Três dias e um quarto escrita por Yuki Max


Capítulo 2
Dia 0 - Sorvete, coisas que dão errado e letrinhas no canto da folha


Notas iniciais do capítulo

Olá, olá, *.*

tudo sucesso?
Aqui vai o segundo capítulo da história.
Para acompanhar, a música "The Girl" de City and Colour é uma ótima pedida! O link vai estar nas notas finais!

Obrigada por ter lido o capítulo anterior e por ter voltado para ler este!
Espero que goste,



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Dia 0 - Sorvete, coisas que dão errado e letrinhas no canto da folha 



O que Hitoka Yachi mais odiava no mundo, odiava acima de qualquer coisa – exceto, talvez, o sentimento de que não fizera o bastante quando mais poderia ter feito –, era sentir que sua vida não caminhava em linha reta, submissamente guiada pelas regras em sua mente preestabelecidas.  

A hesitação diante do botão de discagem, os olhos bem abertos durante toda a madrugada, a imaginação vagando por todos os caminhos que não devia, a sensação de impotência por trás de cada imagem colorida repetidamente trazida à tela do celular por seu dedo indicador: Yachi odiava, realmente odiava, como apenas a decisão de ligar para o contato recentemente salvo à agenda e reaproximar-se de uma vez por todas do amor a supostamente apenas três dias de distância não fora o bastante para fazê-la, de fato, ligar.  

Sim, odiava aquilo. Realmente odiava.  

E talvez fosse o sono, ou talvez os pesadelos que atormentaram-na durante todos os pouquíssimos minutos daquela madrugada fria nos quais conseguira manter as pálpebras cerradas, mas, naquele momento, com os olhos ardendo em sono, as costas firmes contra a cabeceira da cama, as mãos metidas com força entre os cabelos descoloridos e a atenção presa no celular entre as pernas, sobre o colchão, parecia odiar ainda mais. 

Odiava a rapidez com a qual toda sua coragem transmutava-se em insegurança. Odiava as mãos trêmulas em receio. Odiava a respiração descompassada. Odiava o aperto na garganta. E odiava, odiava principalmente, perceber que, independentemente do quanto odiasse isto, apenas sua decisão não bastava para que algo fosse feito; que, diferente de como planejara em seus apaixonados planos, era impossível fazer com que tudo seguisse a ordem que queria: sua decisão ligando-se à uma ação que diretamente se ligaria a outra ação que se ligaria à outra e depois à outra até que um ponto final – dos bons ou dos ruins – fosse colocado, até que as fotos coloridas que fitava na pequena tela colorida sobre o lençol fossem deletadas definitivamente ou até que novas fotos fossem acrescidas a elas.  

Mas nada acontecia.  

Nada além do progresso inexorável dos números no relógio digital no cantinho do aparelho celular. 

5:57  

5:58 

5:59 

6:00  

Cada minuto sentenciando-a a mais uma culpa por nada conseguir fazer e a mais um ódio por ter tanto o que, naquela manhã tão fria de terça-feira, odiar.  

Um sorrisinho leve pintou-se em seus lábios. 

Não era bem assim, ela sabia. Apertar o botão de discagem não era tão simples quanto queria fazer-se acreditar. Não quando os dedos pareciam-lhe pesar toneladas e não quando na tela do celular encaravam-na os olhos verdes tão bonitos da pessoa cujo cheiro ainda podia sentir em seus lençóis.  

O que ela diria se a visse daquela forma? O que diria se soubesse que ao lado de fotos de seu sorriso tão brilhante havia na galeria a foto de um papel amarelo com o número de uma cartomante? 

Sorriu de novo, desta vez ainda mais fraco. O formigamento em seu peito rumando inexorável até sua garganta, prendendo-se ali um pouquinho antes de ainda mais subir, através de suas bochechas, queimando os já ardentes olhos. 

Não piscou, sabia o que aconteceria se o fizesse. Ao invés disso, fixou ainda mais os olhos nos olhos verdes que mesmo no quarto escuro, mesmo através da tela pequena, pareciam poder vê-la por completo. Esquivou-se minimamente, envergonhada. Não precisava que ninguém lhe dissesse isto para saber que estava, com os olhos cercados por olheiras, os cabelos desgrenhados enrolados nos dedos e os pensamentos vagando em círculos inúteis, patética. E patética nunca foi, absolutamente nunca, a forma como Hitoka Yachi gostava de sentir-se, independente do quanto viesse dessa forma sentindo-se ultimamente. 

Inspirou fundo uma, duas, três vezes, soltando devagar os fios loiros para com ambas as mãos agarrar o pequeno celular prateado e pôr-se mais uma vez a deslizar o dedo indicador pelas dezenas de fotos, demorando-se nelas o bastante para um pequeno arrepio frio instalar-se no fundo de sua barriga. Hesitou uma última vez antes, os dedos correndo devagarzinho pelo rosto tão bonito dos olhos verdes, antes de rumar decidida até o fim da galeria, os olhos cansados novamente fixos no papel amarelo-gema. 

Não seria patética, não mais uma vez. 

Soltou todo o ar dentro dos pulmões de uma só vez, piscando firme na tentativa de esvaziar a cabeça. Precisava estar inteira, concentrada, para lembrar-se de todos os números no canto do papel amarelo e não errá-los ao salvá-los como novo contato. E precisava, realmente precisava, de tudo o que pudesse arrancar de si mesma para digitar a mensagem mais polida e profissional que fosse capaz de bolar... 

... mesmo que, no fim, um “bom dia”, ao lado de caretinhas felizes que não pretendia enviar, tenha sido tudo o que conseguira escrever antes que seu celular apitasse alto, causando nela susto que arrancou dolorido da garganta um sonoro soluço e de seus dedos pressão o suficiente para o envio da mensagem não-terminada. 

Por um segundo, um bem breve, o coração da pequena menina-mulher disparou com a possibilidade absurda de que a cartomante já houvesse enviado resposta à pergunta que nem mesmo fizera. Não era o caso, contudo, e Yachi não precisou ler mais do que uma linha da mensagem surgida na tela do celular para ter certeza disso. Mensagem alguma de cartomante alguma, afinal, teria sido capaz de tão leve botar em seus lábios um sorriso. E mensagem alguma de cartomante alguma, afinal, independentemente do quão boa fosse a cartomante, poderia ter trazido a Yachi tão prontamente exatamente o que precisava naquela manhã de terça-feira tão fria.   

“Se não sair de casa hoje, vou tomar todo o sorvete do mundo sozinho!!!!! Você vai ver só, Hitoka!!!!! Se prepare!!!!” – foi o que leu, rapidinho, antes de cerrar leve os olhos e rir riso alto que limpou todo seu peito.  

‘Shouyou’ seria o nome que teria visto assinar a mensagem se seus olhos não tivessem tão facilmente cedido ao riso. Não que precisasse tê-lo lido. Havia, afinal, apenas uma pessoa no mundo que seria capaz de enviar mensagem com tal conteúdo às seis horas de uma manhã de terça-feira gelada de início de inverno no seu segundo dia solteira. Apenas uma capaz de rechear com tantas exclamações as tão poucas palavras. Apenas uma que seria capaz de fazê-la rir tão abertamente apesar do cansaço, do desânimo, da culpa, da raiva e das fotos ainda gravadas em seu celular: Hinata Shouyou, seu pequeno sol particular, aquele que teimosamente a alcançaria mesmo que ainda mantivesse as cortinas ainda tão rigorosamente fechadas.  

Inspirou fundo e espreguiçou-se, permitindo-se outro riso alto, permitindo-se outra vez ler a mensagem, permitindo-se sair da galeria de fotos, permitindo-se até mesmo desviar-se, ainda que por hora, daqueles olhos verdes que a encaravam tão firmes através das imagens coloridas.  

E permitindo-se, ainda que contrariada, não importar-se com o que insinuava o amigo com a mensagem tão exagerada em pontuação. 

Conhecia Shouyou bem demais. E, conhecendo-o assim tão bem, sabia exatamente o que havia por trás daquela mensagem.  

Torceu o sorriso, involuntariamente estalando leve os lábios. Estaria irritada, normalmente, cada mínimo centímetro de seu imenso orgulho revirando-se em contrariedade ao notar que, por mais que tentasse disfarçar com todos os pontos de exclamação em excesso, o melhor amigo estava preocupado e, ainda que por baixo dos panos, esforçando-se para evitar sua reclusão. O que significava que – e isso revoltava seu estômago – era isso o que Shouyou estava esperando dela: reclusão, e, ainda pior, reclusão do tipo que até mesmo declinava de convites para doces inadequados à estação. 

O primeiro impulso foi digitar rapidinho um “Estou bem, Shouyou. Não preciso disso.”, seco e rude, os pontos tão diferentes das exclamações que recebera. Porque, de verdade, tudo o que Hitoka Yachi menos queria no mundo era preocupar Hinata Shouyou. Não daquele jeito, não depois de tudo o que acontecera com ele nos últimos seis meses. Não depois de tudo o que Kageyama fizera a ele.  

No lugar da mensagem rude, contudo, tudo o que direcionou ao amigo foi um baixinho, bem baixinho, “que merda, Shouyou”.  

Como podia culpa-lo por preocupar-se? O que ele estava fazendo era exatamente o que ela fizera com ele há cinco meses. Shouyou a estava entregando, e isso apertava seu peito de uma forma diferente de como até então o sentia apertar-se, exatamente o que precisou quando Kageyama terminara com ele. Queria evitar que ela fizesse as besteiras que ele mesmo fizera. Queria evitar que, sozinha, afundasse-se nos infundados pensamentos de que poderia fazer ainda mais pelo namoro que tão recente ruíra, exatamente como ele afundara-se. Mas, se de um lado era isso o que Shouyou queria, do outro, tudo o que ela, Hitoka Yachi, queria, era que ele não se preocupasse.  

Girou devagar o celular entre os dedos, entregando um sorrisinho pra a foto sorridente que ela mesma escolhera como imagem de perfil do amigo. 

Era inevitável, não era?! Ele já estava preocupado. Mesmo que ela pudesse jurar não ter dado a ele motivos para isso em momento algum. 

Inspirou fundo, controlando o impulso de voltar à galeria de fotos.  

Daria qualquer coisa para não ter começado a pensar sobre aquelas coisas ao receber a mensagem de Shouyou. Qualquer coisa para não entender nada do que Hinata fazia por ela. Porque, assim, talvez assim, pudesse não sentir-se tão culpada ao decidir que, apesar de tudo, se deixaria mimar por ele.  Desta vez, talvez só desta, se deixaria cuidar um pouco. Porque, verdadeiramente, pela primeira vez em anos, resignadamente admitia que talvez – talvez! – precisasse realmente do colo dele. E precisava, verdadeiramente precisava, ouvir dele o quão triste não deveria sentir-se, ouvir o quão bobo era olhar fotos antigas, ouvir que sorvete era o melhor para coração partido. 

Digitou, portanto, meio-sorriso os lábios, ainda metida dentro do cobertor:  

“Quero sorvete! A gente pode tomar enquanto te conto meu novo plano de batalha e te convenço a me acompanhar até uma cartomante. Às três?” 

A resposta demorou quinze minutos a chegar, Yachi fez questão de checar. E ela soube, soube com cada centímetro de seu corpo agora fresco de banho, que Hinata passara por um longo processo antes de enviá-la. Podia vê-lo arregalando os olhos, surpreso, podia vê-lo empolgando-se, podia vê-lo correr até Kageyama com um sorriso enorme nos lábios. Podia ver a carranca mal-humorada matinal de Tobio contorcer-se em surpresa e desagrado, e podia ouvir a voz agora tão grossa do antigo levantador da Karasuno anunciar sem nenhuma hesitação “Ei, Hinata bobão, isso não é uma boa ideia”, apesar da animação evidente que o ruivo provavelmente mostrava diante da mensagem.  

Podia ver tudo como se a cena desenrolasse diante de seus olhos: a ruga de preocupação de Kagewaya progressivamente alcançando também o cenho de Hinata e o seu pequeno sol percebendo que talvez ir a uma cartomante não fosse uma ideia tão boa quanto a empolgação inicial fazia parecer. E exatamente por ser tão capaz de imaginar a cena, sequer se surpreendeu ao ler no visor de seu celular um:  

“Nem pensar, Hitoka-chan” 

Não respondeu, contudo, limitando-se a rir a riso solto. 

Que foi também tudo o que pode fazer, rir divertida, quando, depois das aulas da manhã, depois da rápida passada no refeitório central da universidade e depois da rápida checada no mural a procura do papel amarelo gema – então não mais lá –, às 15 horas, encontrou Hinata em frente à sorveteria que há poucos meses haviam juntos descoberto e dele ouviu outra vez: 

— Nem pensar, Hitoka-chan! 

Porque, exatamente como havia imaginado, ali estava a ruga de preocupação, igualzinha à que o antigo levantador da Karasuno vestia quando contrariado. Pensou em provocá-lo quanto a isso, perguntar a Shouyou se ele sabia que o tempo junto ao namorado estava deixando-o com as mesmas expressões caricatas e mal-encaradas dele, mas sabia que não era uma boa ideia provocá-lo daquela forma, não quando ele a olhava tão sério. Enganchou, portanto, o braço ao dele e o arrastou até a sorveteria, apenas. Ignorando a atenção toda que chamavam e limitando-se a resmungar um sorridente “Oi para você também, Shouyou!” enquanto o pequeno sino pregado à porta anunciava a entrada dos dois.  

O cumprimento não foi devolvido. Nem ele e nem nenhuma outra palavra deixou os lábios torcidos em repreensão de Hinata Shouyou. Nem enquanto escolhiam o sabor do sorvete e os confeitos. Nem enquanto retiravam os pesados casacos e acomodavam-se nas confortáveis cadeiras estofadas de uma mesa no canto. Nem enquanto deliberadamente estendia o silêncio imposto por ele e bebia primeiro um gole de sua água com gás, depois enfiava uma pequena colherada do sorvete de morango entre os lábios.  

Assim como o cenho franzido, tinha certeza de que aquilo também era coisa de Kageyama. Hinata nunca manteria o olhar sério e repreensivo enquanto tinha uma taça de sorvete a sua frente. 

Cedeu, portanto, porque, diferente do olhar tão concentrado e dos lábios tão rígidos, a teimosia era, sim!, inegavelmente, coisa de Shouyou. Esperaria pela vida toda se fosse esperá-lo falar. 

— É injusto e você sabe disso! – declarou, decidida, os lábios abertos demais na tentativa de aliviar o quão geladas o sorvete tornara suas palavras, comemorando silenciosamente o quão confuso piscaram para ela os olhos castanho-vibrantes.  

Hinata provavelmente não esperava que fossem aquelas as suas palavras.  

Ou talvez Kageyama não o tivesse aconselhado a nada além da expressão carrancuda. Kageyama nunca fora, afinal, o melhor dos conselheiros.  

A confusão, contudo, logo foi substituída pelo cenho franzido. E os olhos castanho-alaranjados tão vivos desviaram-se de seu rosto, fitando sérios uma das paredes da pequena loja, coberta de quadros de sorvetes coloridos. Yachi estava pronta a bufar, pedindo-o para dizer o que queria, quando o ouviu dizer: 

— O que é injusto? – perguntou, por fim, dando de ombros, a atenção ainda todinha na parede.  

— Que eu não possa fazer nada! 

Os olhos castanhos-empolgação abriram-se largos e fitaram-na rapidamente antes de, mais uma vez, desviarem-se para as paredes. Yachi não pode evitar torcer o cenho para o comportamento anormal do amigo, se antes eram apenas suspeitas, agora não tinha dúvidas de que aquilo era reação a algum conselho estúpido que ele havia recebido do namorado para desincentivar a ida dela à cartomante. A contemplação dos quadros coloridos durou um pouco mais, desta vez. O tempo de meter por entre os lábios uma, duas, três porções de creme confeitado. 

— E quem disse que não pode fazer nada? 

Os olhos do ex-meio-de-rede da Karasuno fixaram-se tão sérios em seu rosto que, ainda que involuntariamente, Yachi não pode deixar de dispensar, apesar de todos os pensamentos já acumulados em sua cabeça, atenção ao rapaz à sua frente, sorrindo leve apesar de toda a seriedade que os maxilares tensos dele exprimiam.  

Hinata tinha algo, sempre soubera disso, e soubera mesmo antes desse algo tornar-se fundamental para ela. Ainda que, verdadeiramente, se perguntada sobre, provavelmente nunca fosse capaz de dizer como ou quando isso acontecera. Como todas as coisas incríveis do mundo, não fazia ideia de qual fora o momento no qual Hinata tornou-se para si a exata pessoa que gostaria de dividir um sorvete após o fim de um namoro, como se num instante o tivesse visto na quadra da escola no segundo semestre do primeiro ano colegial e no instante seguinte o número dele fosse o primeiro na lista de discagem do celular.  

O que, de fato, não fora o que acontecera. Ainda que a sensação de ter sempre Hinata como seu melhor amigo fizesse-a acreditar que ele estivera sempre ali numa linha reta, muito havia acontecido antes de chegaram a aquele banco estofado numa tarde gelada de terça-feira. Aulas particulares em vésperas de provas, infinitos conselhos furados, mensagens de incentivo, brigas, choros sofridos, um beijo desajeitado no segundo ano do colegial, caminhos errados, decisões tortas, descobertas plenamente inesperadas, segredos contados com as mãos trêmulas, infinitas garrafas de cerveja barata, broncas de fazer tremer os ossos, apoio bobo que apoia mesmo quando não pode. Havia tanto, mas tanto para guardar na memória, que tornava-se fácil esquecer-se do quanto haviam mudado nos seis anos nos quais se conheciam, do quanto ele já não era mais um garoto hiperativo com sonhos tão maiores que ele mesmo e ela não era mais uma garota insegura com imaginação de mais e coragem de menos. Ao menos na teoria.      

Hinata tinha algo, contudo, que a deixava pensar assim: que ele fora sempre isso o que era: uma parte sua, essencial. Uma energia, uma postura, uma inesperada concentração e seriedade, uma empolgante energia leve, algo que ela não sabia explicar o que era mas que, naquele exato momento, precisava urgentemente. Algo que parecia crescer dentro dele quanto mais velho ele tornava-se, ou crescer dentro dela quando mais próximos se tornavam. Algo de uma maturidade instintiva que tanto contrastava com os trejeitos despojados e traços delicados. Que a faria ouvir todos os conselhos que ele entregasse, ignorar a maioria, e depois voltar correndo para outros ouvir e ignorá-los quase todos. E continuamente voltar. Sempre. Sempre.   

— Você disse que não era uma boa ideia. – rebateu, um suspiro escapando-lhe, a voz bem baixinha. 

— Não disse. – os olhos castanho-alaranjados, ainda que firmes, suavizaram-se levemente.   

— Mas pensou! 

— Pensei! – assumiu, um sorriso travesso na expressão ainda a tentar-se séria. 

— E é injusto. 

Um riso alto escapou dos lábios de Shouyou, ainda que, aparentemente, ele estivesse até então tentando segurá-lo. 

— E por que injusto?  

— Porque eu tenho que fazer alguma coisa!  

— A gente tá andando em círculos aqui, Hitoka-chan! – reclamou, e Yachi rolou os olhos, estalando baixinho os lábios, pronta a responsabilizá-lo por todos os supostos giros que juntos davam, mas calou-se ao ver que, outra vez, os olhos castanhos-alaranjados tornaram-se sérios – Vai me contar agora, então, o que aconteceu?  

Yachi não precisou de segundos pensamentos para entender sobre o que perguntava Shouyou e, ainda que disto envergonhada, desejou, pela primeira vez no dia, que o amigo ainda mantivesse os olhos nas paredes. Assim talvez ele não a teria visto tremer vergonhosamente e não teria visto como seus próprios olhos, castanhos-mel, desviaram-se para longe da conversa. Mas não pôde evitar. De todas as perguntas, afinal, que poderia fazer o amigo, aquela era a única que ela gostaria de ignorar.  

Não que ela fosse fazer isso.  

Já o havia feito antes, duas vezes. A primeira na madrugada de domingo, poucas horas depois do término, quando invadiu o apartamento que ele dividia com o namorado com nenhuma explicação além de uma caixa de cerveja e um “ótimo, ela que se foda” dito com a boca cheia de salgadinhos. A segunda quando desviou, na manhã seguinte, da xícara de café que ele entregava e furtivamente correu até seu próprio apartamento. 

Não faria de novo. Se havia alguém no mundo para quem contaria sobre o fim do relacionamento, esse alguém certamente era aquela pessoa sentada à sua frente. 

Hinata, contudo, provavelmente pensou que ela escaparia novamente, carregando a voz com aquele tipo de preocupação que tanto aumentava o aperto na garganta de Yachi ao dizer: 

— Você não precisa falar disso se não quiser... mas acho que faria bem. 

Sorriu fraquinho, baixando os olhos e acenando positivo, o “eu sei” enroscado nos pulmões. Sabia que ele tinha razão. Só não sabia se saber disso era o suficiente.  

— Nós terminam-ela terminou comigo no domingo, você sabe. – começou, quebrando o silêncio do qual naquela hora contrariamente tanto precisava. Franziu o cenho, balançando outra vez a cabeça afirmativamente e inspirando fundo, já arrependendo-se de ter começado a contar – Eu fui, sabe?! Naquela festa que você me disse pra não ir? Que ela me disse pra não ir? Claro que eu fui. E aconteceu de novo... Ela estava fazendo aquilo de novo, Shouyou! E eu sei que eu devia ter aprendido depois da última vez... Mas eu briguei, de novo. De novo. De novo. Na frente de um monte de gente. E ela riu de mim! Mas claro que riu, não é?! Eu estava de novo fazendo tudo aquilo que já tinha prometido que não ia mais fazer... Lá parada, gritando! Estava cheio dos amigos dela e eu lá, brigando... Mas ninguém mais estava rindo e então ela ficou brava. Disse que não daríamos certo se eu continuasse agindo assim. Disse que se continuássemos assim íamos acabar nos odiando e que eu não era mais a mesma de antes. Que era por isso que ela nunca me levava pra festas, por isso que nunca me apresentava aos amigos, por isso que tinha vergonha. – os olhos castanhos-mel, até então baixos, levantaram-se e fitaram perdidos o teto, as palavras escapando pelos lábios abertos demais como vômito – Disse daí que eu sabia desde o começo que não devia ter me apaixonado assim. Que não devíamos ter ido morar juntas. Que eu estava construindo sozinha meus castelos e que era egoísta da minha parte esperar que ela alcançasse as expectativas que eu criei por mim mesma. Que eu conhecia como ela era e mesmo assim estava forçando os limites. Que foi a gota d’agua eu ter aparecido assim na festa... e invadir o espaço dela. Que eu estava envergonhando ela na frente dos amigos como sempre fazia. Que ela me ama, mas eu não mereço. Que se eu continuar assim, nunca ninguém vai me suportar. Que nem ela mais consegue suportar. Porque eu sou sufocante, paranoica, ciumenta. E que não queria mais brincar de casinha comigo. Que era um favor qu- 

— Psiii, tudo bem, Hitoka-chan, eu já entendi. 

A mão sobre a sua, a colher de sorvete a derreter em pequena poça na pequena mesa, o olhar preocupado dos olhos castanho-fogo: Hitoka percebeu o quanto demais havia falado pouco antes de seus olhos encherem-se de lágrimas e cerrassem-se. Não havia chorado. Não ainda. Não até aquele momento. Nem quando ouvira tudo. Nem quando voltara sozinha para o apartamento que dividiam juntas. Nem quando sentara-se no pequeno box do banheiro com a cabeça a pender por entre os braços. Nem quando afundara no sofá, sozinha, no domingo à noite. Nem quando bebera cervejas demais enquanto assistia os olhares compassivos que Kageyama e Hinata lançavam-lhe. Não chorara e juraria que não choraria em momento algum se, naquele exato instante, não estivesse com os olhos tão apertados na tentativa de barrar lágrimas e os dedos tão firmes nos do amigo em busca de conforto.  

Patética, ela sabia. Sempre fazendo coisas que não ajudariam em nada. 

Shouyou esperou com paciência que normalmente não pertencia a ele, em silêncio preenchido apenas pelo deslizar suave do polegar calejado nas pequenas mãos da antiga gerente do clube de vôlei. Silêncio que se demorou o bastante para tornar-se desconfortável, o bastante para ser preenchido por um pequeno riso baixinho do rapaz sentado do lado oposto da mesa, o bastante para que Hitoka juntasse seu próprio riso ao dele. 

Era riso nervoso, ela sabia. Ele, provavelmente, por ser incapaz de lidar com seu choro. Ela, definitivamente, por achar que riso nervoso era melhor que riso algum. 

— Não ria, Shouyou, que cruel!  

— Não estou rindo! Não estou! – declarou, largando depressa ambas as mãos ainda presas entre as dela para levantá-las em defesa – Só um pouquinho. – continuou, um pequeno bico nos lábios, provável tentativa de conter o riso que afirmava não ter – É só que faz tempo que não te vejo assim... Você era tão chorona no Ensino Médio! 

— Não era! – retrucou, falsamente ofendida, limpando com ímpeto os olhos e lançando-os de volta ao teto na tentativa de secá-los em definitivo – Só um pouquinho. – emendou, rindo outra vez antes de calar-se novamente, os dedos passando uma última vez pelo rosto. 

O silêncio, então, já não mais preenchido por carinhos em polegares ou por risos ou por julgamentos aos seus canais lacrimais, não parecia tão desconfortável quanto antes parecia.  

Arriscou, portanto, um novo olhar, de canto de olhos, a seu sol particular. 

Hinata ainda tinha nos lábios um sorriso aberto, ainda que até mesmo através de seus olhos embaçados de choro pudesse ver o quão falso ele era. Mas, ao menos dessa vez, aquele sorriso era o bastante para que ela também mantivesse seus próprios lábios repuxados por felicidade pequenina. 

— E é por isso que, dessa vez, Shouyou, só dessa, eu preciso que você me apoie. 

Olhou ansiosa o rapaz à sua frente, os olhos avermelhados bem abertos à espera de que ele entendesse o que ela pedia. Não precisou muito esperar, quase instantaneamente assistindo o sorriso forçado morrer e o olhar sério voltar ao rosto de Hinata. 

Sabia que era um pedido absurdo. E saberia mesmo antes de ver intensificar-se ainda mais o olhar sério do amigo. Não que Hinata não fosse uma pessoa séria, ele o era, inegavelmente. Haver algo, contudo, que despertasse nele essa seriedade, isso sim era coisa rara. E, ainda que não sentisse ter, naquele momento, outra escolha, sabia que estava exigindo demais dele ao pedir ajuda em algo que o deixasse assim tão grave. Porque o término do namoro dele próprio era recente demais para que ele o houvesse superado. Porque ainda tão vívidas eram para ele as causas do término. Porque ainda tão recente eram nas memórias dele as próprias escolhas erradas que fizera na tentativa de trazer Kageyama de volta. Porque sabia que ele ainda tentava avidamente se acostumar ao receio de abrir a porta do apartamento que dividia com o namorado e encontrá-lo novamente vazio, como encontrara há cinco meses. Porque. Porque. Porque. Havia, para Hinata Shouyou, tantos bons motivos para que não aceitasse seu pedido de ajuda para trazer a ex-namorada de volta que ela não podia evitar sentir-se mal por pedir ajuda mesmo assim. Mas, naquele momento, era exatamente deste tipo de apoio que precisava, do tipo que não acaba nem mesmo quando tem razões para fazê-lo. 

— Por favor, Shouyou. Se não der certo, eu paro. Prometo pra você! Eu só preciso fazer alguma coisa! Eu não aguento não fazer nada... você, mais do que ninguém, me entende, não entende? – era seu golpe final. Bastante injusto, ela sabia, mas, mesmo assim, ainda assim!, ela precisava dele – Eu pago o sorvete! – emendou em tentativa boba de amenizar o que pedia, antes de calar-se e encarar o rosto ainda sério de Hinata.  

Hinata permaneceu quieto por tempo o bastante para que Yachi pensasse que ele nada mais diria. E ela só percebeu que prendia a respiração durante cada segundo que Hinata permaneceu em silêncio quando de uma só vez soltou o ar, sonoramente, ao vê-lo acenar resignado e abrir um sorriso. 

— Kageyama que me desculpe... mas nenhum conselho dele pode competir com sorvete de graça! – declarou, outro daqueles falsos sorrisos animados no rosto. 

Yachi não precisava ser tão esperta – coisa que ela inegavelmente era – para saber que Hinata não queria ajudá-la. Ele nunca gostara de sua ex-namorada, afinal. Olhando, então, para o falso sorriso aberto do amigo, desconfiou que ele tivesse os próprios motivos para ir adiante com isso. Não perguntaria nada, entretanto, não agora. O que importava agora era, de verdade, o quão contrariada sentia-se ao confirmar que, sim!, que fora Kageyama a aconselhar Shouyou a não ajudá-la. 

— Bom... não é como se eu tivesse pedido a opinião dele, no fim das contas. – resmungou, dando de ombros. A menção do nome do amigo remexendo desconfortável seu estômago e transmutando seu sorriso num estalar irritado de língua. 

Estalar irritado do qual se arrependeu no instante no qual percebeu como Hinata a encarava, visivelmente magoado. 

— Ainda brava com ele?  

— Não brava. – tentou concertar – Mas... você sabe... Quem goste dele é você. Eu gosto é de você. A função de ficar bravo com ele ou não é sua. A minha função é respeitar sua decisão. – era uma mentira, ela sabia, Shouyou também sabia, mas era daquelas mentiras que precisava, e disso sabia também. Kageyama era também seu amigo, também alguém com quem se importava... ainda que, naquele instante, não importasse-se tanto assim em demonstrar isso. Ela escolhera um lado. E seu lado seria sempre ao lado do rapaz a sua frente. Ponto final. Tinha certeza que Kageyama entendia isso também, provavelmente motivo de não ter insistido para estar também com eles dois naquela pequena sorveteria como estaria se aquele conversa tivesse acontecido seis meses antes. 

— Mas ele tem razão. Você sabe disso, né?! E está preocupado. 

— Oh, tudo bem, vai fazer bem a ele preocupar-se com o coração partido dos outros, pra variar. Lição de vida para o levantadorzinho! 

— Ow, uau, você está mesmo brava ainda! – o riso de Hinata, alto demais a ecoar pelas paredes da pequena sorveteria, era tudo o que precisava para saber que tinha nos lábios o pequeno bico que desconfiava ter. 

— Por favor, Shouyou. Se não der certo, eu paro! Prometo pra você! Prometo pro Kageyama também, se quiser. Eu só preciso fazer alguma coisa! 

Os olhos castanhos-sol encararam-na uma última vez antes de baixarem ao sorvete já derretido. Não era difícil a ela notar que aquela fora a última cartada de Shouyou: usar a suposta sensatez de Kageyama para convencê-la. Método bastante ineficiente, no entanto. 

— Deixa eu ver o papel. – pediu, a voz resignada. 

Os olhos castanho-alaranjados apertaram-se miúdos enquanto fitavam a pequena tela de seu celular; abriram-se, contudo, surpresos, de repente. Hitoka não pode evitar remexer-se desconfortável na cadeira, tinha um pequeno palpite sobre o que fora responsável por abrir tão largos os olhos tão vívidos, mas, sinceramente, esperou que estivesse errada.   

Infelizmente, não estava, mas não soube disso.  

A imaginação de Shouyou não havia, de fato, ido tão longe quanto a sua ao fitar a assinatura no cantinho direito da imagem do papel amarelo vibrante. O rapaz não havia devaneado sobre um reencontro do destino com o primeiro amor, não havia sonhado com a ironia que havia em encontrar em um anúncio de uma cartomante que prometia trazer um amor de volta as exatas sílabas iniciais do nome que há três anos Yachi havia decidido apagar da memória, não havia fantasiado com a possibilidade de que aqueles pequenos kanjis pertencessem à antiga gerente do time de vôlei da Karasuno. Shouyou, diferente de Hitoka, não havia feito nada disso. Era fato, contudo, mesmo que Hinata nada fosse dizer, que os olhos abertos demais a fitarem os kanjis no cantinho da folha haviam percebido que Hitoka havia imaginado tudo isso.  

Não que Yachi, agora totalmente dividida entre a tentativa ignorar os kanjis no canto da folha e a tentativa de conter o sorriso esperançoso que por causa deles insistia em invadir seus lábios, tivesse agora qualquer preocupação com o que Hinata havia ou não percebido. E não que Shouyou, apesar dos olhos abertos demais, estivesse realmente chocado, preocupado, ou inclinado a pressionar a amiga com perguntas. Não estava. Agora, ele sabia, definitivamente não havia nada o que pudesse fazer para impedir que Yachi Hitoka fosse adiante.  

Porque ela era aquele tipo de garota, e ele sabia. Do tipo que ia adiante.  

E por isso ele nem tentou impedir. Acompanharia, certamente, porque era isso o que podia fazer para tentar ao máximo evitar que ela se machucasse.   

Ele limitou-se a sorrir, portanto. Provocou o nervosismo dela diante de uma possível ligação. Sorriu de novo. Ajudou-a a redigir uma mensagem. Sorriu outra vez. Debochou dela pelo “bom dia” com caretinhas enviado mais cedo. Sorriu mais uma vez. Convenceu-a a deixar uma mensagem de voz constrangedora na secretária eletrônica. Sorriu ainda outra vez. Entupiu-se de mais sorvete. E, secretamente, bem escondidinho, esperou que aquela não fosse uma péssima decisão enquanto progressivamente animava-se diante da crescente animação de Hitoka e sorria cada vez mais aberto, falando cada vez mais alto, gesticulando cada vez mais intenso. 

Porque ele era aquele tipo de garoto.  

Do tipo que termina o dia com estômago cheio de doce e sorriso cheio de otimismo mesmo quando não deve.  

O dia não havia acabado ainda, entretanto. 

Ainda houve tempo de toda a determinação de Hitoka se transformar em receio que gelava cada centímetro de seu estômago enquanto ela recebia o aviso de que a mensagem havia sido visualizada. E ainda houve tempo do sorriso cheio de otimismo de Shouyou desanimar um pouquinho e manchar-se um tiquinho de medo ao girar a chave e abrir a porta do apartamento que dividia com o namorado, esperando, como sempre esperava desde que voltara com Kageyama há três semanas, encontrá-lo vazio como encontrara há cinco meses. 

A resposta chegou logo em seguida, contudo, duas pequenas frases curtas, polidas e estranhamente profissionais no fundo cinza. No exato mesmo segundo em que o cheiro quentinho de lasanha congelada assando a forno baixo recebeu o pequeno ex-meio-de-rede na pequena entrada do pequeno apartamento.  

“Boa noite, Yachi. Será um prazer trabalharmos juntas, podemos nos encontrar amanhã para discutirmos os detalhes?”, leu ela. Enquanto ele afundava a pontinha gelada do nariz no pescoço quente em um abraço necessário.  

E enquanto ela digitava rapidamente, trocando algumas letras das palavras todas escritas erradas, os olhos brilhando em expectação, ao marcar o encontro para a manhã seguinte. Ele metia por entre os lábios porção atrás de porção da lasanha, sorrindo empolgado por razão que em nada relacionava-se ao sabor da comida, mastigadas entrecortadas pelo narrar animado do encontro na cafeteria. 

Havia, nele e nela, comichãozinho inquieto na ponta dos dedos e no meio do peito. E, ainda que nenhum deles – por medo de que pedido tão intenso trouxesse má sorte – tivesse de fato se arriscado a enviar ao outro a mensagem, foi fato que, além dos sorrisos miúdos, ambos, ele e ela, Hinata e Yachi, compartilhavam ao fim da noite também um pequeno desejo na forma de rascunho de mensagem no celular: 

“Eu espero que dê tudo certo” 






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Notas finais do capítulo

Olá de novo,
tudo bem até aqui?

Obrigada, de verdade, por ter lido. Esse foi um capítulo introdutório de uma série de questões importantes que acontecerão na história, e, talvez exatamente por isso, ele foi um pouco mais parado do que os outros. O próximo capítulo começará a contagem dos dias.
Espero que tenha gostado!!!

Nos vemos no próximo?
Beijo, beijo, =*
Yuki


ps. https://www.youtube.com/watch?v=mS8xDo-qM8w



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