O Ladrão de Almas escrita por Ariane Munhoz


Capítulo 2
Lacaio


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal! Mais um novo capítulo! Talvez nesse aqui, nomes conhecidos por alguns apareçam. Os três juízes do Inferno foram representados por mim com os mesmos nomes que são utilizados em Cavaleiros do Zodíaco. A personalidade, no entanto, eu moldei. Achei que três entidades seriam melhores do que uma. Eles são os precursores do Caos. Espero que gostem! Boa leitura e obrigada pelos comentários e pelo carinho! Principalmente pelos toques! Farei de tudo para melhorar. Boa leitura!



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1

Desapareço no portal sentindo a chuva pesada atingir meus ombros antes que o adentre. Se eu fosse religioso, poderia acreditar que Deus chorava pela alma que estou carregando. Mas isto não é uma coisa incomum. Embora nenhum outro demônio possua o meu poder em particular, muitos deles reclamam suas almas quando chega o momento da morte. Eu não espero. Meu senhor tem pressa em conseguir aquilo que é dele através do meu dom. E quanto mais pura a alma for, mais delicioso é o prêmio, embora, em todos os meus anos de serviço, eu nunca tenha visto, de fato, uma alma pura que ele tenha sido capaz de devorar. Acredito que isso seja um problema da humanidade como um todo, que se encontra em decadência. Não existem humanos que pensem mais nos outros do que em si mesmos: o altruísmo está em falta nos dias atuais. Eu não os culpo, porém. Não consigo pensar no motivo pelo qual alguém se sacrificaria pelos outros. É por isso que sou incapaz de compreender os sentimentos que Haziel exprime a cada vez que tiro uma alma dele; sou incapaz de me lembrar uma única vez na qual ele tenha vencido uma batalha em nossa guerra particular.

Caminho lentamente e com a cabeça baixa enquanto passamos pelos campos de punição. Para a sorte da criatura que me acompanha, tirei momentaneamente sua vontade de lutar através da minha mordida e com isso a visão deste local não lhe afeta tanto quanto deveria. Observo meus irmãos se divertirem com o sofrimento daqueles espíritos que, eternamente, pelo que quer que tenham feito, sofrerão os piores tipos de tortura naquele lugar.

É um poder singular dos demônios, esse de extrair almas. Mas quando eu o faço, tenho o poder de aliviar a sua dor. A maioria dos meus irmãos sequer considera essa possibilidade. Se possuem essa habilidade, a ignoram. Mas eu posso, literalmente, morder uma alma para fora do corpo. Não importa o momento, desde que os termos do contrato tenham sido cumpridos. E através do meu beijo—o vínculo para o meu dom—sou capaz de extraí-las, sem dor ou sofrimento. Simples assim.

Não sou tão sádico quanto meu irmãos, embora contemple o medo no olhar dos homens. Também não sou do tipo carniceiro que gosta de arrancar braços e pernas para ver os outros sofrerem. Eu apenas faço o meu trabalho de coletar almas e as trago para o meu senhor.

Passamos por várias alas até que adentramos os salões principais até a sala onde fica seu trono e me ajoelho diante de sua presença. Para mim, esta é a parte mais difícil do trabalho, pois sua aura aterrorizante inebria até mesmo os pensamentos deste pobre demônio que agora vos fala.

Mais um trabalho eficiente, Adrian. – Sua voz é como uma espécie de melodia maldita. Todos os anjos, mesmo depois que caem do Paraíso, continuam com sua voz cantada e melodiosa. Mesmo que tenha se tornado um demônio tão cruel, meu senhor não é diferente de nenhum deles. Mesmo que agora seja o Príncipe do Submundo, o senhor de todo o Inferno. – Aproxime-se.

O espírito parece despertar do torpor naquele momento quando sente o olhar de meu senhor sobre ele. Aqueles olhos rubros que queimam qualquer um que olhar muito tempo para eles. Sua beleza possui tamanha grandeza que poderia arrancar meus próprios olhos somente por observá-lo. Diferente de todos os outros Anjos, seus cabelos são negros como a noite mais escura, contrastando com a pele alva e os olhos de um vermelho tão intenso que poderiam ser facilmente confundidos com um par de rubis. No entanto, não o encaro e tampouco ouso a pronunciar seu nome. Ele é a Estrela da Manhã, o Portador da Luz que possuiu o maior poder dentre todos os arcanjos. É aquele que um dia dominará o mundo.

Talvez aquela alma perdida e sem nome queira balbuciar alguma coisa. Talvez queira pedir por sua misericórdia, por clemência, mas meu senhor, como eu, desconhece o significado dessas palavras. É tão imaculado deste mundo que seus pés nunca tocaram o chão, mesmo que sua essência seja tão obscura quanto seus objetivos. As asas, três pares deles, há muito tempo perderam a sua luz, sendo banhadas unicamente pelas trevas. Mas ainda nelas, vê-se um brilho dominante. A única parte dele que não se apagou com sua queda dos Céus, quando um terço dos anjos o seguiu para o domínio que agora possui.

Atrevo-me a olhar em sua direção por um momento, e vejo o sorriso que se forma em seus lábios, tão assustador que poderia facilmente destruir a vontade de qualquer homem que o encarasse. Mesmo o mais corajoso deles não seria capaz de resistir ao medo que meu senhor causa.

O espírito é atraído pela força magnética que o Pacto entre eles possui. É impossível resistir a ele. Não existe nada nesse mundo que possa fazê-lo a não ser seu próprio Criador. Meu senhor acaricia com cuidado seu rosto. Seus olhos estão fixos naquela criatura infeliz que chora em silêncio, incapaz de fazer qualquer outra coisa. Seus maiores terrores devem estar nublando sua mente naquele momento, enquanto seu predador o encara como se fosse uma deliciosa refeição. No entanto, tudo isso não dura mais que um segundo. Não chego a olhar quando ele realmente toma a alma para si, fazendo com que desapareça completamente de minha vista, mas o grito de agonia ecoará por semanas em minha mente até que seja capaz de esquecê-lo ou substituí-lo por um que talvez venha a ser pior.

Está feito. – Escuto meu senhor dizer, limpando os cantos dos lábios deliciado. – Eu esperava que tivesse um gosto melhor, mas ultimamente esses espíritos andam sem sabor.

Seu riso ecoa pela sala, arrepiando até os pelos de minha nuca. Permaneço ajoelhado no chão sentindo o olhar dele sobre mim.

Ultimamente a corrupção do mundo está maior, milord. Acredito que esteja no caminho certo para alcançar seus objetivos. – digo.

Os humanos fazem com que eu sequer tenha que me esforçar para isso, Adrian. – Sou capaz de ouvir o farfalhar de suas asas mesmo quando ele está distante de mim.

A ganância os corrompe facilmente. – respondo. – Haziel veio até mim chorar a perda de mais uma alma para o seu exército.

Aquilo faz com que meu senhor ria com gosto. Aperto com força os punhos, de forma que sinto as unhas penetrando a carne, mas é a única forma de manter-me são perto daquela criatura que não pode ser taxada como homem ou anjo, sequer como demônio. Ele é a pior união de todas as características ruins em um só ser, e ainda quando o olho sou capaz de enxergar a sombra de sua luz. Meu senhor é realmente uma criatura esplendorosa e, ao mesmo tempo, assustadora.

Anjos, sempre chorando a perda de uma alma. –  Ainda escuto o humor divertido em sua voz quando me diz isso, mas senti por um momento ela falhava, como se sempre que falasse dos anjos, uma pontada de saudade o atingisse. Poderia meu senhor sentir falta daquilo que havia sido um dia? Eu achava difícil de acreditar nisso.

Acredito que seja da natureza deles.... esse altruísmo que os faz sentir dor por qualquer coisa viva que se perca e no entanto sou incapaz de compreender seus motivos, milord. Não há sentido algum em uma criatura se compadecer da outra.

Aproxime-se, Adrian. – Sinto seu sorriso me rasgar por dentro. Era aquela crueldade que enlouquecia os homens. Que me enlouquecia.

Ergo-me da posição de onde estou, sentindo os joelhos trêmulos, como se quisessem ceder e caminho de cabeça baixa em sua direção. Quando meu senhor se coloca de pé, me sinto pequenino diante de sua grandeza, sobretudo quando suas mãos tocam os meus ombros. É como ser tocado por fogo.

Olhe para mim, Adrian. – diz, apertando as mãos firmemente. Sinto suas unhas penetrando minha pele e ergo o olhar trêmulo em sua direção. – Você tem medo?

Sou uma criança assustada diante de seu questionamento. Quem não teria medo? Aceno com a cabeça positivamente, incapaz de mentir em sua presença. Ele suga de qualquer criatura viva a sua vontade de viver.

Eu sei que sim. – Sorri, e segura meu rosto com as duas mãos, me forçando a perder-me naquele mar de sangue que são os seus olhos. Posso enxergar neles a perdição de todos os homens e com isso sou capaz de compreender o desespero tão grande que sentiam na presença de meu senhor. – Você é sensato por isso, Adrian, e eu gosto de seus serviços porque jamais falhou comigo. Entenda que estamos do mesmo lado, então continue trabalhando desta forma e eu nunca terei que fazer com você o que faço com eles.

Sinto seus lábios pressionarem minha testa. É como se ácido descesse por minha pele, tão quente é a sensação do beijo. Quando ele me larga, minhas pernas me traem e fraquejam, forçando a me ajoelhar diante dele novamente. Não olho em sua direção, mas sei que meu senhor sorri em deleite.

Vá, meu coletor. Está livre por enquanto. Em breve o chamarei para um novo serviço.

Aceno fracamente com a aba do chapéu e me ergo, saindo de lá como se tivesse visto uma assombração. Não importavam quantas vezes aquela cena se repetisse, eu sempre me sentia incomodado por sua presença arrebatadora.

Não fica menos difícil com o tempo, Ladrão de Almas. – Ouço a voz conhecida de Radamanthys comentar quando me vê sair afoito. De todos os três juízes que julgam para onde vão as almas que chegam ao Inferno, ele é o mais traiçoeiro e ardiloso.

Não é o que parece quando olho para você, Radamanthys. respondo a ele. Sei que devo ser cuidadoso, mas simplesmente não suporto a presença dele. O modo como tenta sempre me encurralar como se fosse uma de suas presas. Mais um brinquedo para que possa se divertir.

Oras, por que está tão arisco, Ladrão de Almas? – Ele sorri, deixando amostra seus dentes pontiagudos que poderiam facilmente rasgar minha pele. Acho que no fundo do seu coração negro, é o que Radamanthys mais deseja naquele momento.

Pareço arisco? Queria apenas expressar que sua coragem me é admirável, já que quando encara nosso senhor, não parece temê-lo ou estou enganado?

Seu sorriso desaparece imediatamente do rosto. Acho que teria me despedaçado se não estivéssemos ao lado da sala de meu senhor, mas sinto o ar me faltar quando ele me suspende no alto pela gola do meu sobretudo, me imprensando contra a parede.

Cuidado com a língua, ladrãozinho. Pode ser que acabe perdendo esse dom do qual tanto se orgulha... se não aprender a ficar calado.— Suas últimas palavras saem sussurradas como o silvo de uma serpente.

Talvez em alguma outra situação eu tivesse ficado com medo de sua ameaça, mas o grito agoniante daquela alma ainda ecoava em meus ouvidos, e por isso não desvio o olhar, mesmo enquanto Radamanthys me encara com toda sua fúria pelo meu desdém.

O que está acontecendo por aqui? – A voz do meu salvador vem do outro lado extremo do corredor, e seu dono aproxima-se lentamente com os braços cruzados enquanto olha para nós. Tem os cabelos pretos e curtos, e os olhos de um tom azul tão cristalino que poderiam ser facilmente confundidos com o branco. É o total oposto de Radamanthys, que possui os cabelos compridos e negros, os olhos azuis de um tom turquesa muito intenso como duas jóias brilhantes. Enquanto Radamanthys era uma tempestade, Aiacos era a calmaria. Era difícil acreditar que os dois eram irmãos.

Nada. – Radamanthys suspira, soltando-me e recupero o ar em longas arfadas, ajeitando meu sobretudo.

Imaginei ter ouvido uma discussão. – Seus olhos se fixam no irmão mais novo e depois em mim. São intensos como duas estrelas.

Aiacos era a Justiça. Aquele que decidia a sentença de todas as almas que vinham para o submundo por meio dos atos que haviam cometido em sua vida. Ele podia até mesmo revogar sentenças, embora em todos os meus anos de trabalho, eu nunca tenha ouvido sequer uma vez na qual ele fez isso. Embora seja um demônio como todos nós, é o que possui o temperamento mais calmo. Radamanthys era aquele que aprisionava as almas, que as torturava. Acredito que daí viesse sua loucura, sua insanidade. Era também aquele que causava intrigas mesmo entre outros demônios.

Ah, pois não foi apenas impressão, Aiacos. – A terceira voz veio do outro extremo do corredor, e seu dono possuía os olhos cinzentos e os cabelos prateados. Era o Executor. Depois da sentença dada por Aiacos, ele decidia como seria realizada. Juntos, os três eram invencíveis. Ao menos foi isso que ouvi dizer através das lendas e vivo há tempo o suficiente entre esse mundo e o outro para acreditar que são reais. – Radamanthys ficou nervoso porque o Ladrão de Almas sugeriu, num claro elogio para mim, que ele não tinha medo de nosso senhor.

Minos ri, olhando na minha direção. Sinto que estou me tornando motivo de diversão para os três. É incrível como, apesar de suas ocupações como juízes, sempre arrumam tempo para se divertirem com um pobre demônio como eu.

Não quero que isso torne a acontecer às portas da sala de milord Lúcifer, fui claro? – Aiacos nos encara seriamente. Apenas o fato de ter mencionado o nome de meu senhor, faz com que eu me arrepie completamente lembrando-me de seu olhar e de sua risada tenebrosa.

Eu... entendi. – respondo, ajeitando o chapéu sobre minha cabeça. Radamanthys cruza os braços, como se fosse uma criança birrenta e nada diz, virando o rosto para o lado.

Parece que as crianças se entenderam. – Minos olha risonho em nossa direção.

Posso me retirar, senhores? – pergunto ainda com a cabeça baixa.

...vá. – Sinto os olhos de Aiacos perfurarem minha nuca como se fossem uma broca. – E que isso não torne a acontecer nunca mais, Adrian.

Assim espero, Aiacos. – Aceno com o chapéu e me despeço, saindo o mais rápido que posso da presença daqueles três.

Você pega leve demais com ele. – Ouço Radamanthys dizer antes de me afastar o suficiente pelos corredores, distante demais para ouvir a resposta de Aiacos ou as brincadeiras de Minos a meu respeito.

2

Paro de caminhar apenas quando chego aos meus aposentos e me jogo na cama. Parece que não é muito comum demônios dormirem ou comerem, mas por passar tanto tempo ao lado de humanos, adquiri certos hábitos que pertencem a eles. Principalmente depois que realizo um trabalho como este, sinto-me tão cansado que poderia dormir por semanas sem me dar conta de quanto tempo realmente passou. Para nós, em geral, o tempo é algo irrelevante. Mas por acompanhar tanto a vida de certos humanos, adquiri até mesmo um relógio de bolso que levo comigo para onde quer que eu vá. Assim não me perco no horário dos mortais.

Pode parecer incomum, mas adquirir esse tipo de comportamento faz com que socializemos melhor. Demônios não costumam descansar desta maneira a não ser que atinjam a exaustão. Por não ser alguém poderoso como alguns de meus irmãos, isso acontece com certa frequência devido ao meu ofício de extrair almas antes do tempo determinado para suas mortes.

Fecho os olhos sentindo todo meu corpo formigar naquele momento. Mesmo no silêncio de meus aposentos, ainda sou capaz de escutar os gritos daquela alma ecoarem pelas paredes. Tampo meus ouvidos na esperança vã de que vão desaparecer. Não desaparecem. Continuam ali, talvez mais altos do que nunca. Quase posso enxergar o rosto de todas as almas que um dia já trouxe para meu senhor. Não é culpa ou remorso, pois sou incapaz de carregar comigo tais sentimentos. Mas existe algo no aspecto do meu trabalho que me incomoda.  O momento final. Os gritos antes que tudo termine. Antes que meu mestre possa se satisfazer e me mandar embora para que consiga outra alma para ele. Não sou um Ladrão de Almas. Tomo por direito aquilo que já tem dono.

É disso que me convenço a cada vez que atravesso um portal para o mundo humano. É isso o que falo para mim mesmo todas as noites antes de cair no sono. Mas as coisas não são bem assim. Eu procuro os elos mais fracos, as pessoas que podem ceder à tentação de fazerem um Pacto comigo e assim se ligarem ao meu senhor. É assim que as coisas devem ser e não há nada que se possa fazer a respeito para mudar o que foi decidido por ele. Pensando nisso, sinto meus olhos pesarem e adormeço.

(É um dia claro e sem nuvens, muito raro de se ver na capital, Londres. Mas naquela cidade um pouco distante, no interior, ainda existiam dias onde se podiam observar o céu azul sem que a fumaça das grandes maquinarias industriais escondesse sua beleza. Um pequeno menino se balança sorridente do lado de fora de sua casa, enquanto ouve uma melodia de alguém tocando piano começar no interior da casa atrás dele. Talvez aquilo atice sua curiosidade, pois salta rapidamente do balanço, desequilibrando-se e quase caindo com as mãos no chão antes que consiga voltar ao seu eixo de equilíbrio e continuar correndo. Para ele, o mundo é simples e ralar um joelho ou dois não faria mal desde que pudesse descobrir o mais rápido possível a origem daquele som.

Ele atravessa o salão principal daquela casa grande até que vê, de costas, uma mulher que toca piano. Tem os cabelos louros presos num coque alto, e mesmo de perfil, o menino sabe que seu sorriso sempre será capaz de acalmar seu pequeno coração. Aquela melodia é nova. Ele sabe que ninguém nunca produzirá algo igual, pois sua mãe tem um dom especial com a música. Um dom que talvez apenas Ludwig Van Beethoveen e Mozart tenham tido até então.

O pequenino fecha os olhos, acompanhando a melodia com o corpinho que se balança a cada ressoar de uma nota. É capaz de imaginar a música através da emoção que ela passa. Sua mãe é intensa, uma pessoa capaz de transmitir suas emoções através de sua música, e isso é algo que a torna tão especial. E mesmo que nada disso a tenha feito famosa, ela não se importa.

Tudo que lhe importa é a alegria de tocar, e o pequenino a sente até o momento em que a canção termina e ele abre os olhos.

“Você é divina. Sua melodia poderia fazer parte da Sinfonia do próprio Nirvana. Quero estar sempre aqui para lhe ouvir... minha querida.”

O homem que sorri para sua mãe é belo, assustadoramente belo. Há algo intenso em seus olhos quando se volta em sua direção e o menino não consegue encará-lo por muito tempo, mas sabe que o conhece, como se muitas vezes ele já tivesse visitado sua mãe, mas por que não se lembrava de seu rosto?

“Filho, venha até aqui.”, sua mãe sorri, estendendo a mão para ele.

Por algum motivo, ele não quer ir.

“Mamãe... quem é esse homem?”

O homem sorri e se aproxima, se agachando diante dele e lhe afagando os cabelos. São os olhos, certamente. O tom acetinado e dourado, intenso como se fossem feitos de ouro líquido. Cor de âmbar, ele pensou. Mas âmbar não é cor. Se sente zonzo, e dá alguns passos para trás, afastando a mão larga do homem. O cheiro dele é extremamente familiar.

“Não é capaz de reconhecer seu próprio pai, Adrian?”)

Desperto com a sensação de estar caindo de um penhasco. Meu coração palpita com força contra o peito, e aperto o tecido da camisa, tentando regularizar a minha própria respiração e, de forma inútil, tentando acalmar meu coração. Minha visão ainda está turva, me traindo com truques ilusórios que me fazem enxergar a silhueta do homem dos meus sonhos, mas não sou capaz de reconhecê-lo ou de lembrar de seu rosto. Também tem uma mulher – acho – e sonho com frequência com ela. Mas nunca vejo seu rosto ou daquela criança que me torno nos sonhos.

Isso é confuso, mas as imagens começam a se apagar da minha mente. Já não sei se haviam se passado horas ou dias, mas também não me importo demais com isso. Não até ver a carta passada por baixo da porta de meu quarto. Conheço a caligrafia rebuscada. O trejeito. Sinto o cheiro acentuado do perfume sulfuroso de seu dono e rompo o lacre que ainda fumegava, quente como a cera que o havia selado.

“Adrian,

Quando despertar, compareça aos meus aposentos. Tenho um novo trabalho para você.”

Ele nunca assinava as suas cartas. Eu, em geral, sabia seu conteúdo, mas ele insistia em enviá-las ainda assim, acredito, para me colocar em situações ruins com todas as más línguas e olhos invejosos que conseguiam farejar seu cheiro até meus aposentos.

Ou apenas por diversão, eu não sei. Ele sempre será imprevisível e eu sempre odiarei o momento que antecede ao seu encontro. No entanto, ainda que relutante, eu observo a carta se diluir em chamas, como sempre acontecia quando eu terminava de ler seu conteúdo e, tomando coragem para encarar meu próximo serviço, eu desapareço pelos corredores ao encontro de meu senhor.

3

Quando chego à sua sala, sou fulminado pelo olhar de Radamanthys, que se prostra de joelhos perante meu senhor. Respiro fundo, buscando manter a calma, sabendo que a única coisa capaz de me ferir dentro daquela sala é ele e mais ninguém.

Aproxime-se, Adrian. – A voz de meu senhor soa calma, mas, como sempre, exerce em mim aquele efeito que beira ao desespero.

Eu posso esperar. – digo num tom baixo, inclinando-me em uma sutil reverência, sempre evitando seu olhar.

Não há necessidade disso, há Radamanthys? – Eu não o olhava diretamente, mas sei que seus olhos estão voltados na direção do juiz que já não me encara mais, mas mantém sua cabeça baixa, prostrado sobre o chão.

Nenhuma, milord. Aproxime-se, ladrão. – Radamandhys torna a olhar para mim por cima do ombro. Sei que por dentro deve estar tramando mil formas de me destruir, mas agora está impossibilitado de colocar as mãos sobre mim.

Com passos sutis e cautelosos, aproximo-me e me prostro ao seu lado ajoelhando-me da mesma forma, de modo a reverenciar meu senhor.

Mandou me chamar, meu senhor? – pergunto apenas por força do hábito.

Sim, eu mandei. – Meus olhos se voltam em sua direção, mas nunca para o rosto. Ele suspira pesadamente e cruza os dedos, entrelaçando-os para fazer das mãos um descanso para o queixo. Algo naquela visão me pareceu remeter ao cansaço. Até mesmo seus ombros parecem mais pesados naquele dia, mas talvez seja apenas minha impressão. – Radamanthys estava me contando a respeito dos julgamentos. As almas puras têm se tornado um prêmio raro hoje em dia, Adrian. Na verdade, há séculos que não vejo nenhuma.

Como eu disse, meu senhor, hoje em dia os humanos são fáceis de serem corrompidos. Ofereça-lhes poder e dinheiro. É tudo o que podem desejar. Não é preciso muito. Então se vendem totalmente. Esquecem-se da presença dos anjos ou... – Não me atrevo a completar a sentença, sentindo o calor se tornar mais intenso no recinto. Ele não gosta disso, dessa citação, do Nome. Sinto até mesmo Radamanthys, sempre tão corajoso, se encolher ao meu lado. Ele, tão imponente e poderoso, encolhido. Ele era sensato.

...meu Pai.— A voz de meu senhor não soa agressiva. Talvez para Radamanthys, porque noto que permanece encolhido. Mas para mim que o vejo naquele momento, atrevendo-me a encará-lo como raramente fazia, enxergava certa melancolia em seu olhar. Saudade? Eu não acreditava nisso. Quando o via, via apenas alguém impiedoso, incapaz de sentir pena ou misericórdia. Alguém com as mãos manchadas de sangue, alguém como ele é incapaz de compreender esses tipos de sentimentos. Disso eu tenho certeza.

Ainda que as vezes aquela dúvida me corroesse, para mim é certo de que meu senhor não possui nenhum apreço por nenhuma vida que não fosse a dele. Não faz sentido alguém assim sentir falta dos anjos ou do Nirvana. Não faz.

Milord?— Aiacos anuncia sua presença através do som de sua voz. Eu não o escuto chegar. Eu nunca escuto. Chamavam a mim de ladrão, mas quem tem os passos leves é ele. – Mandou me chamar?

Sim.

À essa altura, não encaro mais o meu senhor. Aquela reunião enfadonha entre os juízes e ele me incomodava. Eu não gostava de estar no meio quando estavam envolvidos, sobretudo pelo fato de Radamanthys quase ter me destruído há pouco.

Minos está cuidando de tudo. Nós três não podemos ficar no mesmo lugar por muito tempo e as almas têm estado mais... caóticas. – Justificou a ausência do outro juiz, o que para mim era ótimo. Minos era o tipo de demônio que gostava de atiçar os demais e, embora se comportasse na presença de meu senhor, ainda assim ele sabia ser sutil e venenoso.

Sei disso. Aliás, sei de tudo o que acontece nos meus domínios. Não é mesmo, Radamanthys? Adrian?

À simples menção de nossos nomes, eu sinto minha nuca formigar como se um alvo tivesse sido pregado nela. Eu sinto seu olhar queimando sobre mim e não noto quando foi que parei de respirar, mas sei que já deve fazer algum tempo.

— Sim, milord. – Radamanthys apressou-se em responder. Eu fiquei calado como se tivessem comido a minha língua e roubado a minha voz.

Adrian?

— S-sim, meu senhor. – Limito-me a dizer, com o tom de voz mais alto que consigo usar. Nada mais que um sussurro.

Pois bem. Acredito que coisas assim não voltarão a se repetir sob meus domínios. Querem se matar? Sejam mais sutis. Os dois são úteis para mim, mas não significa que eu não possa...facilmente descartá-los.

Eu sabia que ele falava a verdade a esse respeito. E se dizia isso para Radamanthys, certamente eu deveria me policiar. Ele era um juiz. Eu nada mais era do que um lacaio a seus serviços, pronto para resgatar as almas particulares para ele.

Como eu dizia antes, existem poucas almas que ainda são puras e que anseiam tanto por algo que se venderiam para mim. Como vocês sabem, os demônios trabalham em todo e qualquer lugar, sussurrando desejos ao pé do ouvido daqueles que sejam mais susceptíveis à sua sedução. Eu penso grande, rapazes. Eu quero invadir o Nirvana.

Os dois juízes erguem o rosto no mesmo momento, cada um prostrado ao meu lado. Eu mesmo não me surpreendo com a afirmativa dele mesmo que fosse, de fato, surpreendente. Havia leis que eram seguidas. Os demônios não viviam mais soltos como antes. Ludibriávamos almas, mas tudo não passava de um jogo político. De uma grande Guerra Fria entre o Nirvana e o Inferno. Ninguém fazia uma jogada mais arriscada, porque os humanos possuíam o livre arbítrio. Os anjos tentavam salvá-los, nosso objetivo era corrompê-los. Uma declaração de guerra abertamente desestabilizaria a ordem. O caos reinaria. E creio que caos era uma palavra que definia bem o meu senhor.

Temos exércitos preparados. – Ele prosseguiu ao ver o nosso silêncio. – Mas não chegaremos de peito aberto. Miguel e seu exército são poderosos, mas temos um número maior por conta das almas corrompidas. Os desejos malignos, a increculidade dos humanos e seus pecados criaram mais de nós e diminuiu o número de Celestes. No entanto, isso não basta. Eu quero mais anjos ao meu lado. Consegui um terço deles quando deixei o posto de Estrela da Manhã. Quero mais metade ao meu lado para fazer o que desejo.

Perdoe-me o atrevimento, milord, - Aiacos se manifestou, os olhos fechados e o cenho franzido como se pensasse na melhor forma de prosseguir com seu questionamento. – mas como pretende fazê-lo? Há anos tentamos corrompê-los. Os anjos. Não é uma tarefa fácil, raramente cedem aos nossos encantos por mais que tentemos ludibriar eles com o nosso charme e poder de sedução.

Eu sei disso, Aiacos. – diz e agora seu tom de voz é mais sério. – Mas mesmo entre os anjos, existem aqueles que são mais fracos, mais susceptíveis. Existem até mesmo aqueles que estão infelizes.

Anjos infelizes. Sempre que penso nessa imagem, eu penso em Haziel e na sua eterna batalha contra mim. Penso nele, curvado como um gárgula cansado, me olhando do topo das catedrais de onde quer que fosse, os olhos daquele azul tão intenso trazendo consigo a chuva. Aquela chuva pesarosa. Talvez tão pesarosa quanto sua essência.

Existe um que seria um poderoso viés para o nosso exército. Um anjo em especial e sei como consegui-lo. – meu senhor diz, e sinto que agora seus olhos repousam sobre mim. – E é você quem vai trazê-lo, Adrian.

Engoli em seco.

Meu senhor, eu... eu não tenho tanto contato com anjos. Sabe que meu trabalho é com humanos. Sou apenas um coletor.

Detesto concordar com o ladrão, milord, mas ele nada mais é do que isso. Um coletor de almas, um demônio de casta inferior. – Posso sentir o desprezo em cada palavra que estala da língua de Radamanthys. –  O que poderia fazer contra um anjo? Não tem forças para batalhar, não é bom na arte de ludibriar como nós.

Eu sou bom na arte de ludibriar. Mas Radamanthys tem razão. Eu não possuo o mesmo poder do que eles. O veneno não corre em minhas veias, presente de seu pai, como corre nas dele. No meio dessa conversa, eu sou apenas um lacaio. Um ninguém.

Está questionando o meu julgamento, Radamanthys? – Há algo no tom de voz dele que indicava perigo e acho que Aiacos previu, porque se colocou de pé, pronto para intervir. Não sabia se achava aquilo nobre ou insano.

Acho que ele quis dizer apenas que não consegue enxergar o ladrão nessa função, milord. Mas não duvida de sua capacidade, jamais. Estou certo, Radamanthys?

Ele acena com a cabeça, mas sei que por dentro está aterrorizado. Sei que eu estou. Não entendo o que meu senhor quer dizer. Como eu poderia ajudá-lo? Como poderia trazer um poderoso anjo para o nosso lado quando tudo o que eu fazia era caçar a alma de humanos que eram tão susceptíveis aos nossos pedidos?

Você não fará nada diferente do que já faz, Adrian. – anunciou, e ouvi quando se ergueu da cadeira. Suas asas farfalhavam e eu via sua sombra. A sombra dos pés que, imaculados, nunca tocavam o chão. Sinto o cheiro de seu perfume que agora ocupa toda a sala enquanto ele continua a se movimentar lentamente. E eu sabia que vinha em minha direção. – Eu o enviarei atrás de uma humana. Mas é uma humana especifica.

Uma humana específica. – repeti como se tentasse digerir aquelas palavras.

Exato. Aiacos trabalhará com você nisso. É por isso que está aqui. Sua função é localizá-la. – ele sentenciou.

− Milord?

Ao que parecia, ao menos naquele momento, todos estávamos no mesmo barco, sem compreender onde meu senhor queria chegar com aquela conversa.

Eu conversei com Samael a esse respeito. Ele acha que esse anjo nos ajudará. Mas para que o alcancemos, precisamos primeiro alcançar a humana que ele tanto protege. É uma alma pura, talvez a mais pura que já tenha visto em toda minha existência. O seu cheiro é apagado pela presença dos anjos que sempre a protegem. Durante o passar das décadas e séculos nunca fui capaz de atingi-la porque a protegiam. Não posso mais permitir isso. Não se quiser atingi-lo. Esse é o primeiro passo, Adrian. E essa será a sua função quando Aiacos lhe der a localização exata dela.

A sombra dele paira sobre mim nesse momento, forçando-me a erguer os olhos em sua direção. Seu corpo se inclina na minha direção, ainda que ele flutue. Majestoso. Meu senhor é um príncipe entre os príncipes. O Príncipe do Mundo.

  Você deve trazê-la para mim, Adrian. Deve fazer com que sua alma seja minha. – Seus dedos tocam meu queixo. Sinto-os gélidos por um momento, mas aos poucos começavam a se aquecer. Seus olhos, aquele mar sangrento, me encaravam. Sinto-me tragado por eles como se estivesse no epicentro de uma guerra. Não há outra sensação senão o temor. E eu queria muito escapar dali, mas sabia que já estava aprisionado. – Você entende isso? Não terá que ser ninguém além de si mesmo.

Aceno fracamente com a cabeça, concordando com ele. As almas puras eram sempre as mais difíceis de serem conquistadas, eu ouvira dizer, mas não me parecia que tivesse alguma escolha.

Você fará o que for preciso para conseguir isso. Usará todos os recursos ao seu alcance, está me entendendo?

Novamente concordei com a cabeça.

Bom. Isso é muito bom. – Os seus lábios se curvaram em um sorriso de satisfação. – Encontre-a, Aiacos. E quando o fizer, deixe Adrian ao encargo de trazê-la para mim.

Ainda precisará de meus serviços, milord?— Radamanthys, ainda prostrado ao meu lado, questionou.

Talvez mais tarde. Agora vá e ajude seu irmão. Se as coisas continuarem assim, eu pessoalmente mostrarei àquelas almas o que é o caos.

Suas asas farfalham novamente. Foi naquele momento que Aiacos abriu os olhos. Eram de um tom imensamente claro. Poder-se-ia dizer que eram divinos, passando uma sensação de estranha e falsa paz. Era como se através deles, o mundo pudesse ser visto. Mas era exatamente isso que acontecia. Ele era aquele que tudo via, capaz de enxergar em seus julgados tudo o que já haviam feito em vida. Todos os seus erros, todos os seus acertos. Esse era o seu maior poder.

Eu a encontrei, milord. Está em uma cidade chamada São Paulo, no Brasil.

Certo. Leve-o. – Ele acena na minha direção. – E Adrian?

Meu senhor? – pergunto, ainda me mantendo ajoelhado no chão. Não porque não quisesse me levantar. Eu não conseguia.

Não falhe.

Ele não precisou dizer duas vezes antes que eu passasse pelo portal. Eu sabia que se falhasse naquela missão, a de trazer aquela alma para ele e consequentemente o anjo, a morte era o que eu mais desejaria para mim.

 


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Notas finais do capítulo

Enfim, mais um capítulo postado! O prólogo foi curto, mas creio que a maior parte dos capítulos tem mais ou menos essa média de palavras. Claro que existem menores e maiores, isso varia do que é abordado no cap!

Esse aqui fala um pouco mais de Adrian, do seu trabalho e é a apresentação do tão temido senhor do qual ele tanto fala.

Espero que vocês estejam gostando, que continuem acompanhando e me dando toques. Pra mim é muito importante saber o que os leitores acham, porque as vezes quando nós escrevemos uma história, temos a noção de ter colocado uma informação nela que nunca foi inserida. Mesmo quando releio, as vezes isso passa em branco...

Enfim, espero que estejam gostando. Aguardo vocês no próximo! Sugestões e críticas sempre bem vindas!



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