SADIE

Sabe quando você está toda enrolada na cama e seu alarme começa a tocar e tudo que você pede é só mais 10 minutos e aí o segundo alarme começa a tocar, teoricamente 10 minutos depois, mas realmente parece que só se passaram 10 segundos? Pois é, essa era eu naquele momento. Mal abrindo os olhos, estiquei minha mão até o meu celular tentando desligar o alarme que tocava Chandelier, da Sia. Eu estava tentando dar uma variada de Adele e acabei gostando bastante de Sia.

Eventualmente, eu abri os olhos e saí da cama. Uma rápida olhada na janela mostraria que toda a neve já tinha derretido, mas eu não queria olhar pela janela. Alguns meses já tinham se passado desde que toda essa confusão de mitologias diferentes tinha começado. Felizmente, Naunet e qualquer outro ser mitológico de nome complicado parecia ter ficado quieto. Claro, tivemos pequenos problemas aqui e ali, mas nada muito grande.

Apesar de toda a rede de comunicação que havíamos montado com os romanos, gregos e nórdicos (uma rede muito complicada mesmo, porque envolvia coisas como celular e mensagens de Íris), não tínhamos descoberto muita coisa nova. Claro, era revigorante saber que alguns deuses, como Ártemis, estavam realmente ajudando, também foi muito legal Annabeth descobrir que o tal do cara que queimou o dedo com salmão provavelmente é um tal de Fionn mac Cumhaill da mitologia celta. Eu não lembro a história dele muito bem, só lembro que quando ele coloca esse dedo que ele queimou na boca, ele consegue responder a qualquer pergunta. Uma habilidade muito útil embora te deixe com cara de um bebê mimado.

Juntando algumas informações que tínhamos, principalmente de quando uma deusa com nome de mamão apareceu para Sam na Turquia, chegamos a algumas conclusões. A primeira era de que precisávamos desse tal de Fionn, mas não sabíamos onde ele estava. Ele provavelmente era importante, porque não parecem querer que o encontremos. A deusa com nome de mamão tinha dito outras coisas para Sam, pedir a chave do feitiço e ajudar o deus. Anúbis queria acreditar que esse deus era ele e que isso significava um jeito de ele ficar mortal. Outra coisa que percebemos era que os obeliscos eram claramente importantes, ou então não teriam tentado impedir que Sam enviasse as fotos que ela tirou. Tendo um registro de quais hieróglifos adornavam magicamente o obelisco, começamos a trabalhar num contra feitiço para ele. Não era uma tarefa fácil, ainda mais porque estávamos trabalhando em outros feitiços ao mesmo tempo.

Cansada e arrastando meus pés pela casa, fui até a biblioteca onde trabalhávamos nesses feitiços. Cleo, eu, Anúbis e, às vezes, Zia ficávamos boa parte do dia quebrando a cabeça com um feitiço que queríamos fazer que era muito complicado. Tentando explicar de um jeito simples, a gente queria magicamente mostrar no Google Maps onde Naunet estaria aprontando algo novo dessa vez. E, pior, sem que ela percebesse. O primeiro chute era México, por causa da conversa que Annabeth e Percy ouviram. Mas tudo parecia calmo lá até então, ao menos pelas notícias e fofocas por aí.

Naquela hora da manhã, a biblioteca estava completamente vazia. Afinal, estavam todos dormindo, o único que estava lá era Anúbis que, oh, não precisava dormir tanto assim. Cheguei de fininho por trás da cadeira dele embora soubesse que ele provavelmente já tinha notado que eu estava ali. Lentamente, abracei ele levemente ao redor do pescoço pousando minha cabeça na cabeça dele.

— Dia… - resmunguei.

— Bom dia. - disse ele pegando uma de minhas mãos e dando um leve beijo nela - Apesar de que você parece ainda estar dormindo.

— Realmente me sinto ainda dormindo. - resmunguei soltando-o e então sentando na cadeira ao lado dele.

Olhei para a bagunça sobre a mesa por alguns segundos. Uma mistura de folhas e mais folhas de caderno com hieróglifos escrito tentando montar os dois feitiços que queríamos. Algumas das folhas tinham correções feitas com uma caneta vermelha, a mesma caneta que agora Anúbis segurava e usava para corrigir o nosso egípcio não tão fluente quanto o dele. Afinal, era extremamente importante que os feitiços fossem perfeitos, principalmente o feitiço do Google Maps.

— Sabe no que estou pensando? - perguntei e ele soltou a caneta para me olhar com aqueles lindos olhos achocolatados.

— Em quê?

— Na irônia de um bando de hieróglifos milenares sendo escritos numa folha de caderno com caneta esferográfica. - respondi.

— Certamente Thoth não imaginou que isso aconteceria quando inventou eles. - disse Anúbis.

— Não. - eu disse dando uma leve risada - Acha que os feitiços ficam prontos logo?

— Se tudo der certo, provavelmente hoje. - disse ele colocando a folha que corrigia sobre outra já corrigida - Não é exatamente fácil misturar uma magia tão antiga com algo como… Google Maps. Certamente Thoth ou Ísis seriam mais úteis do que eu nisso…

— Tudo bem. - eu disse olhando para as correções recém feitas - Vem cá, por acaso você sabe escrever com letras normais? Tipo… A, B, C…

— Claro que sei. - disse ele me olhando rapidamente achando um pouco de graça da pergunta.

Eu aproximando a minha cadeira da dele e o meu olhar pidão foram o suficientes para ele entender o que eu queria, queria ver ele escrevendo. Ele simplesmente pegou um pedaço de folha em branco e escreveu o que provavelmente foi a primeira coisa que veio a cabeça dele. Eu…acho… que era o meu nome. Fiquei num misto de surpresa e vontade de rir. Não me entenda mal, a letra dele era bonita, não engraçada. O problema era que parecia justamente aquelas escritas antigas em latim que são ao mesmo tempo elegantes e quase ilegíveis para os dias de hoje.

— Não sei se acho bonita ou um garrancho. - eu disse segurando minha risada - Mas certamente acho com cara de letra de velho. Velho do tipo que morreu no mínimo uns mil anos atrás.

— Você não tem uma escola pra ir? - perguntou ele aparentemente tentando ficar com raiva mas segurando a risada também.

Eu me levantei estirando a língua para ele e fui embora enquanto ele soltava uma leve risada. Sim, de fato, eu infelizmente tinha escola para ir ainda. O que era menos do que meu irmão e Zia tinham, afinal, eles estavam frequentemente ocupados arrumando as coisas para finalmente ir para a faculdade assim que esse ano letivo acabasse. Mas também era mais do que Nico que, além de ter aparentemente gostado da ideia de ficar por aqui, também gostou do Playstation do meu irmão. A presença dele fazia com que Will também aparecesse constantemente.

Eu fui para a cozinha, tomei o café, voltei para o meu quarto e terminei de me arrumar para mais um dia de escola e então para lá fui. A escola seria normal como sempre se não fosse um mero detalhe irritante, Drew. Ela aparentemente tinha ouvido mais detalhes sobre todo esse problema que tínhamos nos metido e então tinha resolvido ficar me irritando quase que diariamente pedindo por mais detalhes E para ir até lá em casa.

— Não. Não e não. - eu brigava com Drew enquanto ela me seguia até a minha casa depois da escola.

— Já cansei de ouvir isso. - reclamava Drew - Quero saber mais do que está acontecendo nem que eu tenha que ir até sua casa! Não ouvi mais nada da Clarisse, nem da Thalia!

— E não vai ser comigo que você vai ouvir algo mais! - rebati revirando o olhar.

— Desiste, Sadie. - disse Cleo suspirando - Ela não vai desistir.

— Não mesmo… - disse Sean.

— Vamos levar ela logo para casa. Mostrar pra ela o que temos e tal… - disse Carter dando de ombros - Uma ajuda a mais… não custa nada.

Eu bufei de raiva e revirei os olhos. Não estava nem um pouco ansiosa para ter Drew lá em casa. Sem ter para onde fugir, seguimos caminho até em casa. Quando chegamos em casa e eu, a contragosto, deixei Drew entrar, meu olhar foi atraído para a sala de estar onde, incrivelmente, Anúbis e Nico estavam sentados no sofá jogando Playstation enquanto Khufu assistia o desenrolar pacientemente. Ao redor dos dois estavam restos de papel e comida que provavam que eles tinham comido Mc Donalds. Caso você se pergunte se Anúbis come… responderei o que ele mesmo disse uma vez que perguntei sobre isso. Ele não precisa comer, mas nada impede que ele coma. Convenhamos, comer é bom. Na tela da televisão, o Super-Homem lutava contra um… homem?... monstro?... que eu não sabia quem era, mas tudo o que posso dizer é que parecia uma mistura de Jack, do Mundo Estranho de Jack, com um espantalho demoníaco.

— O que estão jogando? - perguntei.

— Injustice. - disse Carter reconhecendo o jogo.

— Quem tá ganhando? - perguntei.

— 2 a 0 para mim. - disse Nico orgulhoso enquanto Anúbis estava aparentemente concentrado.

— Kah! - exclamou Khufu.

— Você! - exclamou Drew se aproximando e apontando para Anúbis que só desviou o olhar do jogo por uma fração de segundo - Você é o garoto que estava no baile da escola uns anos atrás!

— Sim, eu era. - respondeu Anúbis enquanto eu me sentava ao seu lado.

Para a frustração de Drew, o olhar dele rapidamente foi até mim abrindo um sorriso que teria deixado minhas pernas bambas se não fosse o fato de eu ter conseguido sentar antes de ele usá-lo.  Não tenho vergonha de admitir que foi só para esfregar na cara de Drew que eu tinha um namorado muito gato que eu dei um leve beijo nele. Carter provavelmente notou isso, pois revirou os olhos e depois olhou para a televisão enquanto sentava com Zia.

— O que mais jogaram? - perguntou Carter notando as caixas de vários jogos espalhadas pela mesa de centro ao mesmo tempo em que os outros iam embora para seus quartos deixando ali na sala apenas eu, Anúbis, Nico, Carter, Zia e Drew.

— O Assassin’s Creed: Origins só. - disse Nico - Achei engraçado você ter o Assassin’s Creed do Egito.

— Foi para fins de pesquisa! - se defendeu Carter - Tem o modo educativo e....

— Aham tá… pesquisa... - eu disse com sarcasmo.

— Também usamos para fins de pesquisa, eu queria ver qual Anúbis ganhava a batalha. O Anúbis da vida real ou o Anúbis do video-game. - disse Nico.

— Você está no video-game? - perguntei surpresa olhando para Anúbis.

— Aparentemente sim. - disse Anúbis dando de ombros.

— Qual Anúbis ganhou? - perguntei rindo.

— Eu. - disse Anúbis mas Nico foi logo o cortando.

— Depois de seis tentativas. - disse Nico.

— Pra quem nunca tinha tocado num video-game, acho que foi um número bem baixo de tentativas. - se defendeu Anúbis.

— Você… é o deus Anúbis? - perguntou Drew finalmente conseguindo recuperar a voz depois de juntar as pecinhas - Tipo… O... deus egípcio Anúbis.

— Sou. - disse Anúbis suspirando quando o personagem que ele controlava, o tal espantalho do mal, era golpeado com o ataque especial do Super-Homem.

Drew levou alguns segundos para digerir a informação enquanto meu irmão, não muito mais interessado na conversa, começou a mexer no celular e começou a conversar com Zia. Provavelmente sobre faculdade. Observei Drew lentamente se recuperar do choque inicial enquanto seu queixo se erguia mais uma vez. Ela andou até ficar de pé atrás do sofá entre Nico e Anúbis. Eu me surpreendi com a ousadia dela, pois ela lentamente apoiou os braços, cruzados, sobre o encosto do sofá chegando mais perto do que eu aceitava do meu namorado.

— E namora a Sadie, pelo o que estou percebendo. - disse Drew.

— É. - respondeu Anúbis sem tirar os olhos do jogo. Pontos pra ele por essa.

— Nenhum irmão, meio-irmão ou primo disponível? - perguntou Drew lentamente olhando para as unhas de forma displicente.

— Não acho que vá achar meu primo interessante e nem ele você. - disse Anúbis torcendo a boca para o assunto que ele provavelmente julgava tolo enquanto Drew aparentava ter se ofendido um pouco com a possibilidade de Hórus não achar ela interessante - E sou filho único.

— Como que deuses imortais, que tem muito tempo para gastar, só tem um único filho? - perguntou Zia provavelmente não aguentando a curiosidade.

— Ahm… já é um tanto surpreendente que eu exista. - disse Anúbis observando seu personagem ser derrotado de vez - E…Seth, meu pai…. ahm… uma espada cortou o… bem… ele não pode mais ter filhos.

— Wow. - eu deixei a palavra escapar de minha boca ao notar que Seth, o tão odioso Seth, tinha uma coisinha faltando.

— Não mencione isso para ele. - disse Anúbis vendo a minha surpresa ao notar esse pedaço de informação - Essa é a tal ‘masculinidade frágil’ versão de pelo menos 2000 anos atrás.

— Vou resistir a tentação. - eu disse e ele revirou o olhar com um sorriso no rosto.

Talvez ficando irritada por não ser o centro das atenções, Drew logo foi ficando com a cara emburrada. Até que ela eventualmente cruzou os braços e ficou encostada na parede prestando atenção na conversa.

— Pra você estar aqui de certa forma sem fazer nada… - eu disse - Posso chutar que o feitiço ficou pronto?

— De certa forma. - respondeu Anúbis.

— Quê?! - exclamou Zia - Sério?! Finalmente está pronto? Já tem alguma informação útil de onde ela está.

— Tenha calma… - disse Anúbis soltando um suspiro - Considerando que o feitiço tem muita chance de dar errado, achei melhor esperar todos chegarem antes de tentar lançar.

— Fica mais fácil salvar todo mundo de um ataque surpresa se todos estivermos no mesmo lugar.- disse Nico - O Will daqui a pouco chega e podemos ver se o tal feitiço funciona.

Eu certamente mal podia esperar para ter alguma informação concreta de nossos adversários. É muito irritante não saber direito o que está acontecendo. Espero que o feitiço funcione. Queria muito poder lançar o feitiço, avisar os outros em São Francisco e em Boston de que o feitiço está funcionando. E também as as garotas que estão com o grupinho de Ártemis, seja lá onde elas estiverem dessa vez, e ficar a postos para salvar o dia a qualquer momento. Claro, esse era o melhor cenário. Mas isso não significava que não tínhamos planos A, B e C. Não sei se isso seria um plano B ou C, mas Cléo estava verificando também dentre vários pergaminhos menções de feitiços do tipo. E quando digo ‘vários pergaminhos’, quero dizer que ela tinha uma lista de pergaminhos que nós não tínhamos e que estavam em algum lugar pelo mundo, provavelmente em algum museu. Mas ei, estou com pensamento positivo. Quero acreditar que vai dar tudo certo.

Seguimos esperando Will enquanto cada um voltava para seus afazeres. Pro meu irmão e pra Zia, isso significava passar um tempo a sós em algum lugar falando da faculdade e sabe-se lá o que mais. Pra Drew, isso, infelizmente, significava sentar no sofá mexendo no celular enquanto eu tentava assistir Deuses do Egito com Anúbis, cuja presença transformava aquilo num filme de comédia, já que eu não conseguia parar de rir das caretas que ele fazia para o filme quando via alguma coisa que não fazia sentido ou estava errada.

No meio do filme, Will chegou. Estava claramente com cara de cansado quando Nico abriu a porta para ele entrar. Com uma mochila meio surrada pendurada no braço, Will entrou com um sorriso radiante e foi passando logo o braço ao redor do ombro de Nico.

— Viu? Cheguei. - disse Will - Não precisava ficar em desespero por ter que sociabilizar com pessoas.

— O desespero foi mais porque queremos lançar o tal feitiço do Google Maps… - explicou Nico.

— Ah! Finalmente terminaram de elaborar ele?! - perguntou Will e afirmei com a cabeça.

— Aparentemente.

— Então vamos. - disse Will - Quero me sentir o Harry Potter hoje.

— Já expliquei que somos magos. Não bruxos. - eu disse.

— Patolino, o mago implacável então - disse Will com um sorriso.

Tive que admitir que ri um pouco imaginando o Patolino entrando ali em casa, e acho que vi o que parecia um pequeno sorriso aparecer no rosto de Nico. Mas tive que deixar isso para depois. Tínhamos um mundo para salvar… de novo.