Deja Vu escrita por AmanditaTC


Capítulo 1
Primeiros passos




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- Valeu a pena?

 

A pergunta soou muito familiar. Era a mesma pergunta que ele lhe fez quando se encontraram após a guerra. Ele ficou do seu lado o tempo todo, cuidando de seus machucados e conversando. Não, não conversavam. Era apenas um monólogo por parte dele, já que não conseguia responder nada de volta.

 

Ficou naquela enfermaria por muito tempo. Tanto tempo que não fazia idéia de todas as mudanças que ocorreram depois que a guerra terminou.

 

Sabia que ele é quem havia se oferecido para lhe servir de enfermeiro e, posteriormente, de cicerone naquele lugar tão diferente. Em nada lembrava um hospital comum. Os pacientes ali estavam calmos, alegres, e todos podiam passear num amplo jardim, iluminado por um agradável sol de primavera.

 

O que mais incomodava em toda a situação era a presença de rostos familiares. Sabia que já havia visto aquelas pessoas outras vezes, embora não conseguisse se lembrar nem ao menos do nome de nenhuma delas.

 

Submeteu-se a sessões de terapia do sono. Os curandeiros daquele local diziam que durante o sono, os sonhos poderiam lhe revelar algumas coisas. E assim, com seu companheiro ao lado, foi para a primeira sessão.

 

O sono profundo, induzido por aromas mágicos, despertou algumas lembranças. Flashes sem sentido, mais ligados a cores do que a fatos. Viu momentos extremamente laranjas, outros muito brancos, lugares cobertos por uma camada cinza. Quando sua visão se deteve num lampejo verde, despertou entre gritos.

 

Precisou de um tempo para se recuperar. Tais sensações eram normais, ao menos pelas explicações dos curandeiros, e teria que senti-las diversas vezes para poder lidar com suas lembranças. Ao seu lado, o cicerone continuava paciente e prestativo.

 

Teria sido sempre assim? Aquele rosto, aquela expressão carinhosa faria parte do seu passado?

 

Uma semana após começar a terapia do sono já conseguia se lembrar de algumas coisas, alguns objetos que costumava usar. Sabia que possuía uma varinha, rolos de pergaminho, vidros de tinta, penas e um malão com um nome pintado na tampa, que no entanto, não conseguia divisar.

 

- Deve ser o meu nome – pensou em voz alta.

 

- Posso me sentar? – perguntou o cicerone, já ocupando um lugar sem nem ao menos esperar pela resposta. – Como tem se saído?

 

- Não sei. Eu já vi algumas coisas que devem ter sido importantes, mas... – interrompeu-se sem saber como continuar.

 

- Mas o quê? – insistiu o outro.

 

- Mas eu sinto que tem alguma coisa aqui dentro, no meu peito que precisa sair. E essa demora está me matando.

 

- Vou ver o que posso fazer por você.

 

Ele se levantou e saiu com uma pressa pouco comum às pessoas daquele lugar. Talvez soubesse da importância que tais lembranças teriam para sua recuperação. Afinal, as pessoas ali pareciam saber tudo sobre sua vida e chegava a ser cruel que ninguém lhe contasse tudo de uma vez.

 

Ficou sem encontrar seu cicerone por dias. Chegou a crer que ele fora castigado por tentar interferir num processo médico. E de um modo que não sabia explicar, sentia que não seria a primeira vez que aquela pessoa era castigada por querer ajudar alguém.

 

Quando se reencontraram, ele trazia um sorriso franco no rosto e um rolo de pergaminho nas mãos, que lhe entregou enquanto dizia, com um ligeiro tom de empolgação na voz:

 

- Uma autorização! Hoje vou levar você para visitar alguém. Talvez isso acelere um pouco o processo.

 

Com o peito cheio de esperanças, seguiu o cicerone até o grande portão de ferro dourado e o atravessou, sentindo o quanto as ruas fora do centro de recuperação podiam ser mais frias.

 

Instantes depois estavam num quarto de outro hospital. Todo branco, com uma única cama no centro, cercada por um biombo. Andavam em silêncio por respeito aos demais doentes que deviam ocupar os quartos vizinhos.

 

Pararam diante do biombo que cercava a cama. Era mais uma imagem familiar. Não lhe provocava dor. Ao contrário. Sentia-se bem ali, como se já tivesse passado dias agradáveis em camas de hospital.

 

Lançou ao seu companheiro de viagem um olhar indagador e como resposta só obteve um:

 

- Vá em frente. Eu espero aqui.

 

Sem saber o que encontraria do outro lado, deu um passo indeciso em direção á cama. Ali estava um rapaz, aparentemente adormecido. Os braços não apresentavam nenhum sinal de machucado e era impossível dizer o que o mantinha naquela cama.

 

Andou mais um pouco e atentou para os óculos de aro redondo, apoiados na mesa de cabeceira. Pegou os óculos com cuidado e percebeu que estavam levemente trincados. Uma frase surgiu de repente em suas memórias.

 

Achando-a ridícula, acabou murmurando para si:

 

- Óculos reparus!

 

Sentiu as mãos formigarem e percebeu que o objeto não estava mais quebrado. Colocou os óculos no mesmo local e se aproximou ainda mais do doente, sentindo um aperto no peito.

 

Involuntariamente, duas grossas lágrimas desceram de seus olhos. Afastou a mecha do cabelo do rapaz, que insistia em lhe cobrir os olhos, mas retirou a mão com rapidez quando reparou na cicatriz em forma de raio que ele tinha na testa.

 

Com a ponta do indicador, desenhou o contorno da marca suavemente, e só então chamou:

 

- Harry! – a voz embargava enquanto tornava a chamar. – Harry, é você. Você está bem? Está vivo? Pode me ouvir? Sou eu...

 

Não conseguiu completar a frase. Ainda não se lembrava do próprio nome. Saiu do biombo, em visível desespero.

 

- Por que eu não consigo? – chorava sem nenhuma vergonha, as lágrimas escorrendo pelo rosto enquanto se dirigia a seu acompanhante. – Por que é tão difícil dizer o meu nome? Eu queria que Harry soubesse que eu vim aqui, que não o abandonei e que eu sei que ele vai ficar bem!

 

Encostou-se à parede em visível desolação. Os soluços lhe faziam chacoalhar os ombros e foi preciso um abraço mais forte do cicerone para que conseguisse se acalmar.

 

- Harry sabe que você veio. Sabe que não o abandonou, mas se não se controlar, vai ser preciso ir embora e não conseguirei permissão para irmos aos lugares mais importantes.

 

Engoliu o choro, ainda sentindo o corpo tremer, e encarou seu interlocutor. Ver Harry foi incrível, mas sabia que não era exatamente ali que encontraria as respostas para seus tormentos.

 

- Vamos nos despedir de Harry. Nosso tempo aqui está se esgotando.

 

Ambos se aproximaram da cama do rapaz, um de cada lado. Sem combinar nada, cada um deixou os pensamentos fluírem, como se conversassem telepaticamente com o rapaz.

 

Harry suspirou de maneira confortável na cama e continuou a dormir. O cicerone sorriu ainda mais quando o ouviu ressonar. Deu a volta na cama e murmurou:

 

- Falta pouco. Mais alguns dias e ele sai do coma. Agora vamos, há muito ainda para ver, mas antes você precisa descansar.

 

E antes que pudesse entender o que seu companheiro de viagem havia falado, eles já estavam diante do portão dourado e voltavam para seus aposentos.

 

Durante toda a noite, ficou pensando no que aquela viagem teria significado. Harry era seu melhor amigo, disso se lembrava. Também sabia que o que mantinha o rapaz na cama era o mesmo motivo que lhe mantinha naquele lugar: a guerra que enfrentaram juntos.

 

Uma guerra contra um bruxo das trevas e seus seguidores. Lembrava-se que fazia parte da oposição, lutando ao lado do amigo, o que significava que assim como ele, também tinha poderes.

 

- Isso explica os óculos consertados – murmurou para si.

 


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