A Proposta escrita por Maria Ester


Capítulo 24
Capítulo 24




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/749088/chapter/24

 

Gustavo entrou na mansão e deixou as chaves no aparador.

Os empregados haviam se recolhido e a casa estava em silêncio.

Ele esfregou a cabeça e foi até o bar. Depois de se servir de whisky, sentou-se numa banqueta, ligou a televisão e zapeou pelos canais de esporte até achar os destaques dos últimos jogos da Liga Espanhola.

Bebericando o whisky, ele viu o Barcelona massacrar o Celta Viga. Houve alguns gols bonitos e, normalmente, estaria alegre pelo seu time.

Se sua filha estivesse ali assistindo com ele.

Dulce passara a assistir e gostar de futebol tanto quanto ele.

Lembrou-se dos “iupis” que ela dava quando via um gol. E sorriu.

Futebol: seu fraco.

Mas, naquela noite, estava distraído, destroçado por dentro.

Alguma coisa no bolso da calça dele estava incomodando na coxa. Ele devia tirar.

Em vez disso, esperou o fim dos comerciais, virando o copo e pondo mais.

A droga da coisa ainda incomodava. Com uma careta, ele enfiou a mão no bolso e tirou a caixinha.

Sem olhar para ela, a pôs no bar e empurrou para longe. Havia começado outro jogo. Não sabia quem estava jogando.

Os olhos insistiam em buscar a caixa. Havia parado bem na beira do bar, quase caindo.

Quando ele apanhou o copo de novo, sua mão estava trêmula. A pele estava úmida, como se estivesse com febre.

Só de perceber, a cabeça começou a queimar e sentiu uma contração no estômago.

 Comi alguma coisa que não desceu bem.

Mas ele não tinha comido. Cecília quis ir embora antes de começarem o primeiro prato.

Cecília...

Não se conteve e foi pegar a caixa. Com o coração acelerado, ele abriu-a.

Por um instante, não conseguiu enxergar nada. Piscou e encarou o conteúdo da caixa. Quanto mais encarava, mais a náusea aumentava, até que não suportou mais e, com toda a sua força, jogou a caixa atrás do bar, quebrando uma garrafa de vodca.

Ele riu quando o cheiro de álcool imediatamente preencheu o ambiente e continuou rindo quando tomou o whisky de um gole e jogou o copo vazio em uma garrafa de Gin. Só o copo quebrou.

A risada parou quando inspecionou os cacos ao seu redor.

Não era capaz de fazê-la feliz.

Todas as suas tentativas deram errado. Ele a sufocava.

Tudo o que Cecília via quando olhava para o casamento eram níveis irreais de perfeição que se julgava incapaz de atingir. Assim como ele sabia que nunca estaria à altura das expectativas do pai.

Ele golpeou a bancada do bar com tanta força que trincou um vidro e fez um pequeno corte em seu punho. Nada comparado ao corte que insistia em sangrar dentro de seu coração.

Seria como o pai?

Tudo o que queria era agradá-la e fazê-la feliz, mas só conseguiu afastá-la, como o pai o afastara.

O final feliz com que sonhara para eles lhe foi negado. Era incapaz de fazê-la feliz. Ela não queria viver para sempre com ele.

Apoiando-se no bar, inspirou fundo.

Disse a si mesmo que iria passar. Passara da última vez, passaria de novo. Mas a dor... Era intolerável. O vidro quebrado não era nada perto dos cacos em que estava seu coração.

Faltava algo ali. Ou na verdade, faltava tudo dentro de si.

Houve uma passagem de tempo. Duas semanas.

Cecília desabou no sofá e pôs as mãos no rosto. Nunca se sentira tão exausta. Nem tivera um dia tão corrido. Trabalhou na escola, mas não foi tão pesado quanto podia ser às vezes. Jantou na casa da irmã, pois estava sozinha em casa.

Hoje era dia de Dulce ficar com Gustavo.

Lembrou-se do dia em que ela lhe indagou sobre o término do relacionamento com Gustavo.

Sabia que a menina estava triste com aquela situação. Pedia a Deus que ela se acostumasse logo a essa nova realidade. Mas era hipocrisia pedir o que nem mesmo ela se acostumara ainda.

— Mamãe, posso lhe fazer uma pergunta?

— Claro filha, o que você quer saber?

— Porque você me disse que a melhor decisão foi você e meu pai terem se separado se vocês continuam tristes pelos cantos?

Cecília ficou em choque.  

E agora, o que devo responder?

— Meu amor, quem lhe falou que nós estamos tristes?

— Eu vejo. Meu pai me disse que sou muito nova para entender problemas de adultos. – Abraçando Cecília. – Mas eu entendo vocês e não quero que sofram. Eu amo os dois, e preciso de vocês felizes, não tristes como estão agora.

— Meu amor, seu pai está certo, você é nova ainda para entender nossos problemas.

— Até a resposta é a mesma, eu sinta no meu coração que vocês se amam. Só são teimosos demais. Estão precisando ficar de castigo para ver se aprendem.

— Dulce, olha o respeito! – Cecília ficou encarando-a como se formulasse uma resposta. – Minha florzinha, o que posso te dizer é que o nosso amor por você sempre será o mesmo, ou até maior. Sempre vamos estar ao seu lado.

Não houve resposta. E depois daquele dia, não houve mais perguntas sobre esse assunto. Talvez ela já estaria se acostumando. Talvez!

Devia estar feliz. Tinha um teto, comida, a irmã por perto, tinha Dulce, que sempre estava ao seu lado como se percebesse que não poderia deixa-la sozinha e o centro novo estava adiantado, em pouco tempo seria a nova escola que ela tanto sonhou. Faltavam poucos dias para o cruzeiro beneficente...

Mas teria que ver Gustavo.

Não o vira desde o dia do restaurante. Nem mesmo quando ele buscava Dulce ou trazia da escola.

Pensara em não ir no cruzeiro, mas, quando comentou com Dulce, esta claramente a dedurou para o pai, porque ela recebeu um e-mail de Gustavo dizendo que, se ela não comparecesse, ele cancelaria tudo.

O e-mail continha um P.S.: “Cecí, isso é fruto do seu trabalho duro. Aproveite, por favor – você merece.”

As palavras dele não saíram mais da sua cabeça.

Ele a chamou de Cecí.

Também a chamou de Cecí dentro do carro.

Sentia falta dele, uma dor que nunca experimentara antes, nem quando o casamento ruiu pela primeira vez.

Passara mais de dois meses praticamente colada nele. Nesse meio tempo, só dormiram duas noites separados, quando ele foi ao Rio de Janeiro. Logo antes de deixá-lo pela segunda vez...

A cabeça dela começou a girar. Todos os pensamentos e sensações que tanto evitara nas últimas semanas vieram com força total e eram impossíveis de ignorar.

Seria coincidência ela ter terminado no mesmo dia em que o tio a deixou esperando de novo, e depois de passar duas noites em claro com saudades de Gustavo e imaginando todas as mulheres bonitas para quem ele devia estar olhando?

Será que...?

Seria possível...?

Ela se endireitou. Seria possível que ela tivesse sabotado a relação de propósito, por medo?

Porque Gustavo tinha razão dessa vez: quando começaram a perdoar o passado, o relacionamento foi melhor do que ela jamais teria sonhado. Fora tudo o que ela podia querer.

Gustavo tinha sido tudo o que ela podia querer. Ele aceitou Dulce de imediato, a amou e a ama como um pai.

Um verdadeiro pai!

Os três ficavam completamente à vontade juntos. Sinceros. Naturais. Iguais.

E ela jogou tudo isso fora.

O que dera nela?

Iria mesmo deixar o medo destruir sua vida?

Iria mesmo deixar Gustavo pagar pelos pecados do tio dela?

Porque foi ali que tudo começou.

Uma vida se sentindo descartável contaminara sua psiquê e a fizera acreditar piamente nisso. Em vez de esperar que Gustavo a trocasse por uma candidata mais adequada, menos descartável, ela preferiu fugir.

Mas ele não queria uma candidata mais adequada. Ele queria ela. Ele amava ela.

Sentou-se reta de repente, com a maior certeza que já tivera em toda a sua vida; Gustavo a amava com todas as suas imperfeições.

Ela levantou de um pulo e sentou-se de novo quando outra coisa lhe ocorreu. Ele podia amá-la, mas ela o magoou muito. O orgulho dele era enorme e Cecília o feriu, não uma vez, mas duas.

Talvez não quisesse ouvi-la. Mesmo se ouvisse, ele podia dar as costas.

Ah, tome vergonha na cara. Se ele der as costas, vai ser o que você merece. Vai sobreviver.

Melhor tentar do que passar o resto da vida arrependida.

Mas, antes de fazer qualquer outra coisa, tinha que cuidar de outro assunto primeiro.

 Ela passou os anos do casamento em busca de amor-próprio. Em algum ponto da segunda vez juntos, ela o encontrou. Não sabia onde e quando, mas estava dentro dela. E agora precisava tomá-lo para si.

Até tomá-lo para si e abraçá-lo, nunca seria livre para amar Gustavo como ele merecia ser amado, tampouco seria livre para aceitar o amor dele como ela merecia. Porque ela merecia amor, sim. Os dois mereciam.

Ela apanhou o telefone e discou um número.

Após alguns toques, caiu na caixa postal. Ela discou de novo. Aconteceu a mesma coisa. Continuaria tentando até o tio atender.

Afinal, ele não largava o celular quando estava com ela, segurava-o enquanto conversavam ou o deixava ao lado dos talheres enquanto comiam. Na terceira tentativa, ele atendeu. Estava irritado.

— Cecília?

 – Oi, tio. – Ela inspirou fundo e foi direto ao assunto. – Só liguei para avisar que não vou visitar você na quinta. Vou transferir o dinheiro que pediu, mas nunca mais me peça um tostão, porque não vai ter. Se precisar de mais, arrume um emprego.

Ele balbuciou palavras ininteligíveis do outro lado da linha.

— Eu passei a vida inteira esperando você – prosseguiu. – Eu o amo muito, mas não vou esperar mais.

Cecília desligou o celular e fechou os olhos. Após alguns instantes, abriu-os e expirou. Foi uma sensação agradável. Triste, mas agradável.

Como o tio ou qualquer outra pessoa poderia respeitá-la se ela mesma não se respeitasse?

E, ao pensar em tudo isso, percebeu outra coisa, uma coisa que a fez quase dar um pulo e pôr a mão no coração.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Proposta" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.