca mais tão boba, com sorriso tão largo, aos pés dela. Estava mais velha agora, afinal! Tinha experiência! Não era mais a menina inocente que fora abordada pela garota mais bonita do colégio no corredor! 

Mas, céus, Kiyoko estava tão linda!  

Os cabelos mais curtos, a franjinha fofa transformada em um franjão charmoso a emoldurar o rosto agora com traços mais firmes, a pintinha ao lado dos lábios parecendo tão mais encantadora pelo batom leve que os pintavam, um sorriso discreto preenchendo-os e transbordando até acalcarem os olhos acinzentados, levemente cerrados por doçura, brilhando tão bonitos por trás da armação vermelha. 

Não valia de nada que mais velha ficasse quando Kiyoko também mais bonita ficava!  

Era o contrário, provavelmente. Agora, mais velha; agora, quando entendia exatamente o que sentia; agora, que entendia completamente a própria sexualidade, parecia ainda mais intenso do que quando mais nova. O que sentia ao fitar a ex-gerente do clube de vôlei – tão, tão bonita! – era agora tão mais palpável e concreto...  

... palpável e concreto o bastante para que apenas nisso se fixasse, os olhos fixos em lugar algum embaixo da mesa, o sorriso tão aberto.  

— Você cresceu tanto! – o coração bateu ainda mais rápido quando mais uma vez a voz suave a atingiu. Sabia que devia estar parecendo boba, tão calada e de rosto baixo em frente à ex-companheira de time, mas, por mais que esforçasse-se, não conseguia olhá-la novamente – E deixou o cabelo crescer... lembro como sempre dizia que os queria bem compridos! 

O sorriso, antes tão intenso, mingou um pouquinho em surpresa.  

Estava sendo mesmo muito boba! 

— Segui seu conselho... 

Sussurrou baixinho, a memória das conversas casuais e despreocupadas que tinha com a garota mais velha invadindo-lhe a cabeça. Muito, muito boba era o que era! Aquela era Kiyoko! Era ainda Kiyoko. Não havia motivos para tantos silêncios, nem lugar para todos eles. Mesmo que tão diferente de antes, mesmo com todo o tempo passado, aquela era ainda a garota que a encarava diretamente nos olhos e os semicerrava levinho com carinho. Que piscava demorado em sua direção e sorria complacente. Que dividira o chão da quadra consigo durante horas e que madrugara em seu quarto em frente a pranchetas com estratégias. 

Levantou os olhos, todo o receio e angústia desaparecendo de seus pulmões ao encontrar no rosto tão bonito a exata expressão que queria encontrar: o sorriso brando, os olhos aconchegantes. 

— Faz tanto tempo, Kiyoko! 

O sorriso que recebeu da garota sentada à sua frente foi o bastante para que não mais se importasse em parecer a garota inexperiente de quando estudavam na Karasuno. Não se importava de sentir-se assim. Não mais. Aquecia o peito pensar que ainda pareciam com as duas meninas sentadas no canto da quadra esportiva, papéis com dados de outros times pousados ao lado e conversas despreocupadas sobre qualquer coisa. 

Sorriu de volta, portanto. Daqueles sorrisos que cerram os olhos quase que por completo. 

— Tudo bem com você? – perguntou, porque era aquilo tudo o que importava.  

E, sim, Kiyoko estava bem. Ou, ao menos, tão bem quanto alguém poderia estar alguém no último ano da graduação. Estudando psicologia – e isso ela já sabia. Morando sozinha em um apartamento de 3 cômodos bem pequeninho – e isso ela também já sabia. Trabalhando de meio-período em um café aos sábados e domingos – e isso, sim!, era novidade. Fugindo das aulas, assim como ela mesma. Alimentando-se de cafeína, assim como ela mesma. Lutando para conciliar estudos e trabalho. Triste porque não podia mais trabalhar todos os dias por causa da proximidade e dificuldade do fim do curso. Desanimada porque Tóquio não era cidade barata. Frustrada porque não podia ver com frequência os amigos. Insegura com o que fazer depois de receber o diploma. Preocupada se a clínica na qual periodicamente fazia estágio a contrataria ou não depois de formada. Animada com o fim dos anos intensos de estudo. 

E Yachi sentia-se quase embriagada ao ouvir tudo o que dizia Kiyoko, encantada por conhecer a quantidade de sentimentos que podiam caber dentro dela. Era outro daqueles pensamentos bobos, ela sabia. Era óbvio que Kiyoko podia sentir tantas e tantas coisas, Yachi só não sabia que podia ouvi-las todas, ditas tão sinceras, tão relaxadas, que podia ver os olhos arregalando-se, revirando-se, cerrando-se; as mãos remexendo-se inquietas, metendo-se por entre os fios curtos, repousando relaxadas sobre a mesa.  

Não lembrava-se de Kiyoko ser tão expressiva. Era uma garota forte, disso sabia. E decidida. Mas, quando mais novas, havia algo de introversão nela. Alguma coisa que a fazia lembrar-se que, na maior parte das conversas entre elas, era sempre Yachi a falar e Kiyoko a ouvir. Yachi a pedir conselhos e Kiyoko a acolhê-la. Havia, portanto, algo naquilo de estar em frente à Kiyoko, ouvindo-a falar sobre si mesma, que a deixava quase orgulhosa.  

Como se, agora, elas fossem iguais e como se, agora, pudesse ser ela a acolher a garota mais velha.  

E como se, agora, toda a pressão que sentia por encontrar a ex-gerente do clube de vôlei se esvaísse no ar.  

— ...Quem vejo com mais frequência é o Daichi. E o Suga, claro! 

Yachi não era, contudo, o tipo de pessoa que com frequência era abençoada pela sorte. O tipo de pessoa que ela era, afinal, era o tipo que arranca casquinhas de feridas e, ainda que não muito satisfeita com a própria sina fosse, Hitoka Yachi sabia muito bem como os dois tipos pessoas não podiam coexistir. É incrivelmente fácil, afinal, que o azar ache feridas não cicatrizadas. Fosse o roxo no joelho que sempre parecia chamar pela quina do armário. Fosse o corte na mão que sempre parecia atrair novas lâminas. Ou fosse o primeiro-amor-de-infância com um sorriso nos lábios e um “claro” limpo e sonoro a lembrando que namorava uma das pessoas mais doces que conhecia, Sugawara Koushi. 

Elas, definitivamente, não estavam em pé de igualdade. Não quando Kiyoko tinha sorrisos e Sugawara, e ela tinha o número de uma cartomante no celular e uma ex-namorada que a odiava.  

Inspirou fundo, um gole do café-com-leite gelado descendo grosso pela garganta. 

— E está tudo bem com Suga? 

A pergunta não saiu tão casual quanto ela queria que saísse, mas, ainda assim, em momento algum ela realmente acreditou que seria capaz de fazê-la soar desinteressada. Estava interessada, afinal. O fato de ter decidido por si mesma, no primeiro ano de graduação, a não mais procurar saber sobre a vida amorosa de Kiyoko não significava que não estava interessada em saber mais sobre os dois. Lembrava-se, afinal, o quão frustrada ficara ao saber que o amor-não-correspondido de todos os anos do colégio era irremediavelmente e inalcansavelmente hétero. E lembrava-se muito bem do choro guardadinho na garganta quando pela primeira vez vira, em fotos, o quão fofos Kiyoko e Sugawara ficavam juntos. Mas, ao mesmo tempo, lembrava-se também como ficara feliz pelo namoro e o quanto não fora desinteresse o que afastara-a. Ela apenas aprendeu, em algum momento entre os filmes água-com-açúcar e barras de chocolate, que deveria parar de procurar saber sobre eles e parar de curtir fotos dos dois nas redes sociais.  

— Ah! – Kiyoko olhou-a surpresa – Você ficou sabendo, então? – a voz, antes alta, desceu alguns tons, tornando-se pesada – Bom... não foi fácil, ele ficou bem mal com tudo, principalmente no começo... Mas... está tudo bem agora, eu acho. No fim uma parte se resolveu quando o Daichi voltou do intercâmbio, falta só a outra, mas Suga é teimoso demais pra admitir. – os olhos acinzentados encararam-na com atenção enquanto progressivamente preenchiam-se novamente de doçura – Mas não se preocupe, Yachi. Tenho certeza que no fim vai dar tudo certo! E, de toda forma, algumas partes foram até meio engraçadas... Suga tem lados bastante surpreendentes.  

Yachi não sabia qual era a expressão em seu rosto naquele momento. Não sabia, também, por que, ao fim, junto com o sorriso complacente, Kiyoko buscou uma de suas mãos e deixou ali um carinho de conforto. Tudo o que Yachi sabia era que não tinha a mínima ideia do que Kiyoko estava falando. E que, independentemente disso, não podia simplesmente perguntar sobre o que ouvira, não quando olhos tão doces a encaravam. 

— Fico feliz, então! – disse, portanto, porque era tudo o que poderia dizer. 

— Sim... Falando nisso, são Hinata e Kageyama ali? – as mãos, agora mais uma vez longe das suas, apontaram para a mesa na qual os dois garotos sentavam-se. Yachi não pode evitar rir quando Hinata pulou na cadeira e Kageyama escondeu-se ainda mais embaixo do boné – Foi assim, também, que te achei. Hinata estava concentrado olhando fixo para cá e Kageyama estava vestido igualzinho à quando ia espionar jogadores de outros times, olhando para todos os lados, menos para cá... 

— Eu disse pro Shouyou que eles pareciam suspeitos! – riu, parcialmente divertida parcialmente envergonhada por ter sido daquela forma descoberta, acenando para o amigo e assistindo-o sorrir exageradamente quando Kiyoko se juntou a ela no aceno, também sorrindo – Mas ele disse que não me deixaria encontrar a cartomante sozinha por nada no mundo! 

Um arquejo baixinho escapou dos lábios de Kiyoko antes que ela os arredondasse e os escondesse timidamente com uma das mãos. Yachi a teria achado adorável se, naquele exato momento, também não estivesse surpresa, tapando também os lábios. 

O clima leve, as conversas despreocupadas, a suavidade do reencontro inesperado: ambas as garotas haviam se esquecido plenamente do que as colocara ali juntas. 

Yachi fitou uma última vez Kiyoko escondendo um risinho baixinho com a palma da mão antes de baixar os olhos e cerrá-los firmes. 

Como pôde esquecer? E como pôde tão despreocupadamente esbarrar no assunto e citá-lo casualmente como se não fosse aquele, para ela, o maior motivo de agonia e nervosismo desde que encontrara o papel amarelo-gema no mural de entrada daquele mesmo restaurante?  

Seu único consolo era que, indubitavelmente, não fora a única a esquecer. O leve rubor que encontrou no rosto de Kiyoko Shimizu ao abrir os olhos foi toda a prova que precisava para ter a certeza de que não era a única envolvida com a companhia ao ponto de esquecer o porquê de estarem ali juntas. E isso, mais até do que quando ouvia Kiyoko despreocupadamente conta-la seus problemas, a fez feliz de jeito que seria incapaz de descrever. 

E foi só essa felicidade, a disparar tão rápido seu peito e quase forçar a seus lábios um sorriso enorme, que a impediu de desmoronar e fugir quando o olhar doce e surpreso de Kiyoko transmutou-se em seriedade e preocupação.  

— Ele está cuidando de você. Isso é bom... – os olhos acinzentados encontraram uma última vez o rapaz a ainda acenar animado antes de fixarem-se definitivamente em seu rosto. 

Yachi sabia, agora, que já não havia mais escapatória. Já não era mais possível – independentemente do quanto ela desejasse – ignorar que aquela à sua frente era, além de Kiyoko Shimizu e paixão-juvenil, a dona do número de telefone estampado no papel amarelo-vibrante e a cartomante que supostamente traria sua ex-namorada em 3 dias. 

De repente, então, por mais que até segundos atrás não quisesse nem mesmo pensar no fato de estar diante da cartomante do papel-amarelo, percebeu ter milhões de perguntas a Kiyoko. 

Se antes de encontrá-la sabia que havia sido ela a enviar a mensagem contratando seus serviços. Como acabara como cartomante. Qual era o processo de trazer o amor de volta. Se outras vezes já havia feito aquilo. Se era ali mesmo que fariam tudo. Se havia cartas ou pedras na pequena bolsa lateral que pendia da cadeira. Se apenas traria a ex de volta ou se a manteria também sempre a seu lado. Se era injusto fazer isso com uma pessoa. Se já havia visto funcionar alguma vez. 

Tantas perguntas. Tantas. Tantas. 

Tantas que nem sabia como começar.  

Tantas que, no fim, Kiyoko foi quem perguntou. Talvez porque, tão decidida, parecia ter apenas uma pergunta a fazer: 

— O que aconteceu, Yachi?  

E Yachi, sinceramente, desejou com todo o seu coração ser, naquele momento, sonsa. Poder rir confusa e amolecer a voz enquanto perguntava um “como assim?” alongado nas tônicas. Porque assim, talvez assim, ganhasse tempo o bastante para decidir o que falar. 

Não que ela não estivesse preparada para devidamente contar à cartomante o que queria. Ela havia voluntariamente ido até ali, havia voluntariamente enviado a mensagem marcando o encontro e havia voluntariamente fotografado o papel amarelo com o número da cartomante. Consequentemente, ela, a grande arrancadora de casquinhas de feridas, já havia tido aquela conversa dentro de sua própria mente mais vezes do que seria capaz de contar. Sabia o que diria. Sabia o que a cartomante diria. Sabia o que diria caso a cartomante não dissesse o que sabia que diria. Sabia o que diria se a cartomante fosse uma ladra de órgãos. Sabia o que diria se nada saísse como imaginara e sabia o que diria se tudo saísse exatamente como queria. 

Só não sabia, infelizmente, o que dizer quando a cartomante era Kiyoko Shimizu. Quando a pergunta era “o que aconteceu?” e não “o que posso fazer por você?”. 

E, miseravelmente, quando, do outro lado da mesa, ao invés dos olhos profissionais, ou desleixados, ou cansados, ou desinteressados, ou etéreos ou qualquer outra coisa que havia suposto preencher olhos de cartomantes, havia aqueles olhos genuinamente preocupados.  

Porque ela não podia dizer: “Eu quero minha ex-namorada de volta porque sou teimosa” para Kiyoko. Porque havia tantas coisas erradas nessa frase, tantas coisas que não queria dizer àquela garota. 

Kiyoko ainda esperava, contudo, os olhos nos seus pressionando-a a ir adiante. 

— Desculpe... A gente pode ir aos poucos se for mais fácil assim. Eu vou fazer perguntas e, então, você pode respondê-las se sentir-se confortável o bastante para responder, ou falar sobre outras coisas se quiser, ou ficar em silêncio se quiser que eu passe pra próxima pergunta. Tudo bem para você se for assim? 

Acenou positivamente, mais porque era aquilo o que Kiyoko esperava dela do que por realmente querer ir adiante. Não via forma de que aquilo ficasse tudo bem para ela. 

— Por que procurou uma cartomante, Yachi? – perguntou, a voz branda. 

Inspirou fundo. Àquela pergunta sabia responder. Não era difícil, não havia dúvidas ou oscilações. As frases que acompanhavam o número de telefone no papel amarelo eram bastante claras.  

— Por causa do amor de volta em três dias. – a voz escapou levemente rouca, minguando um pouco quando Yachi percebeu o quanto, assim ditas em voz alta, as palavras soavam absurdas. Amor de volta em três dias?! Até aquele momento, aquilo não soara tão absurdo quanto agora. Mas era, de fato, absurdo – Porque eu não consegui não fazer nada e isso era tudo o que ainda tinha pra fazer. – acrescentou na tentativa de corrigir o absurdo do desejo de amor-expresso, mais sincera do que planejara ser.  

Arrependeu-se do que disse, contudo, no instante que os olhos acinzentados piscaram, surpresos.  

— Então você já tinha feito outras coisas antes de me procurar? 

Torceu o cenho, primeiro em surpresa, depois por não saber como, exatamente, deveria responder àquela pergunta.  

— Depois de terminar? – perguntou, assistindo outra vez Kiyoko surpreender-se com sua resposta. 

— Sim. 

— Hm... – torceu mais firme o cenho. Não fizera nada, na verdade. Pensara, de fato, em fazer várias coisas. Enviar mensagens, ligar, procurar pelos amigos em comum, ir até o apartamento da amiga com quem sabia que a ex estaria. Não havia feito nada disso, contudo – Na verdade, não. Procurei Shouyou, só. Depois encontrei o anúncio e decidi ligar. 

Poderia ter acrescentado que invadira o apartamento de Shouyou com cervejas após o término e que lá ficara até a manhã seguinte, impedida por ele de sair. Poderia ter acrescentado o quanto entendia que só não fizera nada porque o amigo mantivera-a ocupada com mensagens estranhas e convites inusitados. Calou-se, contudo. 

— E antes? Antes de terminar? 

Lançou altas as sobrancelhas, a mão involuntariamente disparando para frente dos lábios, as unhas curtas prendendo-se firmes ao lábio inferior. 

Oh! Antes de terminar, então sim, ela, definitivamente, fizera dezenas de coisas para trazer de volta o amor. Tantas e tantas. Tantas que nem podia contá-las, nem mesmo se quisesse. Metade delas alcançando o exato efeito contrário e ainda mais afastando-a da ex. Quase todas terminando em brigas. Surpresas pequeninas transformadas em acusações de invasão de privacidade. Presentes inesperado transformados em acusações de chantagem. Encontros românticos transformados em acusações de traição. Declarações doces transformadas em acusações de possessividade. Conversas sérias transformadas em portas batidas com força e ligações não atendidas. Perfume novo ignorado, lingerie vermelha nunca nem vista, jantar especial guardado em potinhos e comido requentado ao longo da semana.  

Tantas coisas que nem podia contá-las... 

... nem mesmo para Kiyoko. 

— O normal, eu acho. Mas não deu muito certo. Eu sou meio ruim nessas coisas de relacionamentos. – disse, as mãos deixando o lábio inferior para poder com liberdade abri-lo em um sorriso tão contraditoriamente falso e verdadeiro quanto suas palavras.  

Kiyoko abriu os lábios uma única vez, umedecendo-os de leve antes de leva-los ao copo de café que pedira momentos antes. O silêncio dela impregnava em Yachi o desconfortável ímpeto de continuar a falar. Segurou-se, contudo. 

— Quanto tempo vocês namoraram? 

Suspirou aliviada. Aquela era outra das perguntas que podia responder. 

— Um ano e meio. Mas já nos conhecíamos há dois. – sorriu levinho, pensar sobre o início do namoro aquecia seus pulmões. Kiyoko sorriu de volta para seu sorriso, os olhos também amornando.  

— Como vocês se conheceram?  

— Hm...Tive dificuldades em uma matéria e fui para monitoria. Estatística. Achava que seria impossível alguém entender estatística. Bem... havia alguém que entendia... E, no fim, depois de conversar, chegamos à conclusão que, exceto quanto à estatística, tínhamos bastante em comum. – riu, desta vez mais alto, os dedos dos pés remexendo-se inquietos dentro da sapatilha vermelhinha – Mas só começamos a namorar depois que o semestre terminou. Nos reencontramos em um bar.  

Não contou sobre os beijos trocados escondidos atrás de livros na biblioteca. Não contou sobre as cantadas bobas sobre probabilidades de que roupas ficassem mais bonitas amassadas juntas no canto do quarto. Não contou que continuou visitando a monitoria mesmo depois de ter declinado da matéria, uma optativa. Não contou o quão bonita sentiu-se quando a ex-namorada abraçou-a no fim da noite do bar, sob seus lençóis, e gabou-se do quanto era boa em previsões estatísticas.  

Mas, dessa vez, não contou porque queria manter tudo guardadinho só para si mesma. 

— Alguém que entende de estatística? Agora entendo por que me procurou. É o tipo de pessoa que a gente não pode deixar escapar facilmente. 

A voz gentil, bem baixinha, chamou de volta à Kiyoko a atenção que havia se perdido em memórias. O sorrisinho adorável que encontrou no rosto da garota foi o bastante para que, pela primeira vez desde o término ou, ainda, pela primeira vez em muito tempo, não se sentisse mal por sentir falta da ex-namorada. Como se, mesmo que ainda bem pouquinho, a culpa abandonasse por uns instantes. 

— Eu não conheço muita gente que entende disso... Deve realmente ser uma pessoa bastante peculiar...  

Yachi riu. 

— Peculiar não é bem a palavra que eu escolheria. – disse, ainda rindo – É um espírito livre, sabe? Tem um magnetismo que mantém todo mundo perto e dá vontade, em quem está longe, de aproximar-se... Como um centro gravitacional... – completou, o sorriso tornando-se paulatinamente, paulatinamente, mais artificial. 

— Como um sol? 

“Não. Não como um sol. Shouyou é como um sol... Ela não...” – pensou. 

— Sim, exatamente como um sol. – disse.  

Foi sua primeira mentira.  

— E esse foi o primeiro término de vocês? 

— Hm... não o primeiro, mas foi o único assim sério. 

Foi sua segunda mentira. 

— E ficaram separados por muito tempo da outra vez? 

— Não me lembro direito... uns pares de dias, eu acho. 

Sua terceira. 

— Não é como se tivesse sido sério, briguinhas bobas... Coisinhas que el-ele dizia e eu entendia errado e daí gerava mal-entendido. Mas a gente resolvia rápido... El-ele sempre entendia meu lado e explicava o dele também... 

Quarta. Quinta. Sexta. 

— Ele voltava todo manhoso e não dava para resistir a aqueles olhinhos de gatinho sem dono. Uma vez ele planejou um encontro todo fofo porque eu tinha entendido errado uma mensagem no celular dele... 

Sétima. Oitava. 

— Ele era um amor. E às vezes eu ficava com ciúmes porque ele fazia as coisas sems me dizer antes. Mas é bobagem! Ele tem que ter a vida dele, né?! Era bobagem minha, porque foi meu primeiro namoro sério e às vezes eu ficava meio perdida sobre como devia agir... Mas ele era super paciente e me ensinava que eu estava passando dos limites e tudo mais... Ele gostava de mim de um jeito especial, sabe?! 

— E foi por ciúmes que vocês terminaram dessa vez, também? 

— Não, não... nada como isso. Foi outra bobagem... nem consigo me lembrar direito... Mas foi minha culpa, também... 

Mentiu uma última vez. 

Então calou-se, incapaz de olhar Kiyoko nos olhos e encontrar nela qualquer indício de que ela percebesse o amargo em sua boca e o engasgo em sua garganta.  

Não queria ter mentido. Nem uma vez. Verdadeiramente não queria. Não para Kiyoko. Não quando fora ela mesma que voluntariamente dispusera-se a procurar por ajuda para ter de volta a ex-namorada. Precisava, contudo, delas, precisava de cada uma daquelas mentiras, as mais pequenas e as mais óbvias. Precisava desesperadamente. 

Talvez, no fim, justamente porque era Kiyoko sentada ali à sua frente. 

Talvez se fosse outra a cartomante, teria conseguido cumprir sua promessa de contar a verdade. Sabia que precisava ser sincera para que aquilo funcionasse. Sabia que precisava ser aberta e dizer à cartomante tudo o que ela precisasse saber. 

Mas não podia ser aberta quando a cartomante era Kiyoko.   

Porque não queria que Kiyoko soubesse que não havia “ele” algum naquela história. Não queria que soubesse que o ex-namorado era na verdade uma garota. Não queria que soubesse o que realmente havia por trás da término. Não queria que soubesse como arrastou o namoro para além de onde ele podia ir. Não queria que soubesse o quão maior do que parecera era seu ciúme. Não queria que soubesse o quão paranoica era. Não queria que soubesse como era controladora. Não queria que conhecesse todas as verdades por trás de todas as suas mentiras. Não queria que Kiyoko encontrasse nela toda a culpa que tão fundo escondia. Não queria que Kiyoko se afastasse com medo do desejo dela por garotas. 

Mesmo que, no fim, talvez isso impossibilitasse o cumprimento da promessa da volta do amor em três dias e dificultasse o trabalho da garota que sentava-se do lado oposto da mesa, tão solícita. 

— Desculpe... Eu não dei muitos detalhes, né?! – a desculpa escapou-lhe como se engasgada. A culpa por saber que estava atrapalhando Kiyoko esmagando seus pulmões. – Você pode fazer mais perguntas se precisar... – acrescentou, a voz e os olhos ainda baixinhos. 

— Tudo bem... Eu já sei tudo o que preciso saber por agora.  

A voz gentil e a mão macia a envolver a sua em carinho leve deram a Yachi coragem o suficiente para erguer novamente os olhos até o rosto de Kiyoko. Diferente da suavidade da voz e do toque, contudo, os olhos acinzentados estavam espantosamente sérios, como se furiosos.  

Apenas uns instante durou, contudo. Assim que encontraram-se com os seus, amenizaram-se em um sorriso. 

— Vamos começar, então. Temos só três dias, afinal... – a seriedade ainda manteve-se na voz de Kiyoko por algumas sílabas antes de dissolver-se, tornando-se misto de doçura e animação – Ainda tem coisas que preciso saber, mas descobriremos tudo ao longo das nossas 72 horas... Então não se preocupe! – assentiu para ela, contagiada pelo ar profissional que Kiyoko assumira – Nos encontraremos de novo amanhã. – sorriu suave, o polegar entregando pequena carícia sobre seu polegar – E pensaremos em tudo juntas. 

Os olhos castanhos-mel arregalaram-se de imediato. 

— Amanhã? De novo? 

— Você não pode? 

— Não... não é isso... mas... eu achei que era só... a gente se encontra e fala sobre o amor de volta, e quem é e... e daí você traria ele em três dias...  

— Bem... você ainda não me disse quem é... 

Corou intensamente, as bochechas queimando forte ao ponto de fazer lacrimejarem seus olhos.  

— Não disse... – engasgou baixinho, a culpa por não ter entregue à garota informações o bastante e obrigá-la a encontrar-se consigo novamente conflitando com o medo da reação que ela teria caso entregasse aquela informação em específico – Desculpe... 

— Não, não... não é só por isso. – disse rápido, a mão sobre a sua apertando-a devagarzinho – Precisamos nos encontrar amanhã e, por... três dias – encarou-a, confusa, o rosto ainda corado preenchendo-se de curiosidade – Um acompanhamento para maiores chances de sucesso. Nós nos encontraremos para que você me conte mais sobre seu ex-namorado e para que, daí, eu possa saber com mais certeza quais serão os métodos mais efetivos para trazê-lo de volta. Mais três encontros! 

— Encontros? 

— Encontros. – a voz, outra vez baixa, outra vez doce, confirmou – Como um serviço personalizado. Você pode? Não quero atrapalhar seus planos... 

— Eu? Não... Mas e suas aulas? É seu último ano. Tem certeza que não vai te atrapalhar? Eu já estou te atrapalhando bastante te fazendo vir até aqui hoje, não é?! Não quero te atrapalhar ainda mai- 

A mão suave, ainda sobre a sua, entregou-lhe um novo leve aperto. 

— Nunca iria me atrapalhar, Hitoka. 

Kiyoko sorriu e Yachi, então, nada pode fazer além de também sorrir e assentir, os olhos fechando-se bem de levinho e o polegar acarinhando de leve a mão macia de Kiyoko Shimizu. 

Mão que ainda pode sentir na sua por muito tempo depois de tê-la soltado. Muito depois de receber dela um aceno de despedida. Muito depois de ter, também por si mesma, acenado de volta. Calor suave que continuou sentindo aquecê-la mesmo enquanto assistia as aulas da tarde. Mesmo enquanto o dia progressivamente tornava-se mais frio. Mesmo enquanto a noite caía. E mesmo enquanto mais uma vez gelava os dedos na sorveteria pequena e bonita que visitara com Shouyou no dia anterior.  

E que, de alguma forma, continuou mantendo-a quentinha mesmo enquanto sentia cada membro de seu corpo arrepiar de vergonha ao contar a Hinata e a Kageyama – que recusou-se a ficar longe desta vez – tudo o que acontecera nas três horas que passara sentada na cafeteria com Kiyoko Shimizu. 

E calor que, vergonhosamente, pareceu espalhar-se como fogo, queimando vermelhas suas bochechas, enquanto Kageyama resolvia que era uma boa ideia contá-la – despreocupadamente, como se não fosse nada demais – coisas que ela teria dado de tudo para saber há algumas horas.  

— Ah! Eu não tinha contado?! – ele dizia, a voz meio preguiçosa, o sorvete tão perto dos lábios que Yachi mal podia conter a vontade de enfiá-lo pelo nariz do levantador – Acho que esqueci... 

— Espera... – pediu, engolindo em seco, o sabor doce do sorvete já esquecido sendo substituindo pelo azedo da incredulidade – Você está me dizendo que na verdade a Kiyoko nunca namorou o Suga? E que você só esqueceu de contar?! Assim?! Como se não fosse nada?! 

— Parece que os pais do Suga vieram visitar uma vez a casa dele aqui e viram que ele estava morando com alguém... – continuou, ignorando a acusação e o eminente perigo de permanecer com a postura tão relaxada – Daí ele disse que era a Kiyoko. Porque parece que os pais não aceitavam muito o fato de que ele é gay e ele achou melhor esconder que era o Sawamura-san que morava com ele. Mas os pais espalharam para todo mundo que ele estava morando com ela. Daí o boato saiu de controle e a Kiyoko achou melhor confirmar até que ele se assumisse para os pais ou até que ele não fosse mais dependente deles... – o levantador torceu o cenho e baixou o olhar para o sorvete – Ou foi o contrário? Os pais do Daichi não aceitavam e isso saiu do controle... Não lembro direito... 

— O Suga é gay?! Não, espera... Não é isso! E... Não, mas... Eu soube que eles estavam morando juntos de verdade! Foi a última coisa que soube antes de parar de procurar saber sobre ela! – rebateu, exaltada. 

— Eles realmente moraram juntos depois que o Sawamura-san saiu em intercâmbio... Não sei direito o porquê, mas parece que Sugawara-san ficou bem mal nessa época. – Yachi piscou aturdida, era disso que Kiyoko estava falando quando falou sobre Suga?! – Como eles são bem amigos e ele não podia pagar sozinho o aluguel, eles realmente foram morar juntos... Moraram por um bom tempo. Dois anos, se não me engano. Mas há uns 8 meses o Sawamura e o Suga voltaram a namorar e resolveram morar juntos de novo. – calou-se brevemente, o último pedacinho da casquinha do sorvete sumindo entre seus lábios – Não sei se a Kiyoko namorou alguém nesse meio tempo. Só sei que ela não namora o Suga. 

Yachi encarou-o perplexa, o restante do sorvete inerte a derreter devagarzinho sobre a mesa, incapaz de dizer nada, incapaz até mesmo de absorver todas aquelas informações. 

— Wow, Kageyama! – a voz animada de Shouyou quebrou o silêncio da mesa – Você sabe bastante sobre isso! 

— Sim! Você! – acusou Yachi – Como você sabe de tudo isso? 

— Ah! – uma careta invadiu o rosto do levantador – Fiz um trato com o Oikawa.  

— Com o grande-rei? 

— Ele disse que ia me dar uma dica imbatível para saques se eu aceitasse beber com ele e ouvi-lo.  

— Tá... e...? – pediu Yachi, impaciente. 

— E ele queria ter certeza de que eu estava prestando atenção, então me contou tudo um monte de vezes e me fez repetir... – a careta relaxou por um instante, contorcendo-se em um sorriso que quase igualava-a em questões estéticas – Foi assim que consegui aquele saque do Nacional desse ano. 

— Wow! Aquele que fez vuuum e acertou em cheio na linha de fund- 

— Não! Espera! Espera! E o que tem o Oikawa com essa história? Como ele ficou sabendo disso? 

— Ah! Ele namorou o Sugawara... – explicou, completamente alheio ao choque da garota que o fitava tão fixo. 

— Oikawa namorou o Suga? 

— É. 

— Espera... quê? 

— Ah... essa parte não entendi muito bem porque o Oikawa bêbado funga... Parece que eles se encontraram em um bar. Ele tinha acabado de ser rejeitado e o Sugawara estava triste com o intercâmbio do Sawamura... eles acabaram juntos. Terminaram um tempo depois que o Sawamura voltou. – a careta voltou ao rosto de Kagewama – Ele me obrigou a pagar uma rodada de tequila pra ele porque, segundo ele mesmo, ele merecia uma recompensa por ter sido bonzinho e terminado com o Sugawara pra deixa-lo livre. Mas parece que eles ficaram juntos quase um ano... ou era um e meio? Ou meio só? É... isso não me lembro... 

— Você está brincando comigo? 

— Não... – defendeu-se o levantador – Eu não lembro mesmo! 

Yachi fitou Kageyama, séria. Era plenamente incapaz de discernir se o que mais desestabilizava-a era a despreocupação boba do amigo ao conta-la a história ou se a despreocupação do amigo por não tê-la contato antes. Sabia que aquele modo de agir era parte de quem ele era e sabia que normalmente aquilo a faria rir. Naquele momento, contudo, realmente queria poder enraivecer-se o bastante para levar a cabo o recente plano de fazê-lo engolir pelo nariz o sorvete derretido sobre a mesa.   

Sua indecisão, contudo, sobre como deveria lidar com Kageyama, deu ao outro rapaz sentado à mesa tempo o bastante para reagir.  

Hinata engoliu de uma só vez o sorvete que ainda tinha nas mãos e preencheu o desconfortável silêncio entre eles com um riso divertido. 

— Nossa! Que bobão você é, Kageyama! – declarou entre risos, o dedo parcialmente sujo de creme levantado em riste em direção ao rosto do namorado e a outra mão a cobrir os lábios em tentativa inútil de conter o riso alto. 

O rosto antes relaxado do levantador avermelhou-se de imediato, contorcendo-se em indignação e contrariedade. 

— Cala a boca, Hinata bobão! Você é o bobão, não eu! 

— Você é! – retrucou o pequeno sol, brilhando intenso. 

— Você! 

— Você! Bobão supremo!  

— Você! Rei do reino dos bobões!  

— Você! 

— Você! 

— Voc- 

— Ai céus, eu fiz papel de boba, não fiz? Pensando que ela estava com o Suga... 

Se os olhos castanhos-mel não estivessem tão firmemente fechados e cobertos por suas mãos pequenas, Yachi provavelmente teria rido da reação causada por sua declaração: dois pares de olhos abertos aos limites, assustados e culpados, encarando-a por alguns instantes antes de encontrarem-se um com o outro, o castanho-sol desesperado e o azul-constelação perdido. 

— Hitoka-chan! – começou Hinata, exaltado – Você não é boba! 

— Yachi, – completou Kageyama – Foi minha culpa. Você não tinha como saber... 

— Sim! Foi culpa do Kageyama bobão, não sua! 

— Oe, Hinata! 

— Mas Shouyou... eu agi toda espertona como se soubesse de tudo e fiz cara de paisagem quando ela disse coisas que não entendi fingindo que estava entendendo e no fim eu estava pensando que ela estava com o Suga que é gay e está namorando o capitão ai meu deus o que eu fiz!  

— Hitok- 

— Ela deve estar pensando que sou uma doida! 

— Não está não... Oikawa-san disse que Sugawara-san disse que Kiyoko-san disse que sempre gostou muito de você! 

— Kageyama, você é como uma velha fofoqueira! Não conhecia esse seu lado... 

— Oe, Hinata! 

— Enfim, Hitoka-chan... Kiyoko nunca pensaria que você é doida. Até porque você não é.  

— Tá, mas... 

— E amanhã vocês tem um encontro, não é?! – interrompeu-a Hinata – Então você tem coisas mais sérias pra se preocupar agora... 

— Oe, Hinata! Você vai deixar ela mais nervosa, bobão! 

— A propósito... – continuou ele, ignorando o namorado com um aceno de mão – Não entendi direito isso de encontro... o que exatamente vocês vão fazer? 

— É estranho, não é?! Não é?! E agora?! Eu não sei o que vamos fazer! O que eu vou fazer!? O que fazem as pessoas em encontros com cartomantes?!  

— Eu não faço a mínima ideia de como cartomantes funcionam... Então não sei se é estranho. – comentou, casualmente, Kageyama e, em um segundo, dois olhos empolgados fixaram-se nele. 

— Eu também nunca fui antes em uma cartomante! – declarou Hinata – Então não é estranho! 

O levantador torceu o cenho receoso... 

— Oe, Hinata, acho que não é bem assim que funciona a lógica... – começou... 

... mas era tarde demais... 

— Ai meu deus, você tem razão! – cortou-o Yachi – Eu não sei o que é estranho porque não sei o que é o normal! Mas conheço alguém que sabe e essa pessoa disse sobre encontro... Então deve ser certo! Kiyoko sabe o que está fazendo! 

Yachi não viu Kageyama revirar os olhos. Também não o viu enviar no celular uma mensagem. Assim como também não percebeu como o estranho abraço de despedida entre eles fora mais longo do que normalmente seria.  

Nada disso importava, contudo. Não quando, depois de falar com os amigos, seu peito tão mais rápido batia. E não quando, devagarzinho, todo seu corpo parecia ter voltado a aquecer-se, o calor dos dedos que Kiyoko tocara espalhando-se novamente. 

Ao fim da noite, tudo o que Hitoka Yachi podia pensar ao pousar as bochechas avermelhadas sobre o travesseiro era no quão doce soara Kiyoko ao responder sua ansiosa pergunta sobre a possibilidade de que tudo funcionasse com um baixinho e melodioso: 

“Trazer seu amor de volta? Eu espero, Yachi, espero com todas as forças, que sim...”  








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Notas finais do capítulo

Olá, olá, *.*
Obrigada por ter lido!!! Espero que tenha curtido! ♥
A história entrou, agora, na contagem dos três dias! E eu juro que, ainda que agora todas as coisas estejam ainda um pouco confusas (não só com relação ao casal principal, mas também aos outros que surgiram - KageHina, DaiSuga e OiSuga), tudo vai se desenrolar nos próximos capítulos. ♥

Obrigada, mais uma vez, por ter lido!
Nos vemos no próximo?
Beijo, beijo, =*



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