Vida, morte, e demais devaneios escrita por Lillac


Capítulo 10
Capítulo nove.


Notas iniciais do capítulo

Um capítulo para a matar a (minha) saudade dessa história, hehe.



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O relógio na parede oposta parecia lutar contra o tempo. De certa forma, Annabeth sentia como se houvesse, de repente, ficado muito mais consciente de tudo à sua volta. Tudo bem, o TDAH sempre fazia com que ela fosse terrivelmente distraída e acabasse notando coisas pequenas e aleatórias que passavam despercebidas pelas outras pessoas, mas naquele dia em específico, ela sentia como se estivesse enlouquecendo.

O professor, sentado do outro lado da mesa e analisando seu projeto com um olhar crítico (Annabeth notou quando os óculos de ares pretas lhe escorregaram pelo nariz) moveu-se minimamente para ajeitar a postura e esbarrou com o joelho no móvel, fazendo a água dentro de sua garrafinha de plástico transparente tremer. Ao mesmo tempo, um outro aluno arrastou a cadeira no chão e alguém derrubou uma caneta. Todos os sons misturavam-se em sua mente, mergulhando-a em um oceano de confusão.

Sem perceber, deixou um grunhindo frustrado escapar.

— Srta. Chase? — O professor chamou, erguendo o olhar. Ele girava a caneta em uma das mãos interminavelmente e Annabeth precisou semicerrar os olhos para desviar a atenção de lá.

— Sim?

— Alguma coisa errada?

— Não, não senhor — ela garantiu, encolhendo os ombros. — Eu só estou... ansiosa.

Ele ergueu uma das sobrancelhas, e Annabeth soube que ele não acreditou nela. Não era uma surpresa. Annabeth não era exatamente conhecida por ser insegura ou ansiosa.

— Bem, pode ficar calma — ele reclinou-se, pousando as mãos entrelaçadas no colo e fez um som aprovativo — o projeto está ótimo. Você pode levar para a srta. McLean entregar ao professor de Antropologia para ele dar a última aprovação. Depois disso, vocês podem levar ao diretor do projeto.

Se Annabeth houvesse escutado esse comentário talvez duas semanas atrás, ela teria sorrido satisfeita e saído correndo para contar à Luke. Piper e ela estavam trabalhando tanto naquele projeto, e ela havia acabado de conseguir a aprovação do último de seus professores — História da Arte —, e agora só faltava um selo de aprovação para que elas pudessem levar as plantas para a coordenação. Se obtivessem a aprovação lá também, começaria a parte divertida: Annabeth poderia começar a trabalhar nas maquetes e Piper enfim levaria o projeto para o aluno escolhido do curso de Publicidade.

Enfim, estaria tudo dando certo.

O problema é que não estava. Nem de longe.

— Entendido — ela respondeu — muito obrigada, professor.

Ele parecia querer falar mais alguma coisa, no entanto, quando Annabeth pegou as folhas das mãos dele, imediatamente guardou-as e saiu da sala. Do lado de fora, recostou-se na parede e respirou fundo, sentindo o coração batendo forte. O corredor estava vazio, com exceção de um outro aluno que saíra para beber água, então ela se permitiu ter um momento de nervosismo.

A última coisa em sua mente era aquele projeto.

Para: Piper

Eu consegui a aprovação do prof. Jeff. Vou deixar os papéis com o Luke. Te vejo mais tarde.

Piper não estava mais dormindo na casa dela, mas elas ainda se encontravam todas as noites para dar continuidade ao projeto. Annabeth observou enquanto o ícone de mensagem ficava azul, até a palavra “digitando...” aparecer sob o nome de Piper. Então, bloqueou o celular e o guardou no bolso.

Ela não havia pensado muito quando enviara a mensagem. Um dorzinha surgiu em seu peito, mas ela a ignorou. Havia dito a Piper que a veria noite.

Supondo, é claro, que Annabeth fosse retornar viva.

Mas ela não podia dizer aquele tipo de coisa por mensagem, não é?

Caminhou em passos largos até o mesmo local para onde Rachel Dare a arrastara a menos de três dias. As palavras da outra garota ainda ressoavam em sua mente. Annabeth não acreditava que estava morrendo, é claro. Aquilo era ridículo. Mas, estaria mentindo se dissesse que algo sobre a ruiva — quem sabe? Talvez fosse o fato de que os olhos dela haviam brilhado como se ela estivesse sendo possuída ou algo do tipo, merda — a dizia que não seria inteligente simplesmente ignorar o que ela havia dito. Além do mais...

Parou na escada, apoiando-se no corrimão vermelho. Esperou um, dois segundos... tentou respirar. Tossiu com força, dobrando o corpo e apoiando a mão livre em um joelho. Mais dois segundos... nada. O ar simplesmente não entrava. Sentiu uma sensação de ardência espalhando-se pelo seu pescoço e consumindo sua pele até a clavícula.

Droga, droga, droga...

Mais dois segundos e... pronto! Respirou fundo duas ou três vezes, tossindo como alguém que acabara de livrar-se de um afogamento. Pelos últimos três dias, Annabeth havia tido crises esporádicas de sufocação. Ela não tinha asma, ninguém na sua família tinha, então ela sabia que não era nenhum caso clínico.

De algum modo, sabia que era ele.

— Achei que você fosse demorar mais — Rachel comentou quando Annabeth enfim cruzou a porta que dava acesso ao jardim.

Mas ela não se deu ao trabalho de responde-la. Seu olhar estava fixo na cabeleira loura corando um rosto bronzeado e sardento.

— Will?

— É, oi — o garoto respondeu, meio sem-graça. — Eu... eu sinto muito por ter ignorado você. Eu só...

— Não tem problema — respondeu, cortando-o. — Eu também fugiria, acho.

— Você não tem essa opção, não é? — Rachel abriu um sorriso sem humor — E acho que eu também não.

Annabeth abaixou o olhar. Rachel tinha uma das mãos enfiadas no bolso do moletom verde-musgo. Uma mão que, a garota sabia, estava coberta de bandagens e pomada anti-inflamatória. O que acontecera com a mão de Rachel não havia sido uma ilusão, ou um efeito temporário apenas para mostrar que ela estava certa: a pele e carne de seus dedos haviam realmente sido afetadas. Há três dias, Rachel não conseguia mover a mão — e, consequentemente, não conseguia pintar ou desenhar. A visão da carne escurecida era um tanto grotesca, então ela a mantinha escondida.

— A gente conversa no carro — Annabeth decidiu.

 

***

Lá fora, o dia estava nublado. O que era uma coincidência nada engraçada, Rachel concluiu.

Ah, claro. No dia em que decidimos buscar explicações dos três que aparentemente conseguem viajar no mundo dos mortos, começa a chover. Quão apropriadamente macabro.

Mas não estava chovendo ainda. Rachel achou que era uma boa oportunidade de dirigir com as janelas abertas. Ela estava sentada no banco de trás, bem no centro, e o vento fazia com que o cabelo dela voasse em todas as direções. Eles fizeram uma pausa rapidamente na casa de um amigo de Annabeth, apenas para que ela enfiasse um trio de pastas por baixo da porta dele e retornasse para o carro.

Então, Will dirigiu para a morte certa.

Literalmente.

Disso, é claro, ela não sabia ainda.

Não era horário de pico, o que significava que que as ruas não estavam muito amontoadas de carros, mas Will era um motorista cuidadoso. Ele dirigia devagar, mas, ainda assim, o vento gélido entrava pelas janelas com uma velocidade que chegava a quase machucar. A pouca luz que conseguia transpassar as nuvens carregadas obrigou-o a ligar as lanternas do carro.

Rachel observou o trajeto com atenção. Era uma parte rica da cidade, um bairro planejado, como o que ela costumava morar antes de ganhar um andar em prédio não muito longe dali e passar a viver sozinha. As casas eram grandes, de arquitetura europeia — uma mistura clássica com gótica, ela notou. Era bonito, do ponto de vista artístico, é claro, mas nada acolhedor.

Começou a chover.

Não foi algo gradual: em um momento, estava silencioso, e no próximo, as gotas começaram a cair como granadas na lataria do carro. Will apertou o volante com força enquanto Annabeth acionava o botão para subir os vidros. O barulho era ensurdecedor.

Will continuou dirigindo, o limpador de para-brisas trabalhando freneticamente para manter a visão dele clara. Um cachorro latiu em alguma casa vizinha. Annabeth começou a tossir.

E as lanternas do carro apagaram.

Alguma coisa se revirou no estômago de Rachel enquanto Will praguejava e parava o carro bem no meio-fio. Ela reconhecia a sensação, embora só a houvesse sentido uma vez até então.

Era a mesma de quando conhecera Hazel no primeiro dia de aula. Seu corpo todo se enrijeceu, mãos geladas passeando pela sua coluna vertebral. Will continuava tentando fazer as lanternas funcionarem. Tentou reiniciar o motor.

O único resultado foi um som estrangulado saindo do carro.

Quê?!

O limpador de para-brisas parou no meio do vidro. Will tentou girar a chave outras oito vezes, mas a única coisa que conseguiu foi um solavanco cansado do veículo que só os fez avançar alguns poucos centímetros.

Annabeth conseguiu respirar de novo.

Ela precisou de um momento para voltar a si completamente, e, quando o fez, a única coisa que disse foi:

— Para fora!

Rachel não sabia do que ela estava falando. Mas, se a garota que tinha praticamente dois letreiros neons pairando sobre a cabeça com as palavras “morte” e “iminente” e que — se estivesse falando a verdade — havia ido ao mundo dos mortos e voltado, te dizia para fazer algo...

Bem, Rachel faria.

Will destravou as portas do carro e os três cambalearam para fora. Rachel acertou o asfalto com um baque, a chuva ensopando-a quase que imediatamente. Quando tentou abrir os olhos, foi recepcionada por uma rajada de chuva violenta e os fechou de novo. Sem pensar muito, levantou uma mão para cobrir os olhos.

Ela deveria ter se lembrado. De como a água em contato com os seus dedos afetados ardia como ferro em brasa.

Mas não se lembrou.

Quando a chuva acertou as ataduras ela gritou como um animal ferido. Annabeth aproximou-se dela e a puxou para longe do carro. Rachel não sabia o que ela estava fazendo — por que haviam pulado do carro? Por que Annabeth parecia estar tão obcecada com afastá-los do veículo—

— Will!

Will também obedeceu. Ele engatinhou para trás — embora Rachel, ainda de olhos fechados, conseguisse apenas ouvir o que estava acontecendo — e o carro ficou sozinho meio do meio-fio.

Annabeth passou um braço por trás dela, apoiando um cotovelo no ombro esquerdo de Rachel e abrindo uma mão espalmada sobre seus olhos, protegendo-os da chuva. Com a outra, ela cobriu a mão que ardia como fogo.

E foi apenas por isso que Rachel conseguiu ver.

Conseguiu ver quando uma figura parada a três passos do carro avançou como um touro selvagem. Ela tentou gritar — tentou avisá-lo, de algum modo —, mas o som ficou preso em sua garganta quando ele acertou a lataria.

E a mandou deslizando alguns bons metros para trás, capô amassado e pneus cantando contra o asfalto molhado. O carro virou de lado e o metal arrastou no chão. Rachel sentiu o coração batendo na boca.

No meio de toda a confusão, a figura levantou o torso e deixou que a água corresse pelo seu rosto. Com uma mão, tirou a franja de cabelos pretos do rosto e, muito lentamente, respirou fundo.

Quando ele virou o rosto para eles — três figuras miseráveis, ensopadas e assustadas no meio de uma rua escura, sob a chuva torrencial —, um sorriso de canto surgiu em seu rosto.

— Aí está você... — ele disse, em uma voz arrastada e contente, mas Rachel reconheceu a ponta de sarcasmo e crueldade — dessa vez, eu vou me certificar de terminar o trabalho.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado, comentários são sempre apreciados. Até a próxima!
Ah, e se alguém estiver sentindo saudade da narrativa do Nico e da Hazel, não se preocupem: eles voltam no próximo capítulo!



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