A Proposta escrita por Maria Ester


Capítulo 26
Capítulo 26




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O lote número 15, uma semana no Caribe, doada por um casal de amigos, foi arrematado por 200 mil reais, mas não foi nem de longe o lote mais caro da noite. A honra foi para o lote de número 21, um retrato pintado por Pablo Picasso, vendido a 750 mil reais.

Os convidados com inclinação artística balançaram a cabeça positivamente e disseram que o ganhador havia conseguido a uma pechincha.

Aqueles números deixavam Cecília tonta. Em uma única noite, haviam levantado quase três milhões de reais, isso sem contar com a venda de ingressos.

Ao olhar para os rostos estupefatos de Pascoal e dos outros funcionários da Escola, via que eles também estavam com dificuldade de processar os números.

Agora que o leilão havia acabado e todos estavam livres para fazer o que quisessem: ir dançar na boate, apostar no cassino ou tomar a direção do teatro, onde seria exibido um musical de primeira linha com o elenco original... ou ir para o deque feito ela e ficar apoiado na balaustrada contemplando a cidade ao longe, uma iluminação mágica sob o céu negro. Ela apertou os olhos. Ao olhar para cima, milhões de estrelas piscaram para ela.

Nesse momento ela já tinha colocado Dulce na cama, em uma das cabines escolhidas para elas passarem a noite.

Cecília inspirou a brisa salgada e tentou ordenar seus pensamentos. Estava feliz com os acontecimentos do dia, mas ainda tinha muito para acontecer, queria encontrar Gustavo e conversar com ele. Havia planejado tudo, todas as coisas que pretendia dizer, mas a expressão dele depois que ela propôs o brinde a fez travar.

Ele parecia furioso.

A dúvida e o medo, seus velhos amigos, a dominaram de novo.

E se ele a rejeitasse?

E se...?

“E ses” não importavam. Falaria com ele até o fim da noite. Era preciso.

— Você se incomoda de eu ficar aqui?

Ela virou a cabeça com um susto, o coração batendo a mil, e viu Gustavo atrás dela, maravilhoso no terno preto, trazendo duas taças de champanhe. Ele ofereceu uma a ela.

— Achei que você devia estar com sede depois de falar tanto – disse ele, seco.

— Obrigada.

Ao apanhar a taça, os dedos dela roçaram nos dele e Cecília sentiu um frio na barriga.

Ele estava ao lado dela, com o corpo quase tocando o seu, observando a mesma vista.

— Você está errada, sabe – disse ele.

— Em relação a quê?

— O discurso que fez, o brinde a mim. Eu não merecia aquilo. Você merecia.

— Não...

— Sim. Sem você, nada disto teria acontecido. Foi a sua visão, a sua paixão. Tudo o que fiz foi dar uma ajuda ao seu trabalho duro.

— Mas, se você não fizesse isso, nada teria acontecido.

— Sem você para realizar a parte difícil no início, não haveria nada que eu pudesse fazer.

— Vamos passar a noite toda discutindo quem merece os elogios – disse ela, com carinho. – Que tal se aceitarmos que nós dois fomos necessários para que tudo isto se realizasse?

Um sorriso fraco cruzou o rosto dele, e Gustavo ergueu a taça.

— Ao trabalho em equipe.

— Ao trabalho em equipe – repetiu ela, batendo a taça na de Gustavo.

Ela não bebeu.

— Você está linda.

— Obrigada. – Ela fez a voz soar animada. – Eu não consegui retomar o hábito de me arrumar todo dia, mas gosto de me vestir bem para ocasiões especiais.

— Você sempre está linda, não importa a roupa.

Ela sentiu um nó na garganta.

— Quero que saiba que eu passei a escritura do novo centro para o seu nome e a guarda de Dulce é toda sua. Só não abro mão da paternidade e do vínculo.

— Eu nunca te afastaria dela Gustavo, ela te ama. Você é o pai dela.

Ele abaixou a cabeça com um suspiro.

— Não devia ter feito o que fiz. Eu fiz um papelão, sinto muita vergonha. Só espero que, um dia, você consiga me perdoar.

— Tinha seus motivos – murmurou ela, com a cabeça girando.

— Não, eu não tinha. Nenhum motivo que faça sentido agora, pelo menos. – Ele arquejava. – Eu só preciso da sua assinatura para oficializar. Pode dar uma passada no escritório para assinar, ou então eu posso mandar entregar. O que for mais fácil para você.

— Obrigada – sussurrou Cecília.

Ele deu de ombros e se virou de costas para a cidade iluminada na distância.

— Eu estive pensando. Com a quantidade de dinheiro que arrecadamos hoje, tem mais do que o suficiente para fundar outra Escola. O que você acha de buscar instalações adequadas no Rio de Janeiro para mim?

— Para você? – perguntou ela, confusa com aquela mudança de direção.

— Eu vou pagar pelo prédio e pelas reformas necessárias. Os fundos arrecadados podem pagar os funcionários e os gastos operacionais cotidianos. – Ele devia ter percebido o silêncio confuso dela. – Será um prazer pagar tudo direto, os gastos com funcionários, a manutenção, tudo. O dinheiro levantado hoje foi anunciado como sendo para o centro e nada mais justo que gastar com ele, mas também pode ser usado para ajudar outras crianças na mesma situação. Se continuarmos com essas arrecadações, podemos conscientizar mais a respeito da condição dessas crianças e ajudar ainda mais.

— E quer que eu ajude você?

— Eu quero que toque tudo por mim. Vou lhe pagar um salário...

— Não quero um salário. Quero dizer, para mim o que importa é que outras crianças com deficiência tenham as mesmas oportunidades que as de qualquer criança em geral. Não me importo com o dinheiro.  

— Eu sei, agora eu sei que nada gira em torno do dinheiro, você me ensinou isso. Mas se aceitar minha proposta, receberá um salário digno de seu esforço, nada mais justo.

Ela abriu a boca sem saber o que dizer, mas ele falou de novo antes que ela pudesse dizer qualquer coisa.

— Não tome a decisão agora. Pense com calma. E me avise quando decidir alguma coisa.

Se Cecília estava se sentindo tonta antes, não era nada perto de como se sentia naquele exato instante.

Ele realmente confiava nela.

Realmente acreditava nela.

— Eu queria poder voltar no tempo.

O coração dela pulou.

A tristeza havia se espalhado pelos traços bonitos dele.

— É aquela bolha de que a gente falou. Eu estou acostumado a viver nela, mas nunca parei para pensar em como ela seria para você, porque você está certa, é um mundo diferente do mundo que conhecia. Eu só pensei que iria se adaptar e se encaixar, sem parar para pensar que eu também precisava me adaptar. Eu botei tanta pressão em você que não é de admirar que o peso dessa bolha tenha sido demais. Eu vejo você agora, voltando a viver fora dela, exatamente como viveu nesses dois anos que passamos separados, e está florescendo.

Cecília ficou em silêncio para que ele falasse o que tinha na cabeça.

— Eu sei que eu tenho padrões muito altos. Altos demais – admitiu ele, triste. – Passei toda a minha vida vendo meu pai apontar cada defeito meu. Sempre lutei para atingir a perfeição na esperança de deixá-lo orgulhoso e ouvir uma palavra, era só o que eu queria, uma palavra de elogio dele.

— Gustavo, o fato de não ser perfeito não diminui você – disse ela. – Só faz de você humano.

— Eu sei. Estar com você e Dulce, me ensinou isso. – Ele inclinou a cabeça e passou os dedos pelo cabelo. – É isso que eu mais odeio em mim. Jurei que nunca seria como ele, mas, na minha tentativa ridícula de punir você por não querer ter um filho comigo e ter a audácia de me deixar, eu me tornei o que eu mais desprezava. Por que você estava certa. Aquele casamento não era um ambiente para uma criança. Poderá me perdoar um dia?

Ela deu um sorriso cansado.

— Eu já perdoei. Ele se endireitou e passou o dedo pela bochecha dela.

— Eu puni você, mas foi uma desculpa. A verdade é que senti tanta saudade sua que, quando surgiu a oportunidade de ter você de novo na minha vida, eu a agarrei. – Inclinando-se, ele roçou os lábios na orelha dela e sussurrou: – Você é a melhor coisa que já me aconteceu, Cecí. O que quer que decida fazer no futuro, quero que seja feliz.

Com um último roçar dos seus lábios no dela, ele deu um passo para trás e virou-se, depositou a taça de champanhe numa mesinha e se afastou.

— Eu menti – soltou ela para a figura que se afastava, pondo a taça ao lado da dele.

 Gustavo parou na hora.

— Quando me perguntou se eu poderia ser feliz com você, eu menti. A verdade é que estes meses que acabamos de passar juntos foram os mais felizes da minha vida. As últimas semanas sem você foram o período mais triste, bem mais triste que da última vez que nos separamos.

Ele não se mexeu.

Continuou tão imóvel quanto as estátuas de mármore que circundavam o átrio.

A coragem dela quase a abandonou, mas Cecília estava decidida a ir até o fim. Ele se abriu semanas antes e ela o rejeitou.

Mesmo que ele a rejeitasse, precisava dizer. Não iria passar o resto da vida se arrependendo de ter deixado aquela única chance de felicidade escorregar por entre seus dedos.

— Eu fui uma idiota, medrosa. Deixei você duas vezes e não o culparia se me mandasse ir catar coquinho, mas, Gustavo... – Ela inspirou, e teve a sensação de nunca ter inspirado tão fundo na vida. – Eu te amo. Eu te amo tanto que chega a doer, e sei que não mereço, mas, se por acaso tiver curiosidade de saber se daria certo na terceira tentativa...

Ela não precisou ir mais longe. Gustavo se virou e, num piscar de olhos, envolveu-a com os braços e a beijou como se não houvesse amanhã.

Cheia de alegria e alívio, ela jogou os braços em volta do pescoço dele e entregou-se. Por uma eternidade, eles ficaram assim, Gustavo segurando-a com força, a boca quente na dela, até deixá-la no chão com delicadeza e pôr as mãos no rosto dela para olhá-la diretamente nos olhos.

— Eu pensei que fosse o nosso fim.

Ela balançou a cabeça e agarrou o paletó dele.

— Nunca.

— Eu pensei que tivesse perdido você.

— O meu coração é seu desde o dia em que o conheci.

— Meu amor... – Agora foi Gustavo que balançou a cabeça. – Eu te amo. Muito.

 Ela sorriu e passou o dedo pelo queixo dele.

— Sabe aquela bolha de que você estava falando? Será que dá para viver me equilibrando nela? Um pé no seu mundo, o outro no meu?

Ele riu, um rimbombar rouco que a encheu de uma felicidade tamanha que teve que beijá-lo de novo.

Gustavo se desvencilhou, pôs a mão no bolso da calça e tirou uma caixinha.

— Isto é para você. Era para ser seu desde o dia do restaurante.

— O que é?

— Abra e veja.

Ela levantou a tampa e seu coração foi à boca. Aninhado na caixa, havia um anel da eternidade de ouro branco cravejado de diamantes.

— É lindo – sussurrou ela.

— Para mostrar que o meu amor por você é eterno – respondeu ele, tirando o anel da caixa e colocando-o no dedo dela.

Cabia direitinho.

— Está vendo? Agora você é minha de novo.

Ela abriu um sorriso, exalando felicidade.

— Meu amor, nós vamos construir nossa própria bolha – afirmou ele, dando um beijo reverente na mão dela. – E vamos amar e celebrar todas as imperfeições dela.

— E você espera que eu engravide?

A risada morreu e uma expressão séria tomou os olhos dele.

— Você já me deu a Dulce. De todos os presentes que já ganhei na vida, esse foi o mais especial e o mais precioso. Eu espero ter mais filhos sim, mas só quando você estiver pronta, nem um dia antes. Eu não quero mais ter a família perfeita. Eu só quero ter vocês em minha vida – acrescentou ele com um sorriso torto. – Nossos filhos vão ser uma expressão do nosso amor e do nosso compromisso, nada mais.

— E que tal daqui a sete meses?

O choque vindo dele era tão palpável que Cecília caiu na gargalhada.

— Sim, meu amor, você vai ser pai de novo.

Ele arregalou os olhos e ficou imóvel.

— Como?

— Lembra aquela vez no seu escritório...? – Ela riu de novo quando os olhos dele se arregalaram ainda mais, aliviada por poder falar, sem conseguir se conter de animação e alegria. – Eu nem pensei em usar anticoncepcional na hora.

— Deus, eu também não usei nenhum preservativo – admitiu ele, completamente tonto.

— Eu fiz o teste de gravidez ontem, então ainda está no início. Dulce ainda não sabe, na verdade queria que ela soubesse por nós dois. Você nem imagina o quanto estou feliz... – A felicidade dela caiu um pouco. – Você também está feliz, não está?

— Feliz? Cecí, eu acabei de voltar coma mulher que amo mais que tudo no mundo e descobri que vou ser pai pela segunda vez. Estou muito mais do que feliz.

E lá estavam eles no deque do navio, esmagados pelos braços e beijos um do outro, completamente indiferentes aos passageiros que perambulavam em volta deles, completamente indiferentes aos sorrisos invejosos que davam ao perceber o amor profundo que sentiam um pelo outro.


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