O Ladrão de Almas escrita por Ariane Munhoz


Capítulo 3
Dias Cinzentos


Notas iniciais do capítulo

Peço desculpas pela demora em postar esse capítulo. Algumas dificuldades técnicas me impediram de fazê-lo antes. Boa leitura!



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1

São Paulo é uma cidade cinzenta, povoada por chuvas intermitentes e cercada das mesmas pessoas desinteressadas que eu vejo em todo lugar. Mas ainda que os humanos sejam desta forma, acho sempre interessante seu último momento, seu último suspiro. A forma como tentam desesperadamente se agarrar à vida quando tudo está prestes a se acabar. É o artificio de um trabalho bem feito, a parte que mais gosto.

Não é do seu feitio, mas Aiacos me acompanha até ali. Estávamos acima de um prédio alto, observando o movimento da cidade, o tráfego lento dos carros e dos transeuntes que passam uns pelos outros ignorando suas próprias existências mortais.

Um deles pode ser o meu alvo. Outro pode estar morto até o fim do dia pelas mãos de um dos meus irmãos. Nunca se sabe.

Aiacos permanece ao meu lado em um silêncio taciturno. Os cabelos curtos e rebeldes acompanham o movimento dos ventos gélidos daquela cidade. Ele não parece se importar. Seus olhos permanecem fechados, a expressão serena. Os braços estão cruzados sobre o peito e eu posso ouvir sua respiração, ainda que seja lenta e calma como a respiração de um felino.

− Ela está aqui em São Paulo no momento.  Não sei muito a seu respeito, nem é meu trabalho descobrir. E geralmente não dou conselhos de graça, ladrão. Mas se isso é importante para milord Lúcifer então é importante para mim também. Eu não entendo por que ele decidiu o que decidiu, mas suas palavras não devem ser proferidas nesse mundo onde os ventos as carregam para os ouvidos do inimigo. – Ele faz uma pausa breve, dramática, e então prossegue. O fato de Aiacos não ser dado a dramas dá um certo tom de humor à ocasião. – Não falhe, ladrão. Seu trabalho é apreciado por nosso mestre.

Eu permaneço calado, apenas aceno com a cabeça tocando brevemente a aba do meu chapéu. Não gosto de ouvir seu nome. Pessoalmente, prefiro não proferi-lo, porque os nomes possuem poder. É por essa razão que não compreendo a facilidade com a qual os humanos cedem os seus. Ouvir o nome de meu senhor é como ser rasgado ao meio. O desespero sempre me invade e meu coração bate descompassado e acelerado como o coração de um passarinho. Eu não sei o motivo disso, mas ele me causa todas as piores sensações que alguém pode sentir. Bem, na verdade eu sei. Ele é a pior sensação que alguém pode sentir.

− Como vou encontrá-la?

− Ah, você vai saber. Sua presença é única. Além disso, não é esse seu trabalho? – Aiacos abre um sorriso e sei, mesmo sem que ele diga, que está deleitado com a situação. – Mas tome cuidado, os Anjos a cercam. No entanto, acredito que esteja sem proteção nesse momento já que fui capaz de senti-la. Talvez nessa vida... a proteção esteja mais fraca e ela mais susceptível a nós. Estamos entendidos, ladrão?

Nesta vida, ele diz, enfático. Quantas vidas esta mesma alma já deve ter vivido, se escondendo e correndo por becos escuros apenas para se livrar da presença de criaturas tão vis e cruéis como eu?

− Desde o princípio até o fim, Aiacos. – respondo brevemente. De todos os juízes, ele é o que eu mais respeito e temo. Pode não ser aquele que aplica as sentenças, mas é quem julga e decide o que acontecerá, para que local a alma irá. Muitas vezes, penso eu, ele pode ser mais cruel do que seus próprios irmãos. – Me diga... você já viu antes uma alma pura? – questiono-o com curiosidade. Ele sorri.

− Ah, ladrão, não cabe a mim lhe responder isso. – diz, preparado para ir embora. – E Adrian.

Raramente Aiacos proferia meu nome, mas viro-me em sua direção, curioso.

− Muitos matariam para estar em seu lugar nesse momento. Achei que deveria saber. E como uma cortesia especial de Demônio para Demônio... tome cuidado com essa alma pura. Ela pode ser mais perigosa do que parece. – O sorriso torto ainda está em seu rosto quando desaparece pelo portal.

Eu sei. Eu sei que me caçarão assim que os rumores começarem a se espalhar. Não sei o que ele quer dizer a respeito de a alma pura ser perigosa, mas guardo a informação para mim como a cortesia que Aiacos dizia ser. E ainda de longe, eu sinto a chuva sobre meus ombros.

Como eu odeio dias chuvosos.

2

Em um contexto geral, quando eu começo um trabalho, ele se trata de uma caça predatória. Eu escolho aleatoriamente uma cidade, seja ela qual for, e então eu paro e observo as pessoas ao redor. Ainda que o comportamento da maioria delas seja semelhante, sempre existe aquela que se destoa. Seja por demonstrar fraqueza através de algum ato, seja pela sua expressão naquele momento, seja apenas por estar em um dia ruim.

Em geral, cada Demônio tem a sua zona de caça em particular, mas eu não sou assim. Não me limito a um único lugar, uma única cidade ou um único continente. Eu estou onde meu senhor quer que eu esteja e isso é tudo. Às vezes, ele me permite escolher o lugar e o momento, mas muitas vezes existem casos específicos como esse em que agora trabalho, que me levam a um determinado local. Ironicamente, mais de uma vez, meus caminhos se cruzaram com o Anjo Haziel.

O meu trabalho consiste em observar os pequenos detalhes, pegá-los e transformá-los em uma grande coisa. Em algo de grande importância. E eu acredito que faço isso bem.

Há muitos anos estou nesse ramo de coletar almas. Talvez há mais tempo que a própria Morte, mas não posso dizer com certeza. Quando um Demônio é enviado para coletar uma alma, a Morte apenas abana suas mãos, olhando-o com olhos de frieza extrema. Como dizem por aí, é o Anjo da Morte e não o Demônio da Morte.

A Morte não é cruel como os humanos descrevem em seus livros, tampouco assustadora. Ela tem traços suaves e sutis por trás daquele manto encapuzado. É bela e tem olhos ternos. Talvez seja a criatura mais doce deste mundo. Ela carrega suavemente em seus braços o indivíduo, com um zelo tão grande que me pego imaginando se ela mesma não sofre com seu trabalho pois, como nós, a Morte não possui descanso. Mas tão ao contrário de nós, tem que se manter neutra, mesmo que por muitas vezes eu detecte o ódio em seu olhar.

Sim, o ódio. Ela não pode dizer nada, ela não pode agir. Mas é como quando Haziel me encara depois de uma derrota. Aquela frieza, o ódio velado. As lágrimas que gostaria de derramar, mas que não faz apenas para não demonstrar fraqueza diante do inimigo. Eu não busco inimigos. Criaturas fracas e frágeis como eu não o fazem, mas são ossos do ofício. A Morte não gosta de mim. E sinto que a cada encontro nosso, nos tornamos mais próximos, mas não por camaradagem.

Eu não sou capaz de sentir. Não sinto a pena que ela sente pelas pessoas que se vão. Não sinto seu zelo ou apreço pela vida, o seu total oposto. Sinto apenas uma grande indiferença. Talvez apenas o contentamento de ter um trabalho cumprido no final das contas. Sim.

Eu não me importo. Eu nunca vou me importar.

Por muito tempo, enquanto eu caminhava pelas ruas cinzentas dessa cidade, fiquei me perguntando se não era esse Anjo que meu senhor queria que eu trouxesse para o nosso lado, mas penso que jamais saberei a resposta até ele querer que eu saiba.

Sou apenas uma peça intermediária no tabuleiro de xadrez com uma missão grande demais para o pouco poder que possuo. Mas se é o que deve ser feito, então eu devo fazê-lo. Em minha vida ordinária eu não devo nada além de lealdade eterna ao meu senhor. Para mim, Adrian, um mero coletor ou ladrão, não existe o espaço para questionamentos. Questionamentos levam a dúvidas e dúvidas levam a erros. Eu não posso me dar ao prazer de errar. Não se quiser continuar a viver.

Os dias aqui sempre são cinzentos. Eu caminho entre os humanos sem que eles notem a diferença entre a minha presença e a deles. Neste momento, sou visível como todos eles são. Não sei quanto tempo terei que me manter aqui, então tento ao máximo conservar as minhas energias. Quando Radamanthys disse que eu não era próprio para o serviço, ele não estava errado. Dentre os Demônios da minha casta, eu sou o mais fraco.

Eu não possuo uma sombra própria. Eu dependo da energia das minhas almas para sobreviver como todo Demônio, mas simplesmente não posso viver sem elas.

Observo seus comportamentos. Todos tão indiferentes, todos tão cinzentos. Eu não tenho rumo certo, não me sinto atraído por nenhum desses humanos. Todos eles seriam facilmente ludibriados, eu sinto isso. Sinto que poderia levar facilmente aquele homem que fala ao celular, ou a mulher que para diante de uma loja com roupas caras que ela certamente não pode pagar. Sinto que a inveja daquele rapaz o faria ceder aos meus encantos. Mas não é nenhum desses que meu senhor procura. Não é nenhum desses.

Aiacos me disse que eu a encontraria. Dentro de uma multidão gigantesca como essa, ela seria a luz. Uma luz que eu só sou capaz de ver quando me encontro com o próprio Haziel. Uma luz tão cegante que talvez me incomode. Como a luz dos meus sonhos.

Suspiro pesadamente, sentando-me em um dos bancos ao meu redor. Há algum tempo, eu me lembro de não existirem prédios nesse lugar e, embora a maior parte da arquitetura antiga ainda esteja preservada, ninguém está livre da modernidade. Os arranha-céus são todos tão altos como a torre de Babel. Meus olhos se perdem em sua imensidão enquanto simplesmente aguardo por, ironicamente, um milagre que levasse aquela alma até o meu encontro. Eu não sei por onde começar, ainda que Aiacos tivesse me levado à cidade certa.

Pensando nisso, cansado demais para qualquer outra coisa, não noto quando adormeço. Mas acho ter visto, no topo de um dos prédios, a sombra de uma gárgula que me observava atentamente como se acompanhasse todos os meus movimentos desde que eu pisei ali.

Não sei ao certo, mas acho que começa a chover novamente quando tudo escurece ao meu redor.

(O quarto está escuro, mais do que o usual. É noite, e o galho da árvore arranha a janela, dando a impressão de que uma pessoa bate no vidro. O garotinho não consegue dormir. Ele tenta, mas não consegue. Quer se levantar da cama, mas o medo é maior.

Medo de que exista alguma coisa ali.

Ele sabe que existe.

Embaixo dos lençóis, ele sente a própria respiração pesada. É uma noite quente e abafada por conta da chuva de verão que teve mais cedo. Os detalhes são lívidos em sua mente, e também por conta do calor, a lamparina que sempre fica acesa ao lado da cama, está apagada.

Mas ele tem certeza de que estava acesa antes. Ele tem certeza.

Quer chamar por sua mãe, por alguém que possa ajudá-lo, mas sente que não tem voz naquele momento.

A madeira do assoalho range sob o peso de alguma coisa. O menininho quer acreditar que é apenas um daqueles momentos da madrugada quando os móveis gemem sozinhos e estalam. Mas ele sabe que não é. Sua mãe sempre lhe diz que são as fadas se escondendo dos olhos humanos, mas ele já não acredita mais nisso. Não quando o medo está tão próximo, tão palpável. E, também, fadas não podem ser tão assustadoras assim.

O rangido se torna mais alto, até que finalmente para. Ele sabe que o que quer que esteja no quarto com ele, agora está ao seu lado.

O menininho não ouve sua respiração, mas a sente do outro lado dos lençóis. Ela é quente e silenciosa, e o cheiro é familiar como o perfume de uma flor que a gente sente na infância e nunca se apaga da nossa memória. Como o cheiro do sabonete da nossa mãe ou da travessa de biscoitos da nossa avó.

Ele sabe que já sentiu aquele cheiro. Ele sabe que sim.

A mão toca suavemente o lençol, por cima de seu peito. Seu coração bate tão, tão forte que ele tem certeza que a criatura o sente, quase como se pudesse tê-lo em suas próprias mãos.

Talvez ela possa.

Ele não vê, mas sente o sorriso da criatura naquele momento quando o tecido é agarrado com força. As garras deixam uma trilha vermelha por baixo do pijama de flanela azul que o menininho usa. Ele tenta se agarrar com força aos lençóis mas não consegue. Mas antes que possa ver o rosto de seu algoz, tudo escurece novamente)

3

Escuto o som de algo ao meu lado. A principio acho que é um assovio, mas é algo mais suave, mais brando. Eu escuto o som de uma linda canção. Uma voz. Quando abro meus olhos, ainda chove, mas é uma chuva mais rala, nada mais que uma fina garoa. Eu já estou completamente encharcado, mas a chuva não cai mais sobre mim. Minha cabeça ainda lateja e eu tento me lembrar do sonho, mas é apenas mais um daqueles sonhos sem significado algum. Balanço negativamente a cabeça, tentando me localizar, mas apenas sinto meu corpo dolorido, provavelmente por conta da posição em que acabei adormecendo.

Às vezes isso simplesmente acontece. Eu me desligo completamente da realidade pegando no sono e sou transportado para o mundo dos sonhos intermitentes. Mas eu nunca me lembro deles ou dos rostos. Em geral, apenas fragmentos que não me dizem nada respeito a de nada.

Eram apenas bobagens, eu acreditava, embora sempre me deixassem com aquela sensação de que algo faltava dentro de mim.

Noto o que há de diferente quando um guarda-chuva quase cai ao meu lado. Estava apoiado sobre meu ombro com uma pequena nota.

“Caro estranho,

Procure não dormir no ponto de ônibus em um dia chuvoso ou vai acabar se resfriando.”

Não há remetente ou assinatura. Apenas aquela letra um pouco borrada por conta da umidade que havia penetrado pelo tecido do guarda-chuva que agora eu notava ser de uma tonalidade amarela quase gritante.

Toco suavemente o cabo metálico, erguendo-me. Já é noite, e o trânsito de pessoas havia diminuído consideravelmente. Talvez duas ou três horas tenham se passado, o que é um milagre tendo em vista que ninguém havia me acordado ou me acusado de algum crime ou de ser um mendigo. Talvez fossem as roupas. Talvez as pessoas simplesmente não se importassem ali. Acredito mais na segunda hipótese.

Ainda não sei quem foi o meu bem-feitor, e também não é o momento para descobrir isso. Em uma cidade cinzenta como essa, sempre cercada por pesadas nuvens, um guarda-chuva podia ser um bom amigo. Mesmo que fosse amarelo.

Eu não gosto de cores chamativas, nunca gostei. Também não gosto de dias chuvosos e aparentemente a chuva não quer me abandonar. Ergo os olhos para o céu, concluindo que, naquela noite, ela não abrandaria. Eu não queria, mas precisaria de um lugar para ficar. Aquela não era a minha primeira visita a São Paulo e eu sabia exatamente para onde ir.

4

O lugar que eu escolho é um velho hotel onde poucas pessoas se atreveriam a ficar. Não porque fosse um lugar ruim, mas a sua localização não é das melhores. Eu poderia assumir uma forma não corpórea, e assim não precisaria de descanso ou roupas secas, mas isso significa que eu preciso caçar almas naquela noite, e, para mim, as coisas não funcionam desse jeito.

Em geral, quando estão desesperados, Demônios podem tomar providências drásticas para conseguir uma alma. Aqueles que são bastante persuasivos, as conseguem através da lábia, com um contrato que duraria apenas poucos minutos. Existem os mais soturnos que matam sem deixar rastros. Porque, mesmo entre nós, o assassinato é um crime. A ordem não deve ser quebrada, mas eu me pergunto quanto tempo isso vai durar se o que o meu senhor deseja é guerra.

Aproximo-me do balcão na entrada, deixando o guarda-chuva aberto na portaria para que pudesse extravasar a água. De verdade, não quero abandoná-lo ali, mas imagino que ninguém roubará aquilo. Não com aquela cor.

− Boa noite. – murmura o recepcionista, em um tom nada amigável. Eu não sei há quanto tempo não venho até esse hotel, mas tenho certeza de que aquele recepcionista não é o mesmo da outra vez. Esse tem a aparência notória daqueles homens saídos de filmes de terror. Nada amigável, com um rosto severo e cicatrizes espalhadas pelas mãos e pelo pescoço. Me pego imaginando quais seriam as histórias delas – das cicatrizes –, pelo que ele já havia passado. Um velho hábito que não consigo abandonar.

− Boa noite. – respondo, tocando suavemente a aba do chapéu. Não posso parecer inconveniente, nem quero chamar atenção. Nesse tipo de lugar, não se fazem perguntas. Basta ter o dinheiro na mão e as coisas estão resolvidas. – Eu gostaria de um quarto.

− Para passar a noite? – Ele se vira de costas, caçando entre os molhos de chaves, um que estivesse disponível.

− Sim.

− Aqui. – Entrega-me uma das chaves com uma placa escrita 213 pregada nela. – Segundo andar. Pagamento adiantado.

Abro um sorriso para ele, meus olhos fixos nos seus. O homem deve ter se sentido incomodado, mas não consegue desviar o olhar do meu. Há algo, uma espécie de atração natural que nós, Demônios, exercemos sobre os humanos. E pessoas como ele, naturalmente amarguradas, são muito mais fáceis de serem atraídas para o Inferno.

− Aqui está o seu pagamento. – Minha mão toca suavemente a sua. O calor se estende por ela. Vejo seu maxilar seu contrair em uma careta retorcida de desespero. Ele começa a suar frio, tentando desviar o olhar, mas não consegue. Fico imaginando que tipo de coisas estão passando por sua mente agora enquanto eu sorrio para ele. Não costumo fazer esse tipo de coisa, mas me sinto especialmente receptivo naquela noite. Eu posso facilmente me alimentar de sua alma. Eu posso, mas ao invés disso eu recuo, deixando as notas sobre a bancada. – Até amanhã, senhor William.

Viro-me caminhando na direção das escadarias.

− C-como.... – A voz dele soa tão baixa que quase não escuto. Meus olhos se voltam em sua direção.

− Como...? – Minha voz é branda, calma. Como um adulto que fala com uma criança.

− Como sabe meu nome?

Era aquele medo, aquele medo que eu tanto amava. A única razão que me fazia gostar de minha origem. Do fato de ser um Demônio.

− Crachá. – Sorrio abertamente olhando para ele. Meus pés não fazem ruído nenhum ao subir as escadarias que deveriam ranger sob meu peso. Eu não vejo, mas escuto quando o homem cai sentado no chão e se permite respirar outra vez.

5

Passo a noite em um sono leve e interrompido, no qual acordo de pesadelos dos quais não me lembro em nenhuma das vezes. Sempre que olho para o relógio, não mais que meia hora havia se passado entre um acordar e outro, como se de repente alguém tivesse decidido me pregar uma peça. Eu não costumo ter noites livres de sonhos, mas noites tão péssimas como essa também não são comuns. E sempre que eu desperto, as memórias desaparecem de minha mente até que, num dado momento, desisto de dormir.

Ainda é madrugada quando me sento à janela do quarto, observando um grande prédio – o maior da cidade – que está afastado deste hotel que se encontra na região suburbana. Eu não sei quanto tempo passarei na cidade, se dias ou meses, isso depende do meu tipo de vitima. Mas eu sei que meu senhor tem pressa e que eu não posso deleitar-me como geralmente faço.

A garoa ainda cai fina do lado de fora, e me pergunto se haveria algum dia naquela cidade desprovida de cores em que não choveria como acontecia desde a minha chegada. Suspiro baixinho, observando minhas roupas estendidas, torcendo para que sequem até o período da manhã. Enquanto isso, visto apenas a calça de brim negro, ciente de que pela manhã, precisarei de roupas novas e mais quentes para me misturar melhor à multidão.

Fico ali não sei dizer por quanto tempo, observando o silêncio das ruas, pois naquela hora não há mais transeuntes. Apenas hora ou outra eu via pessoas suspeitas rondando, sempre olhando por cima dos ombros para saber se não estavam sendo perseguidas, fosse lá pelo que fossem fazer. Mas certamente não era rezar na igreja.

Aliás, nos dias atuais, eu ainda duvidava se haviam pessoas que fizessem isso. Eu sabia que iam à igreja, eu próprio já havia acompanhado algumas pregações, mas isso não significava que estivessem realmente presentes ali, dedicadas ao que quer que seus clérigos quisessem lhes passar. Às vezes eu duvidava até mesmo deles. Era descrente na fé da humanidade. Completamente descrente, mas acho que isso é o que acontece quando se está desse lado. E com as almas puras tão extintas como estavam, eu me pergunto como os Anjos ainda mantêm suas forças para lutar contra nós, que nos tornávamos cada dia mais fortes, alimentados pelos sentimentos ruins que os humanos carregavam dentro de seus corações.

Não é que me importe com isso de fato, mas a curiosidade é um defeito comum de todos os Demônios e eu não sou exceção à regra. Os minutos se tornam horas e de repente tons pigmentados de laranja começam a tingir o céu, embora as nuvens cinzentas ocultassem a beleza do alvorecer.

Suspirando baixinho, me coloco de pé e apanho as roupas que não estavam completamente secas, mas são tudo o que eu tenha no momento. Permito-me um banho rápido, sentindo a água correr por meus ombros doloridos da noite mal dormida. Eu não sei o motivo, mas quando estou no mundo humano, parecia que todas essas sensações humanas me afetam mais que o normal. Começo a pensar que talvez Radamanthys estivesse certo a meu respeito, e que as horas que eu passo nesse mundo me tornavam mais humano do que Demônio.

Claro que isso é apenas uma especulação ridícula e um fato impossível de ser concretizado, mas eu acho cômico o modo como todos os outros Demônios me tratam, simplesmente porque minha casta é mais fraca que a deles por eu não ser um Demônio de combate. Não que eu fosse o único, longe disso. Mas mesmo o mais fraco entre os mais fracos possui mais poder do que eu, disso eu tenho certeza por conta de uma ou duas competições que participei e nas quais acabei quase morto, sempre salvo no último instante pelo fato de Demônios importantes como Aiacos saberem no que minha perda resultaria para o nosso senhor.

Desço as escadarias refazendo os passos da noite passada. Quando chego à recepção, não é o mesmo homem da noite passada que me recebe, mas para não levantar suspeitas demais a respeito da minha vinda até a cidade, decido que não ficarei naquele local mais tempo do que fosse necessário.

− Vai devolver as chaves? – O rapaz que é mais jovem e mais solicito pergunta com um sorriso branco e de dentes perfeitamente alinhados. Não deve ter muito mais do que vinte anos, os cabelos castanhos curtos e arrepiados embora ficasse claro o uso excessivo do gel tentando alinhá-lo. Seu perfume se parece com pinho e se ele se veste com o uniforme padrão do local, mas as roupas amarrotadas e as unhas roídas deixam em evidência o desleixo que ele possui e tenta ocultar sem sucesso.

Seus olhos são de um tom castanho escuro, quase misturando-se às íris negras que tremulavam ligeiramente com a fraca luz do local. Eu noto as escleras ligeiramente avermelhadas e o tremor contido de suas mãos, somado ao fato de ele continuar mascando incessantemente o chiclete de hortelã que se mesclava ao seu perfume amadeirado imediatamente me dão o resultado de que ele é algum tipo de viciado, o tipo mais fácil de ser atraído por nós.

Por um momento, perdi-me naquela emoção, imaginando todas as coisas que poderia fazer, todas as promessas em troca daquilo que ele desejava e tudo o que ele deveria me dar era a garantia de que, quando sua felicidade fosse alcançada, eu teria aquilo que eu queria.

− Senhor? – Devo ter me perdido por mais tempo do que gostaria. O sorriso branco permanece me encarando, e finalmente me dou conta de que ele deve ser treinado para aquilo, não porque é o recepcionista de um hotel barato, mas pela vida.

− Ah, eu deixarei as chaves e o pagamento adiantado de mais duas noites. – respondo devolvendo seu sorriso e apanho um cigarro dentro do bolso. – Se importa?

− Não, de maneira alguma. – Seus olhos se voltam para o cigarro, as íris tremulando novamente. É mais forte do que eu, mais forte do que todas as coisas, ainda que eu não devesse me envolver em nenhuma outra tarefa que não fosse aquela empregada por meu senhor. Mas eu preciso começar de algum lugar, certo?

Apanho o isqueiro de prata com as minhas iniciais gravadas e cubro a boca fazendo concha com uma das mãos para acender o cigarro. Trago lentamente, aspirando a fumaça para o interior de meus pulmões e deixo sobre a bancada da recepção notas o suficiente para pagar pela minha acomodação.

− Vai dispensar o café da manhã? – É  óbvio que o foco dele não é esse, mas parece que qualquer tipo de vicio alimenta o seu.  Fixo meu olhar no dele, um sorriso gentil espalhando-se por meus lábios enquanto expiro a fumaça para cima.

− Eu pretendo conhecer a cidade, mas quem sabe da próxima vez?

O vejo acenar positivamente com a cabeça remexendo os dedos nervosamente. É óbvio para qualquer um a sua necessidade, a sua ânsia por aquilo que não pode possuir no momento.

− Me diga, meu caro Luiz... existe alguma coisa, qualquer coisa que eu possa fazer por você? – O som aveludado de minha voz atingiu-o com o impacto de um soco. Talvez se tivesse um pouco mais de força de vontade pudesse resistir aos meus encantos, mas a partir do momento em que coloquei meus olhos nele, já estava condenado. Eu sabia disso e ele também.

− Eu... eu... – Sua voz vacila por um momento como se quisesse me dizer algo, sussurrar os seus maiores segredos. Eu sei que posso tê-lo para mim em pouco tempo, muito menos tempo do que levaria normalmente para fazer o meu trabalho, mas foi naquele mesmo instante que senti os olhos pousados sobre mim junto daquela sensação incômoda de formigamento.

Não costumava acontecer com frequência, mas eu senti que desde que havia pisado naquela cidade amaldiçoada pela chuva, que alguém me seguia com o olhar e imaginei que esse era um dos fatores que havia contribuído para a minha noite insone. Desvio meus olhos apenas brevemente, mas por temposuficiente para que o controle exercido sobre Luiz se quebrasse e eu sabia que se tentasse exercê-lo novamente naquele momento poderia colocar tudo a perder.

− Então eu retorno depois. Caso precise de mim. – Toco a aba do chapéu sobre a minha cabeça e dirijo-lhe um de meus melhores sorrisos antes de me encaminhar para o lado de fora, notando que o guarda-chuva amarelo ainda está ali à minha espera.

Ainda estou intrigado a respeito de meu bem-feitor e decido que procurá-lo será uma das coisas que farei, mas não naquele momento quando eu sinto o peso daquele olhar sobre meus ombros. Retorno até onde Luiz está e entrego o guada-chuva em suas mãos.

− Pode guardar isso pra mim?

− Mas eu acho que vai chover, senhor....

− Adrian. – respondo a ele. – Não há problema em me molhar um pouco. – pisco um dos olhos para ele e dirijo-me para fora do hotel sem dar-lhe tempo para mais questionamentos.

Meus olhos correm ao redor, ainda que aquela sensação incômoda me seguisse para onde quer que eu fosse. Não sou capaz de detectar ninguém, meus ouvidos não captam nenhum som diferenciado e eu não sinto nenhuma presença incomum. Apesar disso tudo, aquela sensação incômoda permanece em meu âmago e ponho-me a caminhar, evitando os becos escuros que aquela parte do subúrbio possui.

A neblina ao lado de fora não é muito densa naquele dia, nem a chuva tão intensa que não pudesse ser suportada. Eu decido que naquele dia procurarei um novo lugar para ficar, pois precisarei de um novo lugar depois que terminar meu trabalho com Luiz.

Sob meus próprios protestos, ouço meu estômago roncar quando chego nas ruas principais que levavam às avenidas. Os transeuntes já fazem seus percursos, a maioria deles para o trabalho e me pego observando cada uma das pessoas com calma como sempre costumo fazer quando caço uma nova vítima. Francamente, permanecer nessa forma corpórea as vezes não é vantajoso para mim.

Paro em uma cafeteria chamada Doces Sonhos, pois escutei no dia anterior algumas pessoas que haviam falado dela antes de pegar no sono no ponto de ônibus. Por um momento ao pensar nisso, deixo que meus pensamentos vagarem novamente até o guarda-chuva amarelo que tinha deixado para trás naquele dia. Embora não quisesse pensar naquilo, vez ou outra parecia inevitável não me lembrar, ainda que nenhuma emoção me acalentasse. Seria melancolia esse sentimento que me rondava?

Eu só acho estranho que, em uma cidade como aquela, ainda existisse alguém disposto a desistir de seu próprio guarda-chuva – ainda que de aparência gritante e chamativa – por um completo estranho.

A sensação de estar sendo observado ainda me incomoda, mas como não consegui encontrar nada, adentro o café, cuja fachada lembrava-me anos anteriores em que já havia estado naquela cidade. Na verdade, numa época muito anterior, ainda que seu design no interior fosse moderno. As paredes são pintadas num tom verde que chamavam a atenção de quem passasse ao lado de fora e o menu do dia permanecia disposto em uma placa escrita a giz branco.

Quando adentro o local, uma campainha-sino soa no alto da porta, chamando a atenção de todos para a minha chegada. O cheiro doce de café e chá espanta a sensação ruim que eu vinha sentindo até então e permiti um momento de paz, sentando-me em uma das mesas mais afastadas e apanhando um menu embora já tivesse mais ou menos ideia do que iria pedir.

Uma garçonete ruiva, coberta de sardas no rosto pálido e com os olhos muito verdes aproximou-se de mim. Deve ser uma estudante em serviço de meio expediente, mas não dou muita atenção a isso. O crachá em seu peito contém o nome Anna Paula.

− Já escolheu seu pedido, senhor? – ela pergunta, segurando um bloquinho de notas e uma caneta.

− Um chá preto com leite e dois croissants de queijo. – eu respondo, tocando suavemente a aba do chapéu. É uma mania da qual não consigo abrir mão.

− Quer que eu deixe o casaco e o chapéu no cabideiro? – ela pergunta depois de anotar o meu pedido com uma letra deveras rabiscada.

− Não é preciso, milady, mas agradeço a oferta. Isso é tudo.

Ela acena com a cabeça de maneira desinteressada e volta para o seu trabalho entediante.

Há algo em crianças que me incomoda. Eu não gosto quando o trabalho as envolve, mesmo que às vezes seja necessário. Adolescentes, em geral, são burros demais e enganá-los é muito mais fácil do que aos adultos, principalmente nos dias atuais onde a tecnologia faz metade do trabalho por nós. Ironicamente, o próprio homem se condenou quando Demônios sussurraram em seus ouvidos a respeito de invenções como a própria televisão, que havia sido criada por volta dos anos 50.

Demoro-me observando enquanto as pessoas são atendidas, vendo como a atitude da maioria deles é fria e distante em relação a tudo. Nem todos os seres humanos são assim, mas o egoísmo sempre os permeia de um jeito ou de outro.

Quando meu pedido chega, dou um longo gole no chá antes que o cheiro dos croissants partidos me ague completamente.

A comida do mundo humano é um dos maiores prazeres que eu sinto depois da música. Eu acho impressionante como eles podem inventar uma série de coisas diferentes utilizando-se dos mesmos ingredientes, e gosto especialmente daqueles cujo gosto é mais forte, como o café ou a pimenta. Meus irmãos mais velhos tinham pretensão por coisas doces; Minos é simplesmente fascinado por barras de chocolate, embora eu nada visse de especial naquilo.

Todos nós, de uma forma ou de outra, tínhamos nossos lados humanos, mas os juízes, por permanecerem menos tempo na Terra do que os outros Demônios, não se davam tanto ao luxo de sentir como aqueles que faziam o trabalho aqui.

Acho que parte disso se deve à negatividade de sentimentos dos quais os Demônios são feitos, embora eu, particularmente, seja indiferente à maioria deles. Acho que me distanciar ajuda a fazer melhor o meu trabalho, pois vejo como o Porteiro sofre sempre que uma alma se perde. Mas isso não me faz fugir do deleite que sinto sempre que estou em uma caçada. Algumas coisas simplesmente não podemos ignorar porque fazem parte da nossa natureza.

Visto isso, pergunto-me como será essa alma cuja qual meu senhor deseja. Tudo o que sei a seu respeito é que é uma alma pura e aquilo havia despertado a minha curiosidade mais do que qualquer outra coisa. Em todos os meus anos de trabalho, eu não me lembro de muitos casos assim e certamente de nenhum em que ele havia sido tão incisivo a respeito do meu próprio trabalho, já que eu sei fazê-lo muito bem.

Enquanto desfruto do meu café da manhã, as pessoas vão e vêm, mas nenhuma delas me chamava atenção. Lembro-me das palavras de Aiacos, dizendo que a encontraria de qualquer forma e decido aproveitar meu tempo naquela cidade, apreciando o local e seus habitantes enquanto isso não acontece. Isso não significa, porém, que ficarei à paisana. Existe uma ou outra coisa que eu posso fazer, bem, para me divertir.


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Notas finais do capítulo

Eu tenho muitas dificuldades com essa história, até porque ela é o meu bebê, e gosto de tratá-la com mais carinho que todas as outras. O problema é que a complexidade por trás dela às vezes me deixa de cabelos em pé!

E então, o que estão achando de Adrian até então?

Aguardo vocês nos comentários! Bom final de ano a todos!