A Proposta escrita por Maria Ester


Capítulo 13
Capítulo 13




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Gustavo estacionou ao lado de uma van e contemplou o prédio com o mesmo desdém da primeira vez.

Quando ele chamou o helicóptero para Doce Horizonte, o piloto estava arrependido. Não demorou para Gustavo compreender. Cecília pegou o número do piloto e disse que queria ir a São Paulo. O piloto não pensou duas vezes.

Pensaria duas vezes se ela tentasse o mesmo golpe de novo.

Gustavo imaginou que ela devia ter desligado o despertador no pouco tempo de sono que teve entre as sessões de sexo.

Teve que apertar um interfone e esperar alguém o atender.

Quando finalmente pôde entrar, achou que estivesse numa clínica. Sempre imaginara que creches fossem coloridas e cheias de crianças barulhentas.

O exterior tinha um ar institucional, mas esperava que o interior fosse mais adequado, menos cinzento e triste. O homem que identificou como Pascoal o cumprimentou à porta de uma grande sala mais parecida com o que imaginara, cheia de desenhos coloridos e mobília alegre. Havia um cheiro de comida no ar, não de todo desagradável.

Pacoal cumprimentou Gustavo com fervor, como se ele fosse uma estrela.

— É uma honra conhecer você. Somos tão gratos pelo que fez pelas crianças. É fantástico.

Enquanto Pascoal tagarelava, Gustavo observou os arredores.

Quanto mais olhava, mais seu coração batia e mais tonto ficava. Das dezenas de crianças, pelo menos metade andava de cadeira de rodas. Todas estavam sentadas em círculo com uma mulher de macacão amarelo, peruca vermelha e nariz de palhaço. Ela fazia malabarismo sobre uma tábua em cima de uma bola. O equilíbrio dela era deprimente e derrubou mais bolas do que apanhou, mas não importava para as crianças, que assistiam hipnotizadas, às vezes gargalhando.

Ele levou um tempo para perceber que era Cecília de palhaço.

Uma mãozinha puxou seu braço. Ao olhar para baixo, ele viu um garotinho.

— Esse é Luis – disse Pascoal, sorrindo. – Quer que você assista ao espetáculo com ele.

— Não estou aqui por diversão – respondeu Gustavo, pretendendo acrescentar: “Estou aqui para levar Cecília.”

Mas, ao abrir a boca, olhou nos olhos de Luis e foi recompensado com um sorriso enternecedor. Gustavo deixou-se levar pelo menino, que tinha síndrome de Down.

Ao olhar para as outras crianças, uma coisa ficou clara: todas eram deficientes. Outra coisa também ficou clara: todas estavam extasiadas com a exibição de Cecília.

De repente, ela o notou e vacilou. Quando as bolas caíram da sua mão, não havia fingimento. Uma menina de uns 8 anos, de cachinhos lindos, foi até Gustavo e o encarou com olhos vazios, depois cutucou a bochecha dele.

— Deixe esse cara legal em paz, Karina – disse Pascoal, pegando-a no colo. Karina cutucou Pascoal. – Desculpe, ela não sabe o que faz.

— Não tem problema. – Gustavo não via nada de incomum na menininha. Mas devia ter alguma coisa errada.

Cecília parou o malabarismo e começou a fazer bichinhos de balão com o mesmo desajeito que arrancou risadas das crianças.

Ela se curvou, então Pascoal e mais duas funcionárias levaram as crianças à sala de jantar, enquanto Cecília juntava seus apetrechos em uma mala velha. Não deu uma palavra.

Se Cecília não o tivesse notado durante a apresentação, poderia jurar que ela não o vira.

Cecília apanhou a mala e saiu com ela. Gustavo a seguiu até a entrada, onde ela virou num corredor e abriu a porta de um grande depósito.

— Desculpe, tá bom? – murmurou ela, encaixando a mala ao lado de um nicho cheio de guaches, cola atóxica e mais coisas de criança.

Pela primeira vez, ele não sabia o que dizer. Cecília tirou o nariz de palhaço e a peruca, que coçava. Um lado dela sabia que Gustavo iria aparecer. Sem nem entrar na sua teimosia, pegar o helicóptero já devia tê-lo levado à loucura.

Um lado dela queria que ele a seguisse, visse as crianças com os próprios olhos, compreendesse a importância daquela escola, daquele projeto. Por mais fútil que fosse, outro lado dela desejava que ele não tivesse vindo quando ela estava fantasiada de palhaço.

Queria que ele dissesse alguma coisa. Ela tirou o macacão aliviada. Sem ar condicionado no prédio, era como carregar uma sauna portátil.

— Que lugar é este? – perguntou ele, com uma voz pesada.

— Pensei que você tivesse lido todos os meus relatórios – respondeu ela, tentando soar despreocupada.

Abriu uma bolsa de pano e guardou o macacão, a peruca e o nariz. Não se deixaria afetar pela conversa. As crianças eram muito sensíveis a mudanças de humor.

— Eu li o que julguei suficiente.

— O que você achava que era?

— Uma creche.

— Jura?

Ele ficou sério.

— Você parece ter ficado satisfeita.

— Fiquei. – Ela cruzou os braços e deu um sorriso cruel. – A reação é mais fácil de perdoar se você achou que era uma creche para crianças normais de famílias normais.

Ele crispou os lábios, com um nó na garganta. Cecília chegou a sentir uma pontada de tristeza por ele e pela imagem cínica que tinha dela.

— Entende por que eu tive que vir? Se não estivesse aqui, a escola não teria aberto. É essencial tanto para as crianças quanto para as famílias.

— Quem são essas crianças?

— São crianças que nunca vão ter uma vida normal, mas que têm consciência suficiente para querer uma vida normal.

Ela queria poder ler os pensamentos dele.

— Fique umas horinhas. – Ela roçou os dedos na mão dele. – Veja o que a gente faz aqui.

Após um instante, ele respondeu:

 – Iremos embora quando você estiver pronta.

Fazia tempo que o coração dela não ficava tão leve, e voltaram juntos para a sala. Estava em plena hora do almoço, então foram ajudar na sala de jantar.

Como sempre, alguém deslanchara uma guerra de comida. Dulce teria adorado.

Ela olhou Gustavo, cuja atenção estava voltada para um painel que continha fotos sorridentes de todos os funcionários.

 – Você é voluntária?

— Sou.

Ele assentiu devagar e apertou os olhos, mas não de um jeito intimidante. Não havia desdém, apenas contemplação.

— O que você quer que eu faça?

Ela encarou o terno Armani dele e sorriu.

— Ajudar a dar comida para eles. Ao sentir um puxão no short, ela se abaixou para pegar Karina no colo.

A menininha a cutucou e depois a cobriu de beijos.

— Vamos alimentar você – disse ela, e levou Karina para sua cadeirinha especial e abriu sua lancheira. Ela olhou para Gustavo, que havia encostado uma cadeira para ajudar Luis a comer, já prevendo o que iria acontecer. Luis, o mais chato deles à mesa, estava comendo um espaguete. Paciência, pensou, alegre. Gustavo podia arcar com o custo da lavanderia.

De volta a Doce Horizonte ao pôr do sol, eles pararam para comer numa pizzaria, acomodando-se numa mesa na calçada.

Uma coisa que Cecília gostava em Gustavo era que ele comia de tudo. O gosto dele era refinado para todo o resto, mas ele batia qualquer prato.

Quando ela sugeriu que comessem ali em vez de num lugar chique, ele deu de ombros e concordou. Ela teve que se acostumar com a cozinha sofisticada quando se casaram, tendo crescido à base do micro-ondas. Como tudo era mais simples naquela época.

— Como você se envolveu com a escola? – perguntou Gustavo, depois de fazerem os pedidos.

— Fui como voluntária para dar aulas de português as crianças.

— É, mas como? Você viu um anúncio?

— Mais ou menos. Queria fazer trabalho voluntário enquanto decidia como seguir com a minha vida. Sempre gostei de criança. Mas tinha um futuro incerto.

Nunca parara para pensar nisso; já era difícil lidar com o presente.

Sempre adorou dar aulas, desde quando se formou, mas o mercado estava escasso e ela tinha que arrumas algum emprego. Dançara clipes suficientes para ter um ritmo decente, então ser animadora em resorts era a solução lógica.

Mas conhecer Gustavo e sua mente brilhante só expôs mais suas limitações com os negócios, e ela quis emendá-los, fazer os sacrifícios da irmã valerem a pena, deixar Gustavo e seus futuros filhos orgulhosos. Cutucou ideias de negócios que eram boas no papel mas não tinham apelo emocional. Não achava que isso seria importante. O que importava era o sucesso. Mas só houve fracasso. Como alguém poderia respeitá-la?

— Primeiro fui a um hospital infantil ver se precisavam de voluntários e, por eles, conheci uma das crianças que frequentavam uma escola parecida com essa – prosseguiu, tentando parecer alegre. – Fui ver se precisavam de mim, me apaixonei pelo lugar e acabei virando voluntária permanente.

— Eles não podiam pagar?

— Eles mal tinham dinheiro para pagar os funcionários. Além disso, eu tinha dinheiro para me sustentar.

Enquanto ele tentava digerir aquilo e processar sua opinião a respeito dela, as pizzas chegaram.

— De onde vem o dinheiro do centro?

— Está dizendo que você nem deu uma olhada nos relatórios financeiros que eu fiz?

 – Não tive tempo. – Achou que não era hora de admitir que julgara que os relatórios dela não valeriam nada.

Ele os pescou da pilha de descarte, mas não teve tempo de se sentar para lê-los. Ele se enganara feio a respeito dela.

A julgar pelo olhar de Cecília, ela também havia percebido.

— Os pais com condições pagam a diária. Mas a maior parte dos fundos vem de doações. É o suficiente para manter a escola funcionando, mas não para criar reservas.

— Vocês fazem muita coisa para arrecadar fundos?

— O máximo possível. Queríamos dedicar mais tempo a isso este ano, mas os últimos acontecimentos, alguns problemas jurídicos que Graças a Deus, Cristóvão me ajudou a resolver, botaram um freio.

Gustavo ficou ruminando em silêncio. Estava naquela escola havia menos de cinco horas, mas era o bastante para saber que queria ajudar.

— Por que você não me procurou?

— Eu pensei que fosse conseguir sozinha.

Assim como sempre pensara que poderia resolver tudo sozinha, mesmo sem as ferramentas necessárias. No fim, era uma batalha de vontades. Quanto mais ele tentava ajudar, mas ela o afastava.

— É por isso que você fez tudo no seu nome? Pela glória?

Ele soube a resposta assim que viu o olhar dela.

— Não! Eu queria ajudar. Essa escola não tem recursos, não tem capital de apoio. Eu pensei que tivesse dinheiro para pagar tudo. Só queria acabar com isso, mas achava que, quando estivesse terminado, poderia estabelecer uma espécie de instituição de caridade e passá-la adiante para que todos que precisasse sempre tivessem um lar. Ela abaixou a pizza sem mordê-la e tomou um gole da cerveja.

Também bebera cerveja no primeiro encontro. Foi só depois de ele a trazer para morar com ele, que o paladar dela passou a preferir vinhos finos imediatamente.

Gustavo a julgara o tempo todo, mas, estava errado em achar que ela era uma mercenária, e os eventos de hoje confirmaram o que vinha pressentindo, no que mais se enganara?

Pensou nos esforços tremendos que fazia na juventude para tentar impressionar o pai, estudando até tarde, deixando de sair, tentando ser o melhor da escola particular. Formou-se com nota máxima e recomendações do diretor. A reação do pai foi um resmungo desinteressado: “Vamos ver como você se sai quando estiver competindo com os maiores cérebros do mundo no MIT.”

Será que fizera Cecília sentir o mesmo tipo de inadequação? Meu Deus. Não. Ele a amou.

Não queria mudá-la, só fazê-la se adaptar para que não sentisse essa inadequação. Mas a sensação estranha de estar diante do Fantasma da Esposa Passada voltou, e ele sentiu uma dor no peito.

— Com os meus contatos e minha presença na mídia, podemos arrecadar fundos e divulgar a causa – disse ele, antes de beber sua cerveja.

— Seria maravilhoso. – Os olhos dela brilharam de alegria e Cecília abriu um sorriso. – Quanto mais fundos arrecadarmos, mais gente poderemos empregar e mais crianças receber.

 À medida que ele fazia outras perguntas sobre o projeto, ela ia ficando mais animada. Era uma animação que ele nunca vira quando ela planejava seus negócios.

Ela estava linda, com os olhos azuis brilhantes, gesticulando animada. Quando ele sugeriu um cruzeiro beneficente no seu navio novo, ela quase derrubou a pizza de animação.

Eles terminaram a pizza, comeram a sobremesa.

Gustavo olhou o relógio e, surpreso, percebeu que estavam ali fazia três horas. Se não tivesse anoitecido, nem daria para perceber. Pediu a conta e sorriu para Cecília antes de cobrir a mão dela.

— Vamos para casa.

Os olhos dela brilharam antes de esfriar.

— Alguma coisa mudou?

— Temos um acordo, minha linda. – Ele se inclinou para dar-lhe um beijo suave nos lábios, inspirando o cheiro. – Nada mudou.

 Mas, no fundo, ele sabia que tudo tinha mudado. Se tivesse o mínimo de decência, acabaria com aquele pacto. Resolveu que ficariam juntos até os novos documentos de Dulce saíssem. E que saudade ele estava dela, parece que a casa não era a mesma sem sua alegria, chegou até a perguntar se não era melhor passar para pegar ela, mas Cecília resolveu manter o combinado. Daria todo o apoio possível na vida e na criação de Dulce, isso era um fato, estariam ligados pelo resto da vida por conta da menininha.

Trabalhariam juntos, como deviam ter trabalhado no casamento. A verdade era que ele não estava pronto para se despedir delas. Não ainda. Nunca estivera. Algo dentro dele disse que nunca estaria.


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