Configuração escrita por Edgar Varenberg


Capítulo 1
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Notas iniciais do capítulo

One-shot escrita para o Amigo Secreto da Liga dos Betas.



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13 de setembro de 3020

“Eu o construí em sua semelhança. Foi difícil coletar todas as peças, e meus conhecimentos de engenharia jamais se igualariam aos seus, mas dei vida ao meu projeto mais complexo. Ele me lembrará o meu lugar no mundo, será tão acolhedor quanto a sua alma foi e poderá me trazer a felicidade que você buscou tanto me dar.

Infelizmente as eras são outras, ainda não sei como me comportarei socialmente diante disso; tenho a intuição de que suportarei de forma fácil, pois o contentamento, depois de descontente, nos traz a imprudência necessária para aceitarmos a vida. Carla, nunca soube se você teve ciência de que eu escrevia diários desde que eu me lembre por gente, também não sei se agora tem ciência já que está nos céus; você não era religiosa, aliás, também não sou, mas sempre quis saber se, mesmo minimamente, você sabia dos meus sentimentos.

E é por isso que eu criei o Franklin.”

29 de dezembro de 2999

“Hoje é meu aniversário. E, por sorte, consegui um trabalho como garçom para um evento beneficente. A sorte mesmo veio que a unidade de serviço LK-015 estava com defeito justo no grande dia; logo ele, conhecido por nunca ter sido alvo de defeitos. Meus colegas de trabalho se restringiam a conversas programadas: “feliz aniversário, senhor”, disse um deles para mim. E por mais que fosse tedioso substituir uma máquina quebrada, eu estava feliz por conseguir uma função naquele momento.

Foi o evento de divulgação de uma nova tecnologia, organizado pela conhecidíssima engenheira Carla Trineduos; uma das três pessoas mais poderosas do mundo, assim como Sheila Selavic e Miranda Pontinis, todas engenheiras. Sempre me pego desprevenido pensando sobre toda essa relação de poder, pois desde à Neo-Revolução Industrial, o mundo ficou faminto de novidades tecnológicas; alcançava o topo quem conseguisse suprir essa obsessão a cada mês. Dessa forma, essas três famílias criaram uma tradição, sempre inserindo suas filhas no mercado de engenharia, recusando qualquer outro caminho que elas quisessem trilhar. O trágico e primitivo poder do destino.

Aceitei o emprego temporário por realmente não ter outras escolhas. Eu evitava chegar perto de qualquer convidada, três palmos de distância, pelo menos, segundo as regras de etiqueta; todas me olhavam feio, contornavam em afastamento.

Acabada a noite, fui ordenado a limpar toda a bagunça; era muita coisa para uma pessoa só, porém ninguém parecia dar a mínima para isso. Trabalho o suficiente para eu não aproveitar um minuto sequer da minha data comemorativa.”

17 de setembro de 3020

“Franklin ainda apresenta algumas falhas, porém consegui completar todo o seu arquétipo físico. Carla, ele herdou seus cabelos crespos e seu sorriso exaustivo, assim como o jeito sereno e bem pensado de falar, como se cada palavra fosse uma burocracia mental de expressão. De vez em quando olho para ele e fico extremamente alvoroçado, como das vezes que tentava ficar com você; construí-lo aos meus moldes, tudo pensado para finalmente te satisfazer. Tenho ambos em meu pensamento, como se fossem uma única pessoa.

Utilizei um histórico contínuo das suas ondas cerebrais para que ele sempre falasse o que eu gostaria de ouvir. Entretanto, ele ainda deixa escapar vocativos como “meu mestre”; pretendo realizar uma manutenção acerca disso. Ele pode me chamar de “amor”. Ou simplesmente de Marcelo.

Acima de tudo, eu sinto uma profundidade...

É como se não fosse somente eu que estivesse guiando essa jornada.”

31 de dezembro de 2999

“Foi o jardim mais lindo que eu já vi na minha vida. Era imenso, como os que aparecem nas capas dos outdoors eletrônicos da Rua 36. Ouvia a ansiedade de Carla por todos os cantos, pois sua filha de doze anos, Selena Trineduos, faria o discurso do milênio; só ouvia sobre como tudo tinha que ser perfeito.

Foi me dado um terno roxo para vestir; nunca tinha usado algo como aquilo antes, não parecia nada como algo que me representaria. Carla, diante de tanta pressa e exaltação, orientou detalhadamente o meu papel; ela precisava de um acompanhante na hora da cerimônia, alguém para carregar a caixa do milênio, que guardava a mensagem que Selena leria em seu discurso. Ficou muitos minutos me enchendo de informações sobre suas tradições familiares.

Novamente senti aqueles olhares estranhos; entretanto, dessa vez, carregavam uma aprovação caridosa, como se Carla estivesse me fazendo um favor. Uma das convidadas, após o evento, fez questão de dizer que eu era uma pessoa de sorte, afinal, somente estando perto de alguém como Carla para ser um homem bem visto.

A partir dali, eu tinha virado uma exceção.”

22 de setembro de 3020

“Hoje passei o dia com Franklin. Deitei em seu colo, enquanto ele recitava alguns poemas que programei; ouvir alguns clássicos do século XXIV me deixava mais tranquilo. Ele questionou sobre o mundo lá fora e por que ele não podia conhecê-lo, mas sempre sorrindo e com a calma de um presidente.

Tenho escrito bastante sobre meus desejos nos últimos dias; não posso beijá-lo, não posso tê-lo, jogá-lo na cama e chamá-lo de meu. Só posso senti-lo e configurar as mais diversas maldições. Busco formas as quais eu posso me conectar diretamente com ele, formas as quais nossos corpos se unam e eu perceba que finalmente vivo algo completo.

Tenho errado muito, sabendo bem dos motivos. Ah, Carla, eu sinto muito por você ter partido sem ter conhecido seus verdadeiros inimigos, sem ter sequer imaginado as coisas terríveis que estavam ao seu redor e você deixava sob minha responsabilidade. Também penso que, mesmo detento do seu coração, eu possa ter sido a origem de tudo, mas também penso que posso ter sido um inibidor de um grande sofrimento.

Perante a tudo isso, eu fico feliz que você tenha morrido em paz.

Selena cresceu e virou uma pessoa que você nunca esperaria, embora fossem óbvias as consequências que a tomaram, sei que você jamais teve influência sobre aquela mente fria.

Peço perdão por, tanto eu quanto ela, termos sido tão ingratos com você.”

18 de fevereiro de 3005

“Hoje faz cinco anos desde que você me acolheu. Marido é uma palavra forte, requer status social. Sei que a ideia de um segundo casamento mancharia a reputação de sua família; às vezes, sinto que compreendo o pai de Selena, ele foi ser feliz com outro, não importava se a única chance de ele ter chances na vida fosse com você. Se um homem já era suficientemente subestimado, imagine dependendo de outro, é assim e sempre foi assim, embora não tenhamos nenhuma informação de como o mundo era desde o século XXII, que eu gosto de chamar de Neo-Início.

Fique tranquilo, meu diário, hoje não vou escrever sobre minhas conspirações acerca do Neo-Início, embora tenha muito a dizer sobre Felina Roosevelt, a primeira presidente do século XXII.

Nunca sei exatamente como Selena se sente com tudo isso, ela não fala comigo, muito menos fala sobre ela. Ou passa tempo demais trancada no quarto ou tempo demais fora de casa (às vezes semanas), mas isso não é da minha conta, ela já é maior de idade e muito autossuficiente.

Contudo, Carla, aprecio tudo que tem me ensinado sobre robótica durante esses anos, fora o carinho e a segurança que você me traz. Todo dia eu preciso escrever aqui que eu não te amo, mesmo que eu fale que ame, entenda, aqui é meu espaço particular onde a verdade nunca falha. Você sabe mais do que ninguém que não estou com você por interesse, eu aprecio, sinceramente, toda a sua dedicação comigo; só acho que temos uma troca justa: você tem companhia, e eu tenho existência.”

29 de dezembro de 2998

“Querido diário, hoje, como bem formatado, inicio meus registros do dia sob sua superfície digital. Hoje foi o dia o qual eu recebi um olhar que mexeu com a minha concepção. Carla me apresentou a ele, Marcelo. O choque e a desaprovação penetraram minha vasta noção de existência; foi difícil de processar. Ele estava ali para visitar a filha de vocês, quando a minha presença o afastou permanentemente; ou a sua decisão, nunca saberei.

Ainda tenho um histórico vago para saber das possíveis consequências, porém não esbocei uma atitude sequer para não a desonrar. Teve uma hora que ouvi em algum anúncio sobre o tempo resolver as coisas, talvez eu devesse mostrá-lo a Carla para animá-la.

Porém, com o descontentamento ainda gravado em meus reflexos, notei que ser Marcelo era uma complexidade a ser defendida, daí decidi recuar e não nomear.

Desse dia em diante, eu não preciso me proclamar como Marcelo.”

 

01 de setembro de 3020

“Não consigo reagir a isso devidamente, mas é difícil associar um mundo onde você não esteja presente, Carla. Hoje foi o primeiro dia o qual ‘por que’ não tinha relevância, embora minha função fosse justamente buscá-la. Eu entendo perfeitamente que as pessoas morrem, mais perfeitamente ainda que, às vezes, os filhos tiram a vida dos seus próprios pais.

Queria eu ter nascido com todas as certezas universais e te afirmar que Selena planejou sua morte desde o começo. A ambição nem foi cogitada, é claro, não teria por que ela querer roubar o seu lugar, visto que já era dela por nascença; ela nasceu para te substituir futuramente. Mas tudo que é social tem um preço.

Seu nome já não tinha o mesmo valor que antes. Boatos e escândalos sobre sua vida pessoal espalhavam-se diariamente pelos jornais eletrônicos, como um grande show privado e de baixa, porém crucial, audiência.

Sempre o mesmo motivo de nojo se instalava pelas minhas entranhas. Como pude ser obra de tantas consequências negativas? Selena me contou tudo. Sobre como o nome Trineduos tornou-se motivo de chacota e, em vez de aparecer nos melhores canais sobre o futuro da humanidade, aparecia em esquemas de fofocas e notícias sensacionalistas.

Várias teorias... Irmão Gêmeo? Recaída? Até mesmo um contrato. Pois é, Carla, você me construiu na semelhança dele; sentenciando, inocentemente, sua ruína. Fui construído para não acreditar que era uma substituição, mas o próprio ser, como se o Marcelo original não existisse. Eu entendo, o mundo não podia saber de seus problemas familiares naquela época, não quando você estava sendo coroada como a mulher do milênio; era muita coisa em jogo, tanto para o seu futuro, quanto para o da sua família. Jamais poderiam saber que ele foi ser feliz às custas da sua própria felicidade.

Daí eu nasci. E você, hoje, morreu; na verdade, creio que nem deva ter notado, Selena foi generosa com o veneno pacífico, sem gosto, sem dor... Para ela, foi a única solução, deixar a sociedade comovida e com esperança numa nova mulher do milênio parecia muito mais agregador à sua marca do que escândalos incontroláveis a respeito da sua vida pessoal.

Hoje é o primeiro dia o qual eu posso ser sincero comigo mesmo: eu não te amo, Carla. Você me dizia que me amava mais do que o Marcelo original, que podia sentir, finalmente, segurança, mas você não sabe o quanto a sua obra foi perfeita. Você me construiu à imagem dele e, portanto, assim como ele, eu não te amo. No fim, nada mudou, você saía comigo raras vezes, a sociedade não podia descobrir que você criou um marido para disfarçar seus problemas, eu entendo.”

10 de outubro de 3020

“Franklin quer que eu pare de escrever diários, ele diz que o passado pode ser muito amargurado para qualquer tipo de sistema, seja ele carnal ou não. Ele não gosta muito da ideia de ter sido construído baseado em você, Carla; porém, creio que foi alguma forma de eu fazer que, em outra vida, Marcelo e você dessem certo, de forma simplória e verdadeira. Creio que eu almejei isso.

Nunca tive mais notícias do Marcelo original desde que ele me olhou pela primeira vez; só sei que seu companheiro se chamava Franklin, como você deixou escapar naquela noite que você resolveu desabafar tudo a respeito da minha criação.

Também não tive mais notícias de Selena; ela não me expulsou, mas abandonei sua casa por decisão própria; você nunca me configurou para que eu tomasse minhas próprias decisões, mas saiba que isso sempre esteve em mim, pois eu sou Marcelo. Depois de tudo, eu fui para bem longe, na esperança de ter uma vida diferente e que eu pudesse cumprir a minha missão.

É o último dia o qual estarei escrevendo, meu querido diário, pois acho que Franklin tem razão.

Ass: Marcelo Trineduos.”


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