A cor da Rosa escrita por Izabell Hiddlesworth


Capítulo 3
Café preto




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23 anos

 

 Edgar observou o casal trocar olhares úmidos enquanto o rapaz ajudava a amante a entrar no barco. Houve um elogio para o delicado vestido de fazenda verde da moça, mas ele não via como uma cor podia ser motivo para elogios. Taciturno, esforçou-se para sentir qualquer coisa diante da cena, mas não sentiu nada – ou algo tão perto disso que não fazia diferença.

 Em poucos minutos, o pequeno barco de madeira afastou-se da margem do lago com um remar cadenciado. Edgar ajeitou-se contra o encosto canelado do banco, de repente incomodado com os próprios pensamentos. Se fechasse os olhos por um breve instante, os lampejos sobre Leopoldo queimariam como fogos de artifício na parte de trás de suas pálpebras.

 A roseira vermelha no pátio dos fundos. Olhos verdes como grama seca sorrindo para ele em surdina. Os círculos vermelhos que ficavam depois do amor – vermelho significava amor.

 Era exatamente por isso que ele vinha tentando se manter acordado há uma semana, desde que o encontro com Leopoldo suscitara aquelas saudosas e perigosas memórias. Já havia perdido a conta de quantas vezes repassara mentalmente as imagens de sua retirada patética. Não podia deixar de imaginar como o outro interpretara aquilo.

 Talvez pudesse perguntar a Tomás quando o encontrasse no café. No entanto, isso provocaria mais estranhamentos e indagações, e Edgar estava farto das suas próprias.

— Uma hora — murmurou, checando o relógio de bolso.

 Tempo suficiente para simplesmente se levantar e caminhar de volta para casa, elaborando uma desculpa para dar a Tomás. Tempo suficiente para se afogar em autopiedade, enquanto o casal deslizava apaixonada e solenemente pelas águas do lago. Ele tentou adivinhar o que havia de romântico em remar sob um céu nublado.

 Do outro lado do lago, um segundo casal conversava animadamente num banco. Atrás deles, um terceiro caminhava pela trilha de pedras de braços dados. Era o bastante para Edgar.

 Com um suspiro, ele levantou-se e enfiou as mãos nos bolsos da calça. Sair mais cedo de casa para escapulir do falatório do pai não parecia mais uma boa ideia, mas já estava ali. Decidiu que daria uma volta pelo parque para arejar a mente e tentar não pensar em nada.

 Uma brisa leve agitava a copa larga das árvores e seu casaco, trazendo o cheiro de chuva às narinas. Não demorou para que a brisa se transformasse num vento assobiante e Edgar precisasse semicerrar os olhos para enxergar o caminho. A visão limitada não permitiu que ele se desviasse do vulto a tempo.

 Por reflexo, Edgar deu um passo assustado para trás, mas o vulto já estava atingindo seu rosto. Os dedos atrapalharam-se no afoito da defesa, agarrando-se a uma trama de palha fina.

— Mas que diabos... — praguejou baixo, fitando o chapéu em suas mãos.

 Era uma peça bonita, enfeitada com um arranjo de pequenas rosas de seda vermelha e fitilho branco. Uma fragrância suave de lavanda emanava da palha, completando o ar de delicadeza.

— Moço! — alguém gritou à frente. — Meu chapéu!

 Uma moça esbaforida surgiu na trilha, esticando a mão para ele com um olhar ansioso. Seus cabelos negros estavam desgrenhados pelo vento, e a saia era açoitada contra suas pernas. A expressão em suas feições agravou-se quando pôs os olhos em Edgar, como se tivesse ficado assustada.

 Ele abriu a boca para dizer qualquer coisa sobre o chapéu, mas uma cortina de chuva fechou-se sobre os dois. A moça comprimiu os lábios e encolheu-se, correndo para a árvore mais próxima. Edgar a seguiu depressa para proteger-se da chuva, desgostoso da sensação de vestir roupas molhadas.

— Seu chapéu. — Estendeu a peça cautelosamente, e a moça desviou o rosto enquanto a recebia.

— Obrigada. — Ela escorou as costas contra o tronco da árvore.

 A chuva encharcou as pedras da trilha depressa, tornando-as cinza escuro. Era possível ouvir gritos surpresos e levemente desesperados por um abrigo da água. Edgar perguntou-se se Tomás ainda viria para o café.

 Ao seu lado, a moça penteou os cabelos com os dedos, acertando o chapéu sobre eles. O arranjo das rosas combinava com sua camisa rendada e a longa saia azul-marinho.

— As rosas do arranjo combinam com você — disse num sopro, mal se dando conta do que fazia.

 A moça voltou-se para ele surpresa, mas retomou a compostura num piscar de olhos.

— Agradeço a gentileza. — Ela lhe deu um sorriso acanhado acertando a aba do chapéu-coco. — Deve ser porque me chamo Rosa.

 Edgar pestanejou, tentando se lembrar do significado das rosas.

— Sim, deve ser — concordou, deliciando-se com a pequena coincidência. — Me chamo Edgar, aliás.

— Eu sei. — Ela riu-se docemente, e havia qualquer coisa de familiar no seu timbre. — Já o vi pela cidade, te conheço de outros carnavais.

— Oh, é mesmo? — Ele surpreendeu-se, ficando curioso. — Mas eu nunca a vi por aqui.

— Não sou de São Paulo. — Rosa deu de ombros, passando os dedos pelas madeixas escuras. — Estou aqui apenas para as festividades de fim de ano a convite de uma amiga. Depois do Ano Novo, volto para Leopoldina. — Ela riu como se soubesse de uma piada secreta.

 Algumas grossas gotas de chuva penetravam na copa da árvore, pingando sobre o cabelo de Edgar. Porém, entretido com a moça, ele mal se apercebia da chuva, ou da hora do café se aproximando.

— Leopoldina? É do Leite?

 Ela confirmou com um meneio de cabeça.

— Mas tenho alma de carioca, se quer saber.

 Edgar sorriu, não porque tinha achado graça na confissão, mas porque pareceu errado não o fazer.

— Isso já é muita coisa. — Alternou o peso de uma perna para outra, asseando o casaco. — Eu nem sei se tenho ao menos uma alma para dizer de onde ela é.

— Quanto pessimismo. — Rosa revirou os olhos. Por um instante, estudou-o como se ponderasse alguma coisa, então disse: — Um passarinho me contou que você é um poeta. Pois sua alma deve ser de Arcádia, ou deve pertencer a lugar nenhum, porque os poetas são livres... e perdidos.

 Edgar pesou suas palavras, pensando se era a garotas como Rosa que a mãe se referia quando falava sobre a nora ideal. Particularmente, naquele precioso encontro do acaso, ele julgou que se se casasse com alguém assim, seu fingimento talvez pudesse realmente se transformar em verdade. Poderia ser normal com uma companhia assim.

— A senhorita parece ser muito conhecedora da minha pessoa.

 Rosa sorriu enigmática, alisando o tecido de algodão da saia.

— Um outro passarinho me mostrou poemas seus. — O canto de seus lábios murchou com um ar que sugeria tristeza.

— Acaso os passarinhos têm nome?

 Ela não respondeu, voltando o rosto para a trilha. A chuva amainava lentamente, e um sol fraco surgia através da parede de nuvens cinzentas.

— Foi muito bom passar um tempo com você, Edgar. — Rosa empurrou o tronco às suas costas para endireitar-se. — Talvez nos encontremos novamente pela cidade.

 Por reflexo, Edgar ficou nervoso com a ideia de perder a calmaria familiar que estava a sentir, e fez menção de alcançá-la. Mas Rosa já estava fora do alcance da copa da árvore, enfrentando a chuva fina com o chapéu-coco de palha. Suas pernas longas afastavam-se ligeiramente, e ela não se dignou a olhar para trás.

 E foi com a desconfortável sensação de ter perdido algo importante que Edgar rumou para o café. O peso da habitual melancolia voltou a se assentar sobre seus ombros, sufocante como uma sobrecasaca numa tarde de verão. Tomás ainda não havia chegado quando ele se sentou a uma das mesas próximas às janelas, recostou-se à parede e ordenou um café preto sem açúcar.

 Pensamentos sobre Rosa começavam a brotar em sua mente, como botões que floresciam desesperadamente e lutavam por espaço contra as lembranças de Leopoldo. Edgar desejava descobrir como a moça sabia sobre seus poemas, quem era a tal amiga que estava a hospedando, onde poderia encontrá-la – qualquer coisa que continuasse sufocando os devaneios indesejados.

— Vim o caminho todo adivinhando se você não me deixaria sozinho aqui. — Tomás surgiu junto com o garçom e seu café. — Estou surpreso que realmente tenha vindo.

 Edgar revirou os olhos.

— Acredite, eu também.

 Tomás aproveitou o garçom para pedir um café para si e duas fatias de bolo. Os ombros de seu paletó estavam molhados do chuvisco, e pequenas gotas cristalinas brilhavam sobre as ondas de seus cabelos. Um bronze leve cobria a pele de seu rosto, resultado da semana na casa de campo do tio.

— Elias me perguntou por que você não foi conosco para o campo — disse o amigo, quase como se apanhasse o fio de seus pensamentos.

— Ora, porque não fui convidado.

— Na verdade, foi. Eu é que não repassei o convite. — Tomás esperou por uma reação por um instante, então voltou a falar: — Leopoldo também é primo de Elias, e naturalmente está incluído nesse tipo de passeio. Pensei que, depois de ter ficado tão nervoso ao encontrá-lo, você não fosse querer mais uma dose.

 Edgar o encarou, supondo mil e uma situações de tensão que poderia ter surgido entre ele e Leopoldo na casa de campo. Concordou com a colocação de Tomás apenas porque queria encerrar logo o assunto – antes que começasse a reviver cada segundo de sua última fuga.

— Leopoldo também ficou interessado em saber o motivo da sua ausência. Ele me confirmou que não trocaram uma palavra desde antes de você embarcar para Paris. — O olhar de Tomás sobre ele transparecia preocupação. — Já basta dessa ignorância, não? Pretende ficar outros cinco anos sem lhe dirigir a palavra?

 Os bolos e o café foram postos na mesa, oferecendo uma breve pausa para que Edgar pensasse numa resposta.

— Se possível... — murmurou com um suspiro pesado.

— Ora, francamente! — Tomás exasperou, dando uma garfada em sua fatia de bolo. — Não creio que vai deixar uma garota estragar sua amizade com ele. Nenhum dos dois ficou com Teresa, isso já não é motivo o suficiente para fazerem as pazes? Além disso, nunca entendi porque começou a evitar Leopoldo por causa dela. Você nem sequer a cortejava.

 Edgar franziu o cenho confuso.

— Teresa? O que ela tem a ver com a história?

 Tomás o imitou, mastigando um pedaço do bolo.

— Ela é o motivo de você e Leopoldo terem se afastado? — sugeriu, num tom de pergunta.

 Levou um minuto para que Edgar juntasse os pontos e compreendesse o que Tomás queria dizer. Teve vontade de rir – de alívio e de graça –, mas se conteve.

— Você juntou algumas frases soltas e já acha que sabe da história toda — riu, girando o café que esfriava na xícara de porcelana.

— E estou errado? — Tomás ergueu as sobrancelhas.

— Completamente. Nem eu nem Leopoldo jamais gostamos de Teresa nesse sentido. Ela gostava dele, mas foi rejeitada. E creio que essa tenha sido sua maior fonte de inspiração para se devotar ao convento em Lisboa.

 Tomás abandonou o garfo e o bolo, apoiando os cotovelos no tampo de madeira da mesa e o encarando seriamente.

— Então qual é o motivo? Preciso entender para te ajudar.

 Mais uma vez, Edgar se pegou calculando os riscos de relevar a verdade para Tomás. E mais uma vez, acabou por decidir que não era a hora nem o lugar certo para uma conversa daquele tipo.

— Preciso me preparar melhor para fazer isso.

— Lembro que as coisas entre vocês já não estavam boas desde antes de Paris. Cinco anos não foi o bastante para se preparar?

 Tomás assumira uma postura incisiva, e Edgar quase podia apalpar a pressão que se formava entre eles. Detestava quando o amigo agia daquela forma, mesmo com boas intenções. Isso o fazia se sentir mais acuado do mundo do que habitualmente, e as paredes se fechavam depressa.

 Olhou para café, tão preto como a sua alma, que havia esfriado sem um gole a menos.

— Pensei que confiasse mais em mim. — Tomás recuou no espaldar de ferro da cadeira.

 A ponte do nariz de Edgar tremeu com o prenúncio do choro, porém ele se censurou. Não podia chorar em público e tornar aquele simples café mais difícil, precisava salvar seus resquícios de dignidade. Por outro lado, teve a decência de se sentir envergonhado pela conduta, pensando que traía o ideal da amizade. Mas essa foi toda a comoção que demonstrou.

— Bom, fazer o quê? — Tomás ergueu os ombros, mas suas feições estavam retorcidas numa expressão chateada. — Você pode me contar quando estiver pronto. Vamos mudar de assunto.

 Edgar anuiu, relaxando a postura. Enlaçou a alça da xícara entre os dedos, bebericando o café amargo e frio.

— Laura e Ferdinando estão montando um grupo de poesia. — O desapontamento foi varrido do rosto de Tomás quase de imediato. — Marcaram a primeira reunião para este sábado, na casa deles. Elias, Sebastião, Marcos e eu vamos. Obviamente, Laura pediu que estendêssemos o convite a você. Sabe que ela aprecia muito os seus escritos.

— Eu adoraria, mas...

— Não, Leopoldo não vai — Tomás falou rispidamente, revirando os olhos. — Disse que vai pescar em Santos com o pai. Não tente procurar outros empecilhos para não ir, por favor.

 Ele terminou a xícara num gole só, esticando a mão para um dos guardanapos para disfarçar o desconforto.

— Laura vai convidar algumas amigas. — Tomás inclinou-se para ele sobre a mesa. — Você pode encontrar uma pretendente interessante, o que acha? Tenho certeza de que sua mãe vai encorajá-lo a ir se souber que se trata de uma oportunidade dessas.

 Era uma ameaçava velada. Ele teve de resistir ao impulso de dizer que moças não eram seu objeto de interesse.

— Você joga baixo. — Edgar sorriu, voltando a pensar em Rosa por um segundo. Sentiu-se como se o destino estivesse lhe dando peças de um quebra-cabeça.

— Não tanto quanto o Elias.

 Os dois compartilharam uma gargalhada.

— Então, vai?

 Edgar ponderou, mais por capricho do que por outra coisa. Aceitar o convite lhe daria uma reunião com os amigos e uma ótima distração dos pensamentos que o flagelavam. Além disso, ele tinha um bom pressentimento.

— Por que não? — Sorriu.

 Era um convite para um clube de poesia. Edgar jamais poderia recusar poesia.


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Notas finais do capítulo

Referências:
1) "Do Leite": a República Velha do Brasil (a época em que essa história é ambientada) foi marcada pela "Política do café-com-leite", que consistia em alternar o poder presidencial entre candidatos paulistas e mineiros. O nome desse acordo faz alusão à economia de São Paulo, que produzia café, e Minas Gerais, que produzia leite. Leopoldina é o nome de uma cidade mineira.

2) Arcádia: era uma província na Grécia antiga, que depois virou uma terra imaginária descrita pelos poetas e artistas durante o Renascimento, o Romantismo e o Arcadismo.

3) "tão preto quanto a sua alma": meme - https://www.youtube.com/watch?v=IaXcvL1k5GM. Meu AS adora meme, gente.



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