MUTANTES & PODEROSOS I - O Segredo dos Poderosos escrita por André Drago B


Capítulo 32
Capítulo 31 - Kheryan


Notas iniciais do capítulo

;)



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CAPÍTULO 31

KHERYAN

 

  Kheryan se aproximou da mureta do navio e viu o continente no horizonte. Ele não era o único encostado na mureta e havia outros homens da tribo a sua volta, todos com armas nas mãos. Sentiu sua barriga roncar de medo e ele engoliu em seco ao pensar em guardas e nas outras pessoas que teria que enfrentar. Sim, ele estava com medo! Não fazia jus à tribo de corajosos ao qual ele pertencia. A tribo Shajaea sempre foi reconhecida pelas conquistas e pela ausência de medo na personalidade e nos sentimentos dos integrantes. Moravam isolados em uma ilha, ou pelo menos começaram em uma. Depois a tribo foi se expandindo e tomando cada vez mais espaço nos mapas. Ninguém os encaravam. As guerras eram sempre a mesma coisa: morte e gritos, dor e sangue. Apesar de ser tão jovem Kheryan já havia participado de várias, e todos sempre ficavam assustados ao vê-lo vivo depois de uma guerra, pois ele era conhecido por ser medroso. Isso mesmo, medroso. Um medroso em meio à uma tribo de corajosos. Era irônico, mas ele não se importava. Na verdade, não gostava dessa tribo e muito menos de guerras. Foi em uma delas que o seu pai morrera. Ele era só mais um guerreiro mas, aos olhos de Kheryan foi o mais forte de todos.

  Ah sim, existia outro problema com Kheryan: ele era gago. As pessoas e os outros jovens de Shajaea o zoavam em grande escala. Ele estava cansado das brincadeiras, das risadas, dos comentários. Tomara uma decisão: iria fugir. Não sabia quando e nem como, mas estava disposto a ir.

  Passou a mão pelo rosto e sentiu a barba negra que ele possuía. Ter barba na sua tribo era sinal de poder, demonstrava masculinidade e força. Ele, como todos os outros jovens, já tinha barba desde os dezesseis anos, mais ou menos. Provavelmente foi por causa de ela nascer tão cedo no rosto dos meninos shajaistas que a barba se tornou um símbolo tão forte. E claro, tinha as pinturas no corpo, feitas com tinta, ou mesmo com carvão.  Ele olhou para o seu tronco desnudo e reparou que seus desenhos estavam em uma cor escurecida, talvez por terem sido escurecidos com carvão na manhã daquele mesmo dia.

—E ai medinho? Está preparado para gritar feito menininha? – perguntou um dos jovens da tribo, que provocou risadas nos jovens do seu grupinho que estava a sua volta. Kheryan ignorou. – Uai! O gato comeu sua língua? Fala! Vai usar todos esses músculos para subir nas árvores e se esconder? Fala alguma coisa. Realmente você não tem a coragem que o seu pai tinha.

  Kheryan cerrou os punhos mas se conteve.

—N...não fale do m...meu pai! Você n...não o co...conheceu.

—Ai, acho que tem um probleminha na sua língua.

—Cale a bo...boca! – respondeu Kheryan

—O que você disse?- perguntou o jovem, enraivecendo-se.

—Saia daqui, Kik! – disse Hagh, o capitão daquele navio. O jovem saiu com seu grupinho, de cara feia. O capitão se aproximou  e encostou a sua mão no ombro de Kheryan. – Está preparado Kheryan?

—N...não! Nunca fui b...bom para bata...talhas. – respondeu o jovem, com as feições sérias, olhando direto para a água.

—Eu sei! É por isso você tem cargos entediantes, sem sequer reclamar, cargos estes que nenhum outro homem conseguiria ficar por mais de uma hora. – Hagh riu, mas o jovem continuou sério. -Kheryan, você é o único em nosso navio que levou um nome no idioma daqueles brancos estranhos. Lembro-me que seu pai disse que, no idioma deles, o seu nome significa corajoso.

—N...não consi...sigo compreender! Primeiro temos con...contato com eles e at...até apren...demos  o i...idioma de...deles. Dep...pois os ataca...mos

—Estratégia! E não tivemos contato com eles, mas com um grupo de imigrantes do reino deles, gerações atrás.  Aqueles nos passaram todas as informações do reino deles acreditando que éramos bonzinhos. – ele riu, mas Kheryan ficou sério. Nunca concordou com as maldades do seu povo. Ele sabia que depois, os imigrantes foram todos decapitados de forma cruel.

  Hagh reparou que o jovem continuava triste.

—Sei que seu pai morreu em uma guerra, mas você precisa superar isso. – o jovem o ignorou. -Tá certo! Pelo menos não faça besteira ouviu? É só você ficar aqui com mais três homens cuidando do navio contra qualquer ataque, ouviu?

  Kheryan concordou. Logo, o navio estaria atracado perto da costa daquele continente estranho e totalmente novo: o continente de Andryleen.

 

                                                                         ***

Taya se levantou lentamente, ainda olhando para o corpo caído aos seus pés. Sua feição era triste.

—Olha, onde estão os seus amigos?

—Não sei! – respondeu a loura. -Aquele grupo de piratas me atacou e me trouxe a força para cá!

—Eu sei perfeitamente onde podemos ficar! – disse Kira, e Taya franziu o cenho, esperando Kira falar o lugar, e não demorou até ela responder: -No portal de entrada da cidade.

—O que? – Taya se assustou. -Você acha mesmo que eu vou entrar no meio dessa bagunça? Só para ir até o portal da cidade?

—Foi onde eu combinei me encontrar com Harry! – respondeu Kira.

—Olha, não sei quem é Harry, mas tenho certeza que ele não contava com o ataque de piratas ao combinar com você esse lugar de encontro.

—É verdade! – concordou Kira. -Mas onde mais nós podemos ir agora?

 Taya olhou para a praia onde estavam. As ondas da praia rugiam atrás delas e o cheiro de maresia era forte. As nuvens negras se preparavam para liberar um turbilhão de pingos que iriam cair em incontáveis números.

—Bom, pelo que vejo, o único lugar que podemos seguir é pela praia até o portão de divisa entre os dois reinos quilômetros à frente. – respondeu Taya.

 Kira olhou os quilômetros que tinham que andar. O desânimo lhe abateu mas ela sabia que o melhor lugar para ir era por lá mesmo. Não podiam ficar ali, pois, dali daria para ver o navio dos piratas e era óbvio que eles voltariam ou pelos menos passariam por ali. Se entrassem na cidade, nem daria para saber o que aconteceria em meio àquela confusão. E agora tanto ela quanto Harry sabiam que Jackie fora para Tarinter, portanto ele ao menos desconfiaria que ela fora até lá quando não a encontrasse.

—Bem, ok! Então vamos. – respondeu Kira.

  As duas deixaram os corpos para trás e seguiram a areia, no objetivo de chegar até o portão, ou mesmo passar por ele.

 

                                                           ***

Kheryan estava encostado no mastro, se apoiando em uma perna apenas, enquanto a outra estava dobrada encostando a sola na madeira que compunha esse mesmo mastro. Ele observou os botes que levavam os guerreiros até a praia. Ele ouviu quando as dezenas de remos de todos os botes de todos os navios da tribo Shajaea começaram a deslizar pela água fazendo um barulho que acalmava Kheryan. Ele estava com medo e sentiu sua barriga roncar e um frio percorrer como um raio seu corpo. Ele estava amedrontado, mas tinha que cumprir o seu plano. Viu quando, em um dos botes, Kik sorriu com ironia e deboche para ele. Kheryan levantou a sobrancelha em uma expressão como se dissesse: “espero nunca mais ver sua cara suja”.

  Os botes se distanciaram. Ele sentiu uma pontada de satisfação ao ver a maior parte da tripulação do navio sair dali, mas ele ainda não estava sozinho. Tinha mais três homens no navio com ele, montando guarda. Um deles tinha um nariz que parecia de uma banana: era primo de Kik. Kik também o tinha, mas não gostava que ninguém comentasse do seu enorme nariz. Outro tinha um cabelo ralo e começando a ficar branco. Era bem mais velho, e por isso estava ali. O terceiro tinha um olho só, pois o outro fora arrancado. O jovem sabia que para cumprir seu plano, tinha que despistá-los. Desejou muito ser um Qawiun. Não era a primeira vez tinha esse desejo, e provavelmente não seria a última. Se fosse um Qawiun, não precisaria ficar preso naquela tribo e nem ter medo de guerras.

  Os Qawiun, como eram chamados os Poderosos em meio aos shajaitas, eram tratados como guardiões das tribos, enviados pelos deuses para protegê-los. Com o tempo, os sacerdotes da tribo diziam que tinham de ser mantidos em torres só para eles e não podiam ter contato com nenhum que não tinha poderes. Assim, eles não se relacionavam e não tinham mais filhos. Dizia-se que tudo o que podiam fazer era defender o reino. Foram morrendo sem deixar substitutos, extinguindo essa raça de humanos em meio aos shajaitas.

  Os Almusukh eram mortos aos montes. Diziam que eram exatamente o contrário dos Qawiun e vinham para destruir Shajaea.  Suas aberrações físicas, ou mutações, eram para extinguir a tribo. Kheryan sempre achou isso ironicamente burrice, pois havia uma probabilidade maior de um Qawiun destruir a tribo com seus poderes do que um Mutahawila— singular de Almusukh – com suas mutações. Enfim, os únicos tratados normalmente eram os Kulu Yawn, ou Corriqueiros. Todo o garoto Aistithnayiyun – singular de Kulu Yawn – aprendiam a agradecer por não ser um Mutahawila mas reclamar por não ser um Qawiun. De qualquer forma, ele nascera Aistithnayiyun e nada ia mudar isso.

  Continuou apoiado no mastro, sonhando como se tivesse poderes. Não revelaria à ninguém,  se os tivesse, pelo contrário, os usaria para fugir para bem longe daqueles guerreiros estranhos e loucos. Um barulho de trovoada veio de trás dele. Ele sabia que só precisava esperar a chuva chegar e começar a se derramar torrencialmente como prometia, e, enquanto os outros trabalhariam freneticamente para tirar água do convés, empurrando-a para os pequenos buracos ao longo da mureta do navio, feitos justamente para isso. Assim, enquanto os outros estivessem distraídos, ele cumpriria o seu plano, dando o fora para sempre daquela tribo. Sorriu alegre e ironicamente, sentindo que foi um erro Hagh ter o trago. Achavam que levando-o para as guerras, o ajudariam a tomar coragem, mas aquele não era ele. Ele era o medroso Kheryan, o “medinho”. Não nascera para guerras e sentia que seu propósito na vida era outro.

  Novamente, mais trovões. Acima deles, as nuvens já estavam preparadas para desabarem em cima deles em formato de água. Viu quando os botes desembarcaram na praia e os homens seguiram até um  pequeno beco, entrando cidade à dentro. Ouviu os gritos desesperados das pessoas, das mulheres, das crianças. Baixou a cabeça. Seriam todos mortos. Ou aquelas pessoas ou os shajaitas, mas a vida de alguém seria ceifada. “Não fomos feitos para isso. Não fomos feitos para matar”. Sentia o que ninguém mais da tribo parecia sentir: pena. Misericórdia.

   Sentiu o cheiro da maresia e o barulho das ondas salgadas, que se enrolavam como se fazem com tapetes e tapeçarias, se desmanchado em leves marolas espumantes.

—Acho melhor eu ir buscar os rodos. – disse o narigudo, primo de Kik, pronunciando irritantemente cada palavra de forma lenta. Ele seguiu até o enorme alçapão, descendo para o porão, onde, em uma saleta, guardavam  materiais como rodos para puxar a água.

   Kheryan se desencostou do mastro, olhando em direção ao mar aberto atrás deles. A imagem, na verdade, era assustadora. Enormes, imensas nuvens negras piscavam à medida que cobriam o céu feito um cobertor. O vento que tocava o rosto do jovem shajaita era incomodo, pois remetia a tempestade. Aquilo, para algum guerreiro da tribo Shajaea, tinha tanta importância quanto um mero e solitário gafanhoto em meio à quilômetros de plantação: poderia fazer algum estrago ou prejudica-los em algo, mas seria pouca coisa. Mas para Kheryan, aquilo era tão ruim quanto um buraco negro engolir toda a galáxia.

 Ele sentiu-se tremer. A barriga roncou, e lentamente se aproximou e encostou na mureta de madeira do navio. Abaixou-se até ela estar à altura de seu peito, inclinado o suficiente para conseguir ver a água agitada e espumante abaixo. Olhou para a água bem focado, tentando ver o fundo, mas como não viu nada presumiu que a água tinha dezenas de metros de profundidade ali. Sentiu-se enjoado. Sentia medo. “E se o plano não der certo? O que eu farei?, mas ele balançou a cabeça, na tentativa de afastar os pensamentos. “Não! Eu sei que vai dar certo. Eu sei nadar e sei lutar. Não tenho motivo para ter medo”. Falar isso era quase insignificante para alguém como ele, onde a principal marca de sua personalidade era o sempre presente sentimento de medo.

  Do alçapão aberto, o narigudo apareceu, trazendo em sua mão quatro rodos. Obviamente, todos os quatro logo teriam trabalho a fazer quando a chuva começasse a cair.

  Kheryan afastou-se da mureta. Ele precisava fazer isso. Era muito importante, e por mais que isso lhe causasse medo, sabia que tinha que fazer isso. Só precisava esperar passar alguns minutos depois da chuva começar a cair, e no momento em que os três estivessem distraídos, cumpriria o plano.

  Ele conteve um sorriso de alegria. Horas antes, navegando e chegando perto dali, ele desejava fugir. Agora, no mesmo dia, já tinha um plano bolado na mente para dar o fora dali, aproveitando as circunstâncias em que se encontravam.

  Logo, um pingo caiu das enormes e cinzentas nuvens, aterrissando direto na água. Estava chegando a hora. Depois, outro pingo. Depois, outro. Logo, os chuviscos marcavam toda a água do mar em volta. Não demorou para que logo os pingos engrossassem e enchessem o convés de água.

—Vamos! Limpem logo! – disse o de um olho só. Começaram a arrastar toda a água em direção aos buraquinhos posicionados em fileira pela mureta do navio.

 Kheryan já fizera isso mais de uma vez e sabia como era ruim a mistura de frustração, mas ao mesmo tempo como era prazeroso conduzir a água até os buracos. Mas a frustações, ao mesmo tempo, vinham por causa de todo o esforço para tirar a água do navio, e então, quase que imediatamente se encher de água novamente com mais pingos. Todavia, ele sabia que aquilo era necessário para que a água não enchesse o navio e entrasse pelo alçapão de ferro, inundando a parte interna do navio.

  Ele olhou para o castelo da popa e viu que a água caia como uma cachoeira de lá de cima até o convés. A água corria tão rápido pelo chão de madeira, quanto uma raposa que corria do caçador. Seus pés, contidos dentro de sandálias, estavam encharcados de forma irritante.  Eles ouviam o barulho quando a água que caia do convés deslizava pelos buraquinhos e caia como uma cascata em direção ao mar. Kheryan olhou para a praia e viu que as ondas batiam com força na areia, como que revoltada com a água da chuva. Duas manchas corriam pela faixa de areia. De longe, não dava para saber ao certo o que era aquilo, mas pareciam pessoas. Deviam estar fugindo do ataque dos estranhos coloridos e que andavam sem camisa. Era tudo estranho para aquelas pessoas, e ele sabia que se fosse um deles, não acharia diferente.

   Olhou para os três. Estavam tão mergulhados na tarefa que não perceberam quando o jovem sentou-se na mureta do navio, sentindo a madeira debaixo de si. Olhou para a água lá embaixo, o mar ficando revolto, e sentiu uma pontada de medo. Medo de que o mar o puxasse; medo dos bichos e dos monstros marinhos; medo da situação. Por alguns segundos, permaneceu com os olhos fechados, hesitante.

—Ei, medinho! O que acha que está fazendo? – a voz envelhecida mostrava ser do homem já mais de idade.

   Neste momento, ele não hesitou mais. Respirou fundo, impulsionou-se com as mãos e sentiu o mar vindo em sua direção, ou melhor, ele indo em direção a água. Quando tocou-a e afundou  meio metro dentro dela, sentiu-a tão gelada quanto neve derretida. A água envolveu-o num abraço, o sal tocando imperceptivelmente a sua pele. Estar apenas com aquela saia, sem camisa, numa água totalmente gelada, era péssimo.

  Retornando à superfície, começou a bater os braços e as pernas, lembrando-se das aulas de nado. Quando os braços saiam de debaixo da água, eram tocados por diversos pingos. A água estava turbulenta e seu esforço foi dobrado pela correnteza leve pela qual passava. Ondas batiam de todos os lados, fazendo um barulho amedrontador. Dos navios, ouvia os homens gritando coisas como: “Quem é esse homem?” e “O que ele está fazendo?”. Outros logo descobriam quem era: “É o ‘medinho’. É o ‘medinho’”.

  Sua respiração era pesada e sentia seus pulmões queimarem. Engoliu um pouco de água, e sentiu o mar tocar-lhe o pescoço quando parou de nadar para tossir a água fora. Parecia que sua visão dava alguns giros, mas ele voltou a nada. Sua garganta ardia, e sentiu o medo fazendo a sua barriga doer.  “Ah, pelos deuses! O que eu estou fazendo? Posso morrer afogado agora, ou um bicho me atacar ou....NÃO! Não posso pensar nisso.

  Continuou nadando. O esforço valia a pena e viu o quanto já havia se afastado do navio. Mas ele estava chegando mais perto da praia, e agora tinha que enfrentar as ondas.

  Viu a primeira onda daquela praia de perto alguns metros à frente. Ia ser difícil passar por elas, mas ele sabia que conseguia. Foi se aproximando de uma que se formava, e quando chegou nela, fechou os olhos e mergulhou, continuando a nadar debaixo da água. Sentiu a onda passar por cima dele, e se desfazer logo à frente, em barulhos abafados pela água. 

  Levantou a cabeça e inspirou bastante ar, vendo outra logo a frete. Arrepiou-se em uma mistura de medo do mar, da onda (não muito grande, mas um pouco maior do que a anterior) e pelo frio, que espetava todo o seu corpo feito uma tapeçaria sendo costurada por um grupo de mulheres, que o alfinetavam todo. Mergulhou e novamente teve a mesma sensação de antes: a onda se desfazendo por cima dele.

  “Como aqueles homens conseguiram passar por aqui com os botes de madeira?”, perguntou a si mesmo, admirado com a habilidade dos navegantes da própria tribo. Foi então que ele reparou que, à sua frente, talvez uns vinte metros, estava a praia, e nenhuma onda se formou até ele tocar a areia da praia.  

  Nadou mais rápido, gastando mais energia, o que valeu a pena, pois ele conseguiu escapar da onda que se formou logo quando pisou na areia da praia. Se jogou no chão e sentiu a água deslizar por suas pernas e recuar novamente, repetindo o movimento diversas vezes. Sentiu uma pontada de vergonha ao ver todos o observando nos navios à frente. E também sentiu uma pontada de...medo. O que Hagh iria pensar quando soubesse que ele fugiu? Será que ele ficaria bravo? Pasmo? Sentiria sua falta? Ou agradeceria por ele ter ido, o peso para os guerreiros da tribo por ter medo até de uma leve batalha?

  Foi então que a ficha caiu e ele percebeu que havia atravessado toda aquela distância a nado. O “medinho” atravessara tudo aquilo a nado. Conteve um sorriso de alegria. De onde tirara coragem para atravessar tudo aquilo?

 Olhou a praia e observou duas figuras correndo pela areia. Eram as mesmas que tinha visto do navio, mas agora dava para vê-las um pouquinho melhor e pelo formato, constatou serem duas mulheres.

  Levantou-se da areia da praia. Se ficasse ali, os homens poderiam voltar da cidade e achá-lo ali, e seria condenado à morte por  “traição, o mal tão ruim quanto a covardia”, relembrou a frase que os líderes lhes ensinavam pelas leis e regras da tribo Shajaea.

  Ele andou alguns passos à frente, o suficiente para poder ouvir os homens nos navios gritando distantes: “Traidor! Traidor! Todo o traidor deve morrer. Traidor!”.  Viu sua visão ficar embaçada pelas lágrimas que estavam prestes a saltar de seus olhos.  Por um instante se arrependeu do que fez e ficou com vontade de voltar para o navio, mas logo afastou este pensamento.

  Seguiu, correndo pela areia da praia, chegando mais perto das duas mulheres que também corriam na areia da praia, tudo para fugir de um grupo de invasores.

  Correu e viu as figuras se tornarem mais bem visíveis, reparando agora nas roupas das moças e no formato esbelto de seus corpos. Reparou que o cabelo de uma era loiro e que em seus braços tinham luvas estranhamente rasgadas e os dedos dela eram verdes como se fossem... escamas! A segunda tinha cabelo castanho, e logo em suas costas viam-se uma aljava, um arco e até um bastão comprido. Ele parou um segundo, com medo daquelas jovens. Sua barriga roncou e doeu de medo. Uma era Mutahawila e a outra uma guerreira toda armada. E se elas achassem que ele era inimigo e tentassem se defender? Elas ficavam olhando toda a hora para trás e avaliando a distância entre elas e ele. “A coragem sempre vem de dentro, mas pode ser impulsionada por algo de fora!”, lembrou-se de uma das únicas frases que ele ainda se recordava de seu pai.

   Fechou os seus olhos e ouviu os homens ainda o chamando de traidor. Com quem preferiria ficar? Com um bando de doidos que amavam matar gente e que o insultavam de traidor, ou com duas jovens que pareciam perigosas, tendo a chance de não se defenderem dele e simplesmente deixarem-no passar por elas.

  Ele abriu os olhos, nova coragem queimando o seu rosto e voltou a correr, agora bem perto da praia, mantendo uma distância de alguns metros delas. Quando passou ao lado delas, sentiu que elas não fizeram nada para o atacarem, mas concluiu isso cedo demais. Sentiu a força com que o bastão o atingiu no lado esquerdo do corpo, o derrubando. A jovem de cabelo castanho bateu mais algumas vezes nele, até ele se cansar e gritar:

—Pa...para!

  A jovem paralisou-se ali.

—Fala minha língua? – a voz era ousada e forte.

—S...sim! todos nós fa...falamos su...sua língua! – ele parou e respirou por alguns segundos, cuspindo sangue da boca e manchando a areia. –Es...escuta! eu não q...quero machu...car vocês.

—Você é um deles! – ela gritou, se preparando para bater mais em seu rosto com o bastão.

—Não! – gritou a jovem loira. –Vamos ouvi-lo Kira!

  Ele quis agradecer, mas sentiu que não tinha tempo para isso.

—Aque...quela tribo é u...um ter...ror  pa...para mim! Eu estou fu...fugindo de...deles.

—Mentiroso! – gritou a tal Kira.

—Calma! Vamos ouvi-lo. – disse a loira.

—E...eu vim nadando naque...quela água fri...fria até aqui. A...cha que eles ar...riscariam um de se...seus guerreiros a mo...morrerem de frio só pa...para tentarem pe...pegar duas jo...jovens aleato...tórias andando na praia.

  Foi quando as duas pararam para pensar melhor, incluindo a Kira.

—Vo...vocês tem ar...armas e ga...garras. – ele disse, olhando para os dedos saindo dos rasgos da luva da loira, fazendo-a esconder suas mãos atrás das costas. –Vocês po...podem se de...defender melhor do q...que eu de mim mes...mesmo. Só que...quero ir com vo...vocês até o port...tão.

  Kira olhou para a loira, que focou seus belos olhos esverdeados nos da outra. Ela fez um leve movimento de “sim” com a cabeça e outra fez que “não”. Repetiram o movimento pelo menos por dez segundos, até que Kira se cansou e olhou para ele, dizendo:

—Tudo bem! Só até o portão, mas depois não quero ver mais você.

—O...obrigado...

—Ah! E se você tentar nos matar... – ela tirou metade de uma espada, que ele não tinha visto, do estojo, pendurado em sua cintura, dando a entender que ela o mataria ou pelo menos o deixaria gravemente ferido.

  Ele balançou a cabeça positivamente. As duas voltaram a correr e o deixaram se levantar sozinho e correr para perto delas.

 

                                                             ***

  Todos olharam em volta e perceberam a ausência da jovem Mutante. Luke ficou paralisado por alguns segundo em seu lugar, sentindo um frio percorrer a sua espinha, mas disse:

—Por que vocês deixaram ela fugir? – havia raiva em sua voz.

  Jessie deixou que uma feição de indignação ocupasse seu rosto.

—O quê? Você acha que é culpa nossa?

—Claro! Ela estava conosco. Vocês não viram para onde ela foi?

—Não! – respondeu Jessie, com a voz cheia de raiva.

—Gente...-disse Isaac, mas os outros dois continuaram.

—Vocês tinham que ter visto ela! Tinham que manter a sua atenção nela.

—Por que? Eu lá sabia que ela iria sumir? Eu olhei para ela em meio a multidão assim como olhei para vocês. Se você não a viu sumir, nós também não.

  Luke abaixou a cabeça e esfregou o seu rosto com as suas mãos, mas Jessie completou.

—E você era quem estava mais perto dela!

  O louro levantou seu rosto, tão avermelhado quanto o de Jessie pela discussão e pela raiva, e sentiu a sua raiva sair dele junto com sua expiração.

—É verdade! A culpa...

—Gente...

—A culpa é minha. Eu é que estava com ela. Eu é que tinha que ter visto para onde ela foi. A culpa dela sumir é minha.

—Luke, não foi o que quis dizer. – Jessie respondeu. –Eu simplesmente queria que você soubesse que a culpa não é de nenhum de nós.

  Ela olhou para Luke, que agora demonstrava culpa e preocupação em seu rosto.

—Não Jessie! Eu tinha que ter visto. A culpa é minha...

—Gente! – gritou Isaac, agora com o dedo indicador levantado em direção à boca da ruela, mas antes que eles virassem e vissem o que estava lá, ouviram uma voz, que fez Jessie parar por alguns segundos.

—A culpa não é de nenhum de vocês! – era uma voz grossa de homem, mas rouca pela idade.

  Jessie apurou o faro e reconheceu aquele cheiro. Ela se virou e viu a silhueta do homem das ervas laranjas.

—Vo...você? – ela gaguejou.

—Você o conhece Jessie? – Isaac indagou.

—Sim! Quando estávamos na Hospedaria Três Espadas, em Reliar, fui até a loja comprar a erva laranja, mas o dinheiro que eu tinha não batia com o preço cobrado. Foi ele que comprou a erva laranja para mim.

  O homem sorriu.

—Esta talvez tenha sido a única vez em que tinha conversado com ela – ele apontou para Jessie. - e nunca com o louro com asas.  Mas você eu já tinha visto antes. – ele direcionou o seu olhar para Isaac.

—O quê? Quando? – indagou Isaac, assustado.

—Em Weneryn. Estava na loja procurando ervas laranjas, mas não as encontrei lá.

—Sim! Lembro-me. Estava eu, Taya e Inimigo.

—Espere! Como você sabe que eu tenho...asas?

—Por que eu venho acompanhando vocês faz tempo.

—O quê? – Isaac gritou –Quem é você e o que quer conosco?

   Isaac puxou uma das espadas na bagagem do cavalo ao seu lado, enquanto Luke cerrava os punhos e Jessie sentia o seu poder percorrer cada parte do seu corpo, pronto para paralisá-lo.

—Ah, por favor! Não usem suas armas, sua força ou mesmo seus próprios poderes. – ele deu um sorriso tranquilo, como que esperando os jovens se desarmarem, mas eles não cederam. – Meu nome é Sannely, e o meu motivo para segui-los foi simples: Taya.

—O quê? – gritou Luke, inundado pela raiva. – Se você fez algo com ela...

—Então, Luke, não fiz nada com ela. Meu objetivo era achar o meu primo, quando encontrei com Taya.

—E o que seu primo tem a ver com Taya? – Luke estava com raiva na sua voz, e deu alguns passos para frente, para mais perto do homem. Cerrou os punhos com força o suficiente para que eles ficassem vermelhos, “pintando”  por dentro sua pele branca.

—O meu primo é o avô de Taya! –ele respondeu. Isaac olhou para o chão, pensando e ligando um ponto no outro.

—Se você fez algo com...

—Luke, deixe-o! – Isaac ordenou com um tom autoritário na voz. -Ele procura pelo avô desaparecido de Taya, o que virou uma criatura selvagem.

—O que? – Jessie ficou meio assustada, seus olhos azulados focando nos de Isaac, enquanto seus cabelos avermelhados caiam-lhe pelos ombros. –Como assim, Isaac?

—Sim, os pais dela contavam que o seu avô era meio homem meio lagarto. Ele ficava selvagem e matava pessoas nas vilas por perto, mas depois voltava normal para casa. Um dia ele ficou selvagem e fugiu, e nunca mais foi visto. Ninguém nunca mais o achou.

 Jessie mostrou estar pensativa pelo seu olhar, seus finos lábios rosados se contraindo em um movimento que demonstrava o mesmo.

—Eu sou primo do avô da Taya! – o homem voltou a falar, e os três olharam para ele novamente. De repente, em uma fração de segundos, o homens desapareceu da boca da ruela, onde estava e apareceu menos de um metro à frente deles. Ele era Poderoso e podia se transladar instantaneamente. “Por isso, quando virei para vê-lo uma última vez no beco em Reliar não o encontrei mais”, concluiu Jessie.  –E eu vi o que aconteceu com Taya!

—Você pode se transladar? – perguntou Isaac, mas sua pergunta foi abafada pela de Luke.

—O que aconteceu com Taya? Fala! - ele estava desesperado para saber.

—A sua namorada foi raptada pelos piratas, mas não vi para onde foi levada. É provável que tenha sido levada para a praia, onde estão os navios deles.

—Então vamos buscá-la! – disse Luke, mas os outros se mantiveram onde estavam, pois Sannely fizera um gesto com as mãos para eles esperarem. – Temos que tomar cuidado com Taya.

—O que você esta falando? Está insinuando que minha namorada é perigosa?

—É, Luke! É exatamente isso. – confirmou Jessie, ajeitando o gorro negro em sua cabeça.

—Taya herdou o problema genético do avô dela. Por isso ela fica selvagem, mas diferente do avô dela, que se tornava assim à noite, ela pode transformar quando se sente ameaçada.

—Por isso ficou assim na vila de Steffany, quando se sentiu ameaçada pela cobra. – concluiu Isaac. – E em todas as outras transformações ela se sentia ameaçada.

  Isaac respirou fundo. Sannely concluiu:

—Taya é perigosa!

—Taya é a minha namorada! – interrompeu Luke, impaciente.

—Taya é um risco à nossas vidas e não há cura para aquilo, como não houve para o meu primo. – respondeu Sannely.

   Jessie levantou o seu olhar para eles.

—Existe uma pessoa que pode curá-la!

—Quem? – perguntou Isaac.

—Apenas Sou, conhecido como O Amor Que Pode Amar à Todos.

—Quem é esse? – indagou Sannely. –Onde ele está? Por que não amou o meu primo e o curou?

—Ele amou o seu primo. Ele está chegando. – Jessie manteve a seriedade e concluiu. – Ele, na verdade, já está entre nós!


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Notas finais do capítulo

E ai? O que acharam do novo personagem?