A Proposta escrita por Maria Ester


Capítulo 23
Capítulo 23




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/749088/chapter/23

As ruas perto do restaurante estavam engarrafadas, e as calçadas estavam apinhadas de gente que saía do teatro próximo.

Indo no fluxo do trânsito, Gustavo pôs o carro em ponto morto e apoiou a cabeça no banco. Ficou de coração apertado ao ver Cecília olhando melancólica pela janela, roendo a unha do mindinho. Queria abraçá-la bem forte e afastar aquela dor.

— Quanto você deu para ele nos últimos anos? – perguntou.

Ela ergueu o ombro, mas não olhou para ele.

— Não contei. Mas acho que uns 250 mil.

— Além da casa?

Ela assentiu.

Ele suspirou, ainda com mais raiva do cretino.

Uma cacofonia de buzinas rompeu o silêncio e, sobressaltado, Gustavo percebeu que era para ele. Passou a marcha e pisou de leve no acelerador.

— O que você fez com o resto do dinheiro?

— O que você acha? – perguntou ela, olhando para ele com uma expressão de curiosidade.

— Não sei. – Todas as suas pressuposições sobre ela foram desmentidas, era tudo o que sabia. – Acho que não gastou tudo com você.

— Eu comprei umas casas.

— Entrou no mercado imobiliário? Ela soltou uma risada.

— Não. Eu não entrei no mercado imobiliário. Eu comprei casas. Uma para a minha irmã...

— Eu comprei uma casa para a sua irmã – interveio.

Ao contrário do tio de Cecília, que não queria ver nem pintado, Gustavo gostava de Fátima e comprou um lugar decente para ela morar com muito prazer.

Foi um presente de Natal, uma surpresa para ela e Cecília.

— Em Doce Horizonte. Eu comprei uma casa de veraneio em São Paulo para ela ter onde ficar quando fosse fazer o tratamento dela. Além disso, achei injusto comprar uma casa para o meu tio e não para ela.

Gustavo sorriu, aprovando aquela linha de pensamento.

— Para quem mais você comprou?

— Para meus primos...

— Por que cargas-d’água? – Gustavo não conhecia os primos dela e não tinha a menor vontade de conhecer. – Deixe eu adivinhar: seu tio falou que nós nos separamos e você conseguira um dinheiro seu, então eles aproveitaram para entrar em contato e contaram uma história bem triste?

— Errado. – Ela fez uma careta. – Eu comprei porque quis. Eles podem ser distantes, mas, além de Fátima, são a única família que tenho.

— Você deu carros para eles também?

Ela assentiu.

— Para quem mais? – perguntou ele com um suspiro.

Não adiantava discutir. É verdade que com família não se mexe. Cecília estava certa nas críticas que fez à família dele, mas nem por isso elas doeram menos.

— Foram só essas que falei.

— Só isso?

— Não é suficiente?

Não estava brincando. A pergunta era verdadeira.

— Suficiente? Cecília, o dinheiro era para você.

— E eu gastei uma parte comigo. Não fui completamente mão aberta. Comprei uma casa e um carro para mim, e, até pouco tempo, ia para o cabeleireiro todo sábado. Eles precisavam muito mais de uma casa do que eu preciso de mais férias em lugares exóticos.

— Por que não me disse que você queria comprar casas para esse pessoal?

— Eu não podia pedir isso de você – respondeu ela, horrorizada.

— Por que não? Estávamos casados. – Ele não sabia o que era pior: ter esperado o pior dela ou descobrir que Cecília não se sentia suficientemente segura no casamento para achar que podia pedir qualquer coisa. Ele pensava que lhe dava tudo o que ela queria. De repente, a verdade o atingiu com um golpe: fora tudo uma grande mentira. – Você nunca se abriu para mim, não é?

Ela percebeu algo no tom de voz dela, porque o olhou séria:

— Como assim?

— No casamento todo, você jamais confiou em mim, confiou?

— Eu confiava, sim. Já disse que sabia que você nunca me trairia...

— Isso não é confiança! – Um pouco tarde demais, ele viu a luz do freio do carro da frente se acender e desceu o pé. Por centímetros não bateu. – Você não confiava em mim a ponto de me contar o que se passava pela sua cabeça. – Ele inspirou. – Eu amava você, mas nunca foi sincera comigo. Começou alguns negócios sem nenhum interesse real, mas não teve coragem de me dizer. Se tivesse por eles uma gota da paixão que tem pela escola, teriam dado certo.

Ele contemplou a blusa vermelha de seda, a calça preta e a sandália de salto fino, uma combinação elegante que, com o cabelo preso em um rabo de cavalo, ficava deslumbrante nela, mas completamente diferente das roupas que ela usava antes.

— Você até usa roupas diferentes. – Ele balançou a cabeça e inspirou fundo, tentando compreender. Deus. Até o estilo de se vestir dela fora uma mentira.

— O que eu fiz você não me falar a verdade sobre você e seus sentimentos? Eu já a maltratei?

— Claro que não...

— Então o que foi? Eu amava você.

Ela apertou os olhos.

— Se me amava tanto quanto diz, por que tentava me mudar?

— Eu não tentei mudar você.

— Bem, era o que parecia – disse ela com voz trêmula. Ela esfregou a testa.

— Antes mesmo de trocarmos os votos, você me encheu de professores para treinar dicção e tudo o mais. Fez a sua prima me levar às compras nas melhores lojas, contratou um personal trainer e um nutricionista para mim... O único motivo para ter tido todo esse trabalho foi por achar que eu não era boa para você e para a sua família perfeita.

— Pela última vez, eu estava tentando ajudar você a se encaixar.

— E por que isso? Porque eu não me encaixava.

Tanto ela quanto ele já estavam alterados nesse momento.

— Estava tentando proteger você!

Ela ficou perplexa.

— Queria me proteger de quê?

— Do meu mundo e das pessoas que vivem nele. Eu não queria botar você em situações sociais em que se sentisse intimidada.

Houve um silêncio entre eles, só interrompido pela respiração difícil e o latejar na cabeça dele.

— De agora em diante, chega de mentiras – disse ele, e se sentiu mais controlado.

— Não foram mentiras deliberadas – sussurrou. – Eu estava desesperada para me encaixar e deixá-lo orgulhoso. Ficava morrendo de medo de você conhecer alguém mais adequada e me abandonar.

— Nunca. Quando eu casei com você, foi para sempre, não até aparecer alguém melhor.

— Mas eu não acreditava. Como, se eu passei a vida toda acreditando que era tão insignificante que meu próprio tio só me queria quando não tinha mais nada para fazer? Que não merecia nem que ele me mencionasse para a família dele? – Ela expirou e apoiou a cabeça no banco. – Como você pode entender se tudo o que toca vira ouro?

Ele engoliu em seco, ferido. Como não entender? O garoto que cresceu com cada errinho ampliado pela reprovação totalitária do pai?

— Eu sei que parece assim na superfície, mas minha vida não foi um conto de fadas. Sei como é se sentir inferior.

— Quando você se sentiu inferior? – perguntou ela, virando o rosto para ele, de olhos arregalados.

— Meu pai... – Ele interrompeu e tentou organizar seus pensamentos. Se estava exigindo sinceridade dela, era justo que lhe oferecesse o mesmo, por mais difícil que fosse. Sem sinceridade, não tinham futuro. – Eu nunca o agradava. Nada do que eu fazia era bom.

Gustavo franziu o cenho.

— Ele era um homem frio e cruel. Um capataz duro. Tinha expectativas altíssimas e, quando o decepcionava em algum aspecto, ele deixava bem claro. Eu não lembro se já fiz alguma coisa que o agradasse, que o fizesse sorrir. Se ele sentia qualquer tipo de afeto por mim, não demonstrava, enquanto Gabriel e Estefânia, que também fora criada por ele e minha mãe, nunca erravam. Ele os idolatrava.

— Porque?

— não sei. Mas assim como o seu tio não tratava você e sua irmã como os seus primos. Eu lutei muito para conviver com essa reprovação.

— E hoje? Ele deu de ombros e rilhou os dentes.

— E agora ele não está mais aqui.

Durante muitos anos eu queria fazer perguntas a ele sobre o modo como me tratava, e agora nunca vou saber.

— Porque não perguntou a sua mãe?

— Não adianta. Minha mãe sempre fez vista grossa. Ela faz vista grossa para qualquer coisa considerada negativa. Quando eu saí de casa para me estabelecer sozinho, a única preocupação dela era que eu não sujasse o nome da família. E agora ela também não está mais aqui.

— É uma suposição e tanto. Talvez ela o surpreendesse.

— É, talvez! Estou contando com isso porque, se vamos ter um futuro duradouro, temos que ser sinceros um com o outro. Se você tivesse se aberto antes, eu teria compreendido, mas não leio pensamentos.

Ela lhe lançou um olhar quase assustado.

— “Futuro duradouro”?

— Se mantivermos o canal de comunicação aberto, esses problemas não vão acontecer de novo.

— Do jeito que você fala, parece que vamos voltar de vez.

— Seria tão ruim? – perguntou ele, mais calmo do que realmente estava.

Desde o Festival de Tintas, ele sentia um embrulho no estômago quando pensava no dia em que se despediriam para sempre. Os dias no Rio de Janeiro, quando ligou várias vezes só para ouvir a voz dela e de Dulce, o convenceram de que podiam recomeçar. Sentira tanta saudade delas que quase pegara o avião de volta na primeira noite.

Estar com Cecília era muito diferente desta vez. Mais fácil. Mais simples.

— Voltar? – perguntou ela, baixinho.

— Nós provamos nos últimos meses que somos ótimos pais. Dulce é o reflexo de nossa união. Podemos ficar muito bem juntos com um pouco de compromisso e sacrifício. Também nos entendemos melhor agora, você deve concordar.

— E supõe-se que eu terei mais filhos?

Ele percebeu uma tensão na voz dela.

— Minha linda, você vai já é uma ótima mãe, veja a Dulce, ela te adora. – O quer que a maternidade trouxesse, ela tiraria de letra.

— Enlouqueceu?

Ele recuou diante daquela veemência.

— Não acredito que você está falando assim. – Ela estava pálida.

Uma batida na janela os fez dar um pulo. Ele se virou e viu um homem gesticulando e xingando, e percebeu que o trânsito estava andando de novo, provavelmente já fazia alguns minutos, e todos os carros estavam parados atrás dele.

Erguendo a mão para se desculpar, ele ia botar o carro em movimento de novo quando Cecília abriu a porta.

— Aonde você vai?

— Não sei. Dar uma volta. Preciso pensar.

Ele não compreendeu.

— Como assim dar uma volta? No meio da noite?

A cor voltou ao rosto dela de repente. As palavras saíram rápido.

— Desculpe, mas eu não posso fazer isso de novo.

Agarrando a bolsa, ela saiu do carro e bateu a porta com tanta força que o carro tremeu.

Gustavo encarou a figura que se distanciava com o coração na boca.

O que acontecera ali? Levou alguns instantes para se recuperar do choque da reação dela e retomar o controle do corpo.

Ele soltou o cinto, pulou e, ignorando as dezenas de motoristas furiosos que buzinavam e sacudiam o punho, bateu a porta.

Por um instante, não conseguiu vê-la e seu coração quase parou de pânico. Então a avistou, já bem longe, no meio de uma calçada cheia.

Cecília entrou numa ruela onde não circulavam carros, sem saber aonde ia. Só queria fugir... Foi agarrada pelo braço. Quase gritou, mas aí viu que era Gustavo. Ela soltou o braço.

— Deixe-me em paz, Gustavo. Quero ficar sozinha.

— Está escuro, é perigoso sair assim sozinha.

Os pedestres lançavam-lhes olhares curiosos.

Gustavo sussurrou algo e tentou tirá-la do meio da rua. Ela se protegeu. À luz do poste, ela o viu passar os dedos pelo cabelo, sério.

— O que você tem? – perguntou ele, ríspido.

— Tudo! – Nisso, ela começou a chorar muito, sem controle. – Não percebe? Nada mudou. Como você acha que podemos ficar juntos permanentemente e ter filhos quando tudo o que nos separou continua aqui? Como vamos ter filhos num casamento desses?

— É diferente. Nós estamos juntos desta vez. Agora somos uma família de verdade, nós três, você sabe muito bem.

— Mas só porque sabemos que é temporário.

Ele ergueu as mãos em súplica.

— Pode ser para sempre.

— Passamos três anos juntos achando que era para sempre e, tem razão, era tudo uma grande mentira. Eu estava tão desesperada para não decepcionar você que esqueci quem eu era, e essa pessoa não se encaixa no seu mundo e eu não quero isso para Dulce também, principalmente por ela, não quero que ela sinta-se pressionada ou sufocada numa bolha.

— Eu nunca esperei perfeição de você, muito menos de Dulce Maria. – Ele arfava. – Quando te conheci, eu vivia nessa bolha. Passei a vida toda nela, uma vida de riqueza e privilégio em que o mais importante era manter as aparências. Você foi a primeira pessoa que eu notei fora da bolha. Eu só queria botar você na bolha comigo para protegê-la. Entende?

— Sim, entendo, mas não percebe eu essa bolha me sufoca? Eu queria tanto ser a esposa perfeita, estar à sua altura, lhe dar os lindos filhos que tanto queríamos. Eu também queria, mesmo, mas primeiro precisava encontrar amor-próprio. Nunca encontrei com você porque a pressão de fazer jus à perfeição da sua vida era demais.

Ela o encarou, sentindo uma tristeza quase insuportável. Ele parecia inconsolável, como se tivesse perdido sua fortuna para sempre.

— Gustavo, sua vida toda gira em torno da perfeição. Negócios perfeitos, casa perfeita, carro perfeito, mulher perfeita, filha perfeita, tudo perfeito. Veja o novo centro: quando estiver pronto, vai ser perfeito, graças a você. - Ela enxugou as lágrimas, mas continuou a chorar. – Desculpe. Nós somos muito diferentes. Podemos ter no máximo uma paixonite. Não posso levar aquela vida de novo. Não posso deixar que Dulce viva isso também. Não posso ficar com você para sempre.

Ela sabia que estava sendo injusta e cruel, mas foi aprisionada pelo medo de tal forma que falaria qualquer coisa.

Gustavo parecia estar vazio por dentro.

— Responda uma coisa – disse ele, em choque. – Se você não me quer, o que quer? Aquela pergunta a paralisou.

— Não sei. Só sei que não quero me perder de novo. Eu quero ser eu, Cecí. – Ela ergueu os ombros e o encarou. – Quero ser feliz.

— E não acha que pode ser feliz comigo?

— Não. Eu não posso ser feliz com você.

Ele sentiu um calafrio e ficou pálido.

Ela queria poder retirar tudo o que disse, ou ao menos suavizar as palavras. Mas não podia. As palavras não se formaram.

Gustavo pôs as mãos no bolso e endireitou-se, recomposto.

— Se é assim, não faz sentido continuar esta conversa. Vou levar você para casa.

— Para a minha casa?

Ele assentiu sem olhar para ela.

— Se é o que você quer...

— Acho que é melhor assim.

De pernas trêmulas, Cecília voltou para o carro, que ainda estava parado no meio da rua de faróis acesos. Não deram uma palavra até pararem na entrada da casa dela, e as luzes de fora se acenderam imediatamente sobre ele.

Olhando para a frente, Gustavo disse:

— Vou mandar suas coisas amanhã.

— Obrigada.

— E vou pedir para Silvana tratar com você sobre o cruzeiro.

Com a garganta apertada, ela só conseguiu menear a cabeça.

Ao sair do carro, ela fechou a porta devagar, uma desculpa silenciosa por todas as vezes que a batera com raiva.

Não olhe para trás.

Ela remexeu a bolsa atrás da chave, entrando em pânico por um instante. Então tocou o metal frio...

— Cecí.

Ela olhou para trás e viu Gustavo fora do carro.

— Dulce, eu não abrirei mão de nossa filha.

— Eu nunca lhe pediria isso. Ela te ama! -  E eu também!

— O centro novo... Foi você, não eu. Ele é o que é graças a você.

Foi só ao entrar em casa e trancar a porta que as pernas dela cederam.

Ele me chamou de Cecí!

Encolheu-se num canto e chorou tanto que seu coração se partiu de novo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "A Proposta" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.