Um Horizonte Maior escrita por André Tornado


Capítulo 25
Nem todos são aliados


Notas iniciais do capítulo

“Mas, por qualquer motivo que não conseguia explicar, sentiu uma vaga de suspeitas a inundar-lhe a alma, a respeito do seu amigo.”
In O Império Contra-Ataca, GLUT, Donald F., Publicações Europa-América



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A grande janela panorâmica deixava ver uma avenida larga percorrida por pedestres e pelas cápsulas ultrarrápidas, num vai-e-vem constante. A luz do sol difundia-se harmoniosamente pela metrópole, emprestando-lhe uma claridade tranquila, um jogo de sombras ténues que convertia cada recanto, cada exagero arquitetónico, cada espaço numa harmonia visual.

Eles todavia não aproveitavam a vista fantástica que se estendia até ao horizonte, pois os edifícios da cidade não se elevavam em alturas desmesuradas, arranhando os céus imensamente azuis. Mantinham-se longe da janela, com receio de serem detetados, através de uma vidraça tão ampla, naquele quarto para onde tinham sido levados com o propósito de uma pausa e de uma refeição ligeira que incluía refrescos e petiscos. Ninguém tinha comido ou bebido nada, infelizmente. A apreensão dominava-os e queriam depressa terminar com aquilo e ir embora de Ostyu. Por outro lado, os dois oficiais que os acompanhavam tinham saído sem dizer para onde e ainda não tinham regressado.

O quarto onde esperavam, na companhia de Chewbacca e dos androides era um compartimento requintado num prédio que vendia alojamento a indígenas e a estrangeiros, apesar de ali, como no resto da cidade, não se vislumbrar gente do exterior. Estava mobilado com sobriedade, num estilo minimalista, em tons prateados e brancos, a combinar com as cores que predominavam por todo o lado. As camas surgiam das paredes se pressionado um botão num painel que também controlava as gelosias, a temperatura ambiente e outros mimos à disposição dos hóspedes, como aparelhos que difundiam música e filmes. Havia ainda uma ligação ao sistema informático central que estava devidamente protegida por uma grelha que Luke de pronto abriu, caso precisassem da intervenção de Artoo para descodificar alguma atividade mais suspeita.

Para o contrabandista tudo o que os rodeava já tinha uma aura de suspeição.

— Não estou a gostar disto! Foi tudo uma armadilha.

O maxilar de Han marcava-lhe a pele do rosto.

Pelo menos tinham conservado as suas armas. Era inexplicável como continuavam armados e ninguém achava estranho ou ameaçador. A mão de Luke envolvia o punho da sua pistola laser DL-44, sentindo-lhe o volume e a solidez. Sacara-a do coldre como reflexo, não porque pressentisse uma ameaça iminente. Carregava-a para ter uma das mãos ocupada, senão estaria sempre a esfregá-las uma na outra, espreitando Threepio que estava mais calmo do que ele. Han caminhava em círculos, penteando o cabelo com os dedos.

Ele disse ao amigo:

— O contrato vai ser assinado, Han…

— Não duvido. É o engodo que nos vai atrair à armadilha final. Comprovamos a transação comercial, porque vão ganhar um monte de dinheiro com a Aliança… Nunca iriam desperdiçar a oportunidade de vender as naves por um preço astronómico… Depois estaremos à disposição deles, muito felizes com o nosso sucesso e nem nos vamos aperceber que nos estão a cair em cima!

— Não existe nenhuma armadilha – refutou Luke, sem realmente acreditar nas suas palavras. – Além disso, tu já estás a descrever o cenário, não nos vão apanhar desprevenidos. E temos forma de nos defendermos! – Levantou a pistola.

— Guarda isso, queres? Estás a pôr-me nervoso.

— Tu já estás nervoso – resmungou Luke enfiando a pistola laser no coldre.

— Mais nervoso. Não quero apanhar um tiro teu. O Chewie vai-se ver na obrigação de me defender.

Luke olhou para o wookie que inclinava a cabeça.

— O Chewie não me vai atacar!

— Não duvides da sua lealdade para comigo.

— Han, não estás a dizer coisa com coisa!

— O menino Luke tem razão, capitão Solo – interveio Threepio conciliador. – Devemos estar calmos para que não aconteça nada de inesperado e que não possamos enfrentar. Até agora não percebi nenhum sinal de alarme. A negociação correu bem, dentro do padrão que estava definido no relatório. Neste momento estamos a descansar e os senhores deveriam comer qualquer coisa. Se calhar ter o estômago cheio ajudava a clarear o raciocínio. É apenas uma sugestão, capitão Solo... Oh! E eu não me importaria nada de ter um banho de óleo! Os androides são sempre negligenciados… Obrigado, Artoo. Pela primeira vez, parece que concordas comigo.

O corelliano pareceu não ter escutado o androide e não abrandava as passadas inquietas que o faziam rodear um sofá confortável que ninguém tinha usado. Exclamou:

— Jeiz Becka está atrás de nós!

Chewbacca vigiava a entrada do quarto onde tinham sido enfiados à força para um descanso de que não precisavam. M’mba concordara com a oferta generosa e cordial, fora assim que a classificara, do líder do quinteto, o homem de Becka. Ela insistira com tanta energia, algo inédito nela, toda ela tremia para fazer aquela representação convincente, que eles aceitaram o convite sem levantar grandes objeções, pois desejavam deslindar o mistério que se escondia ali. Acabara por não ficar, comunicando-lhes que precisava de ir consultar os arquivos. Eles não gostaram, mas não a impediram de sair.

Luke respondeu à exclamação de Han:

— Não é possível que o Becka nos tenha identificado no planeta não cartografado onde conhecemos o Dak. Ele não nos viu, nem soube que nós, especificamente nós, estivemos lá. – Recordou-se que ele entrevira o bandido durante a fuga, mas fora apenas um olhar de relance. Ele vira Becka, Becka e a sua comitiva não o tinham visto. Esse acontecimento, se o mencionasse, só geraria mais confusão e descartou-o. – Muito bem, acredito que ele deve ter tomado conhecimento da evasão do Dak, deve ter andado a procurar informações sobre naves que tenham aterrado no planeta, esses dados triviais, mas não se deve ter alongado muito nas buscas. O Dak vinha de uma colónia penal do Império, seria um peão na sua organização, mais um elemento, alguém que ele não deveria conhecer assim tão bem… Deve ter castigado os suspeitos habituais, para fazer valer a sua autoridade, e ficou-se por aí. Seguiu com os seus assuntos, como de costume…

A sua explicação não sossegou o corelliano. Fê-lo parar, contudo. Han esticou o dedo indicador e declarou:

— Não sei o que se passa, mas não é uma coincidência que o Becka apareça, de repente, neste negócio que envolve a Aliança. Escuta-me, Luke… Nada nos relatórios indicava que seria Becka a outra parte nesta relação comercial. – Apontou para Threepio. – Apesar de aquela lata afirmar que a negociação correu dentro dos padrões!

— Capitão Solo, a minha afirmação inscreveu-se numa análise puramente formal de…

— Chiu, Threepio – cortou Luke.

— É certo, não sabíamos quem nos estava a vender as naves – prosseguiu Han –, seria sempre um distribuidor, um representante, porque o vendedor não desejava ligar-se diretamente à Rebelião e comprometer as suas relações comerciais com o Império, já que estas existem ou não seria capaz de apresentar uma garantia dos estaleiros de Kuat. Agora, pensa comigo. Temos o Becka anunciado com pompa pelo chefe da mesa. Devíamos ter ficado impressionados, muito agradados por existir um nome tão importante que está a colaborar com a Aliança! Outra garantia apresentada nesta troca comercial e tão proveitosa para ambas as partes. Não devíamos ter sabido antes dessa vantagem? O nome do Becka não devia existir no relatório, frase sim, frase não? Para que, quando nos fosse revelado que era dele a primeira assinatura no contrato, não fizéssemos aquela cara de idiotas que fizemos? Somos os representantes oficiais da Aliança, não estamos aqui em nome pessoal! Por isso, a minha intuição diz-me… E a minha intuição nunca me enganou, miúdo! A minha intuição diz-me que o Becka nunca existiu nas reuniões preliminares do Willard com esse vendedor que quer preservar o seu anonimato. O Becka foi introduzido no esquema… por ele próprio, quando descobriu, porque ele terá meios para descobrir estes grandes negócios clandestinos, que nós… nós iríamos aparecer! Ele sabe muito bem quem é o Dak Ralter. Um senhor do crime do calibre do Jeiz Becka conhece até a criatura rastejante que lhe lava as latrinas.

O discurso de Han começou a fazer um estranho sentido. E o Willard era a peça-chave. Não significava que o general tinha alguma coisa que ver com o súbito aparecimento de Becka no negócio das naves. Nem sequer sabia, de certeza, que um bandido perigoso estava a interferir, daí terem enviado a mensagem secreta a Leia, pouco tempo antes, para colocá-la de sobreaviso. Mas porque fora o general que lhe revelara um detalhe, quando finalizavam uma reunião em que se tinham debatido questões relacionadas com a evacuação de Yavin Quatro, um detalhe fundamental que poderia ser a cifra que resolveria aquele enigma.

 Os os olhos de Luke embaciaram-se, a boca ficou seca, murmurou:

— Talvez… seja eu… o alvo.

— O que queres dizer, miúdo? – estranhou Han.

Gaguejou. Obrigou-se a fechar a boca para se recompor. Engoliu em seco.

Confessou tonto com o que acabava de descobrir:

— Vader está atrás de mim, porque fui eu o piloto que destruiu a Estrela da Morte. O Willard contou-me… Vader quer castigar os rebeldes, obviamente, por causa da afronta que foi a destruição da estação espacial, mas pretende apanhar-me a mim, em particular. Está relacionado com a Aliança, mas também… com a Força.

— A Força? Aqueles disparates que o velho Kenobi te andou a ensinar a bordo da Falcon, quando estávamos a caminho de Alderaan?

— Não são disparates!

Han mostrou as mãos, rendendo-se.

— Está bem, está bem. Não são disparates. Não quero discutir contigo.

Luke continuou:

— Bem, Vader pode ter pedido ao Becka para me encontrar.

— Como um caçador de recompensas? E por que razão o Becka não envia um tipo à tua procura para fazer esse trabalhinho?

— Sou importante para Vader. Liga-se ao Ben… Vader e o Ben lutaram, lembras-te? Vader matou-o… O Ben conheceu o meu pai. Não sei, Han. Se soubesse explicar melhor…

Luke girou sobre os calcanhares. Sentia-se a sufocar ao dizer aquelas coisas. A verdade sugava-lhe o ar dos pulmões. Respirou fundo, o cheiro da comida sobre a mesa entrou-lhe pelas narinas e enjoou-o.

— Não disseste isso à princesa quando enviaste a mensagem – notou Han. – Queres enviar uma outra, a contar-lhe que Vader te persegue? Depois dessa, o mais provável é termos o Império a seguir ao Becka. A situação tornou-se mais estranha…

— Não o vou fazer, Han. Dissemos à Leia que nos sabemos defender e vamo-nos defender. Não podemos pedir auxílio oficial da Aliança. Temos de manter o secretismo desta operação.

— Hum… Tens razão. Sabemo-nos defender.

Chewie rosnou em aprovação, acrescentando que também iria lutar com eles.

Luke afirmou:

— Se tivermos que nos escapar de stormtroopers, não será a primeira vez.

— Pois não… – concordou Han com um sorriso torto.

— Estamos mais atentos, a partir do momento em que passámos a conhecer essa artimanha do Vader. Ou seja temos uma vantagem sobre ele. Acredito que o Becka está a agir sozinho nesta fase. A mando de Vader, mas sozinho.

— Hum-hum…

— Vader não espera que saibamos que me persegue. Talvez seja… uma questão pessoal. Por isso encomendou a captura a um criminoso e não coloca o exército imperial em campo.

— A Aliança protege-te dos stormtroopers ou de qualquer ataque do Império.

— Sim, sem dúvida. Mas aqui estou vulnerável, distraído… Longe da proteção mais global da Aliança, quase por conta própria. Vader usa o Becka para um trabalhinho mais discreto. É apenas um piloto rebelde… E se alguma coisa correr mal, consegue afastar as suspeitas de si.

— Darth Vader pode fazer tudo o que bem entende, miúdo, sem recear as consequências. É estranho, admito, ele estar a servir-se do Becka, quando é alguém tão poderoso e temível. Não te esqueças que também tenho a cabeça a prémio. E se o Becka veio atrás de mim, depois de uma conversinha com o Jabba, descobriu-te entretanto, identificou-te como o herói rebelde e fez a oferta a Vader para te capturar? Um extra para continuar nas boas graças do Império?

— Estaremos os dois na mesma nave condenada.

— Nem mais.

— Vamos prosseguir como antes, para não lançarmos suspeitas. Serão os irmãos Mathyas que vão assinar o contrato. Depois de o documento ter sido enviado para a Aliança, ou seja, depois de o negócio ter sido oficializado, termina a nossa contribuição. As naves estão compradas, asseguramo-nos disso e depois devemos sair airosamente de cena.

Han pensou durante alguns segundos-padrão, mãos nos quadris, a contemplar o teto branco do quarto.

— Muito bem, miúdo. Mas quero assegurar-me de que não temos traidores entre nós.

— O que queres dizer com isso?

Um rugido de Chewie avisou-os de que alguém chegava. A porta deslizou para o lado e por esta passou M’mba, naquela aparência indolente e desvanecida que era característica das criaturas de Ostyu. O pescoço ligeiramente dobrado fazia-a mirar o soalho encerado e brilhante numa contemplação vazia. Nas mãos que unia à frente do longo vestido tinha o holopad com os apontamentos da reunião, que lhes deveria ser entregue no fim do processo, conforme fora combinado previamente, para prevenir fugas de informação sensível. Contudo ela passeava-se com o aparelho portátil, o que já de si constituía uma falha de segurança que podia ser bastante grave, agora que sabiam o que se estava a passar.

Artoo apitou inquieto quando Han avançou para M´mba como um furacão. A mulher não se endireitou, nem mudou a sua postura submissa, nem revelou um arrepio de susto.

— Tu vais contar-nos o que sabes!

Perante a sua passividade, Han gritou-lhe:

— Estás a ouvir-me? Como raios apareceu o nome de Jeiz Becka neste negócio?! Identifica-me os neimoidianos do painel! São eles os verdadeiros donos da corporação que vendem as naves que estamos a comprar, certo? Os Airspeeders T-47 que vimos no hangar antes de nos terem metido neste quarto! Pareceram-me muito sabedores de pormenores técnicos e fizeram uma apresentação muito interessante das qualidades do caça.

Luke ficou chocado com aquela abordagem. Ela fazia parte do grupo, completamente inofensiva, não podia estar a tratá-la daquela forma.

M´mba desatou aos murmúrios, cabisbaixa.

— O que está ela a murmurar? – irritou-se o corelliano.

Threepio revelou:

— Parece-me… uma prece, capitão Solo.

— Uma… prece?

— Sim, ela está a apelar aos deuses universais e à Força.

Luke olhava da criatura, para o corelliano, para Threepio e depois outra vez para a criatura.

— A Força? – perguntou, dando um passo em frente.

Han estendeu um braço para impedi-lo de avançar.

— Aguenta-te aí, miúdo!

— Sim, uma prece – confirmou Threepio. – Quando os indígenas de Ostyu murmuram, como a senhorita M’mba está a fazê-lo agora, são sempre frases partidas em que invocam o divino e a Força. Usam um dialeto incomum, mas muito semelhante ao idioma usado pelos Caarrde, do sistema Caarredynius. As palavras são incoerentes e por vezes não fazem sentido quando colocadas na mesma frase… Acho que nem sequer posso classificar estes murmúrios como uma frase, capitão. A minha interpretação é que essas palavras desconexas funcionam como apelos, pedidos, invocações… Como numa prece.

— Muito obrigado, professor!

— De nada, capitão. Estou aqui para usar os meus atributos de tradutor.

Han empurrou o queixo de M’mba com dois dedos para que ela levantasse os olhos. A expressão do rosto era mortiça e causava uma certa pena. Luke apertou os lábios, incomodado. O corelliano ameaçou:

— Acaba com isso, não te vai ajudar… Os deuses não vão fazê-lo, querida. Estão demasiado ocupados onde quer que estejam. Se é que existem e estão efetivamente em algum lugar.

— Han! – cortou Luke incomodado.

A ausência de sensibilidade religiosa no contrabandista corelliano era desconcertante e ofensiva. A pressão que estava a usar naquele interrogatório repentino era também descabida quando estavam a interpelar uma aliada e alguém que seria, evidentemente, inocente. Conseguiu perceber que era aquele o método de Han para descobrir traidores e eliminar as probabilidades de serem enganados por aqueles que estariam mais próximos e que lhes tinham, à partida, disponibilizado ajuda. Desagradável, bruto, mas poderia ser eficaz.

— Conta tudo o que sabes e também tudo o que não sabes. Abre essa boca e começa a falar qualquer coisa que preste… criatura!

M’mba não sabia de nada. Disse-lhes isso numa declaração débil, desamparada, com um aspeto tão compungido que Luke apartou a vista dela com receio de que lágrimas descessem por aquela face esguia e tristonha. Se M’mba chorasse, ele arrancá-la-ia das mãos do amigo. Fechou um punho.

Aquela era a forma dela se exprimir, sem tonalidade nas palavras, modulando a voz num registo ínfimo como se estivesse a declamar outra prece para si mesma, desta feita com frases bem construídas e completas. M’mba não sabia mesmo de nada. Tinha sido requisitada pelo governador local para seguir o grupo deles, senhores importantes recomendados por alguém que se ligava dubiamente à Aliança. Tinha a incumbência de lhes servir de secretária e de guia, de assegurar-se que estavam a ser bem recebidos e que estavam satisfeitos, pois o sistema de Ostyu era conhecido pela sua hospitalidade. Apontou apática para a mesa onde a comida estava intocada. Han insistiu com o nome de Becka. Ela negou suavemente.

— Não conheço, senhor. Somos apenas os anfitriões do vosso encontro. Providenciamos a logística para que tudo corra bem. A identificação dos membros que integram os grupos não nos interessa – concluiu M’mba.

— Ela está connosco, Han – reforçou Luke puxando a criatura para afastá-la do corelliano. – Assustaste-a. Ela não te esconderia nada depois de uma abordagem destas.

Han arqueou as sobrancelhas.

— Algum problema?

— Não, nenhum! – suspirou Luke. Voltou-se para M’mba. – Perdoa o meu amigo. Aconteceu um imprevisto e estamos… Bem, estamos a analisar a nossa posição. Está tudo bem.

Ela observava-o como se visse através dele.

A porta tornou a abrir-se. Chewie lançou alguns rosnados.

— Ah, os dois irmãos inseparáveis resolveram regressar! Onde estiveram metidos? – disse Han, irónico, para os dois tenentes que acabavam de entrar no quarto.

Os Mathyas encararam Han Solo. Foi o moreno que resolveu responder àquela interpelação pouco ortodoxa.

— Relembro-lhe, capitão, que não obedecemos às suas ordens. Na realidade, passa-se exatamente o contrário e deverá ser o capitão a seguir as nossas indicações em caso… de uma situação anómala. Portanto, não creio que essa pergunta deva ser respondida ou que mereça uma resposta.

— A sério? E vamos ter alguma situação anómala em breve?

O irmão albino aproximou-se da mesa. Cruzou os braços e começou a contemplar as iguarias que se dispunham em pratos redondos, usando o nariz para definir se os aromas corresponderiam ao sabor. Estaria talvez interessado em provar a comida. Luke perguntou:

— Passa-se alguma coisa? O que foram investigar?

Mathyas Um, o irmão moreno, respondeu pedante:

— Fomos dar um passeio pela cidade. É um sítio muito curioso, com algumas particularidades que interessam a pessoas… de um certo nível cultural.

— Ah… de um certo nível?! – zangou-se Han.

— Se já chegaram podemos avançar com o negócio – interrompeu Luke para não prolongar aquela picardia inútil entre o corelliano e os irmãos. Eles odiavam-se, era notório. – A M’mba tinha acabado de chegar para nos escoltar de regresso à sala de reuniões onde iremos assinar o contrato. Certo… M’mba?

A criatura inclinou-se numa vénia lenta, quase como se fosse cair para a frente desmaiada, e depois pediu-lhes que a seguissem. Threepio lançou um aliviado “Oh, céus, por favor, terminemos com isto!” que podia servir para aquele acontecimento como um todo ou simplesmente para a competição surda entre Han e os Mathyas.

No interior do edifício não existiam escadas, nem elevadores que pudessem transportar os utilizadores, frequentadores ou moradores entre os pisos. Essa função cabia a uma rampa espiralada situada num tubo central, modelado em vigas cinzentas e retorcidas. Enquanto desciam essa rampa que os levaria até à avenida que se contemplava a partir da janela panorâmica e daí de regresso à sala de reuniões inicial, Han atrasou os seus passos para se chegar a Luke. Confidenciou-lhe em voz baixa:

— Miúdo, deixei de confiar nestes Mathyas. Podem ter preparado um acordo paralelo com o pessoal do Becka.

— Isso é uma acusação muito grave. Os tenentes são da confiança do Willard.

— Que se dane o Willard! Ele não está aqui! Nós estamos e precisamos de nos precaver. Abre os olhos e os ouvidos. Se Vader está por detrás das intenções do Becka, este não vai ser meigo contigo pois não vai querer desapontá-lo. Acredita que qualquer bandido, por mais maldoso e poderoso que seja, tem mais medo de Vader do que de Palpatine. Não queiras cair nas mãos desse tipo!

— Vader?...

— Sim, miúdo! Foge de Vader e da sua influência. Consta que ele não perdoa ninguém, nem esquece quem o ofendeu. Mas existe uma maneira de ganharmos tempo…

— Qual?

— Não digas quem és, protege a tua identidade. Se Vader procura por um Skywalker, o Becka não deve saber que te chamas assim. Ele vai perguntar-nos os nossos nomes, vai querer ser simpático, assegurar-se que seguiu a pista correta. Avisa aí a lata amarela de que não poderá apresentar-nos, nós faremos as introduções e com nomes falsos.

Luke aceitou a indicação de Han. Parecia-lhe lógica e acertada, nutrida no aguçado sentido de sobrevivência do contrabandista, habituado àquele tipo de ambientes duvidosos, instáveis, perniciosos, encapotados, mesmo que parecessem inócuos e bastante bonitos.

Na sala de reuniões reencontraram-se com o painel inicial formado pelos cinco elementos, o líder da negociação, os dois neimoidianos e o par de indígenas. M’mba tinha estado a preparar o contrato que oficializaria a transação comercial, a aquisição de vinte caças Airspeeder T-47, uma primeira entrega em três meses, a segunda entrega um mês depois, por um total de dois milhões e duzentos mil créditos. Cumprimentos polidos com apertos de mão e sorrisos ensaiados, palavras curtas de circunstância sobre o ambiente fantástico de Ostyu. Depois entrou como uma rajada de vento, roubando o protagonismo, holofotes apontados, brilho de estrela, ufano e seguro de si, Jeiz Becka.

— Meus senhores!

Mais apertos de mão. Os irmãos Mathyas foram especialmente cordiais, notou Luke. Sentaram-se à mesa, posições baralhadas em relação às iniciais. Becka sentou-se ao lado de Han Solo, a seguir aos irmãos Mathyas que de repente tinham vindo para o lado direito da mesa. Os neimoidianos acomodaram-se nas mesmas cadeiras, o líder ocupou o lugar que fora de Luke que teve de se sentar com M’mba e Chewbacca que também veio para o lado esquerdo em relação à cabeceira. O par de indígenas quedou-se de pé, atrás dos tenentes, de Becka, de Han e do líder, como se vigiassem a formalização do negócio, no seu costumeiro aspeto apático pelo que ninguém se incomodou com a sua presença muda.

O contrato foi assinado. M’mba recolheu o holopad, fez a transmissão para o arquivo oficial de Ostyu, uma mera formalidade que consistia num documento com a natureza sumária do negócio, enviou-o encriptado para o banco de dados que fora previamente acordado com a Aliança. Luke pediu discretamente a Threepio para verificar se os procedimentos estavam a ser seguidos. Quando M’mba pousou o holopad e entrelaçou os dedos vagarosamente ao lado do aparelho, sobre o tampo da mesa, dando por concluída aquela tarefa delicada, o androide confirmou que tudo decorrera conforme o protocolo que estava definido no relatório. Luke disfarçou uma expiração profunda. Estava concluído!

A voz de Becka troou:

— Este momento único exige uma celebração!

Os irmãos Mathyas sorriram descaradamente. Começavam todos a levantar-se. Han concordou com um entusiasmo fabricado:

— Aceitamos essa generosa oferta. Não é todos os dias que se consegue um acordo tão proveitoso para ambas as partes.

— Vamos beber qualquer coisa. Uma celebração exige sempre uma bebida, é o meu lema. Uma bebida forte, hum? Alguma coisa que faça correr o sangue e soltar a alegria. É um momento feliz. – Voltou-se para a audiência, elevou os braços num gesto exagerado. – Estamos todos felizes com o nosso sucesso!

— Neste planeta aborrecido existem lugares onde possamos beber um copo? – quis saber o corelliano

— A vossa guia não vos apresentou esses lugares, logo à partida? Uma falha imperdoável!

M’mba começou a murmurar. Ao deitar uma breve olhadela a Threepio Luke compreendeu que era outra prece. Teria pressentido algum perigo? A atmosfera continuava prazenteira e ligeira, como se fossem todos velhos conhecidos. Mas havia ali uma insinuação, uma pequena sombra não totalmente visível…

— E outra falha imperdoável é não conhecer os vossos nomes – disparou Becka de repente. – O meu representante, aqui o Nezarthis… Ele disse que se chamava Nezarthis, não disse? Pois, ele contou-me que no primeiro encontro não houve uma apresentação formal entre todos e que os nomes ficaram por contar. Nem imaginam como me zanguei com ele! Então, não sabes como se chamam os nossos parceiros? Como conseguiste negociar alguma coisa, imbecil?! – Baixou o tom numa espécie de confidência para criar um clima ainda mais íntimo e amistoso. – É um imbecil, o Nezarthis… Absolutamente leal, mas imbecil. Não podemos censurá-lo, quando faz o que queremos, não concordas?

— Concordo, Becka!

O criminoso levantou as sobrancelhas, numa pergunta muda.

— Leno Starkiller – apresentou-se Han Solo com um sorriso simpático.

Becka achou o nome muito divertido.

— A sério? Tu és… o Leno Starkiller?

Han espalhou o sorriso que lhe iluminou o rosto por inteiro. Não se conseguia distinguir quem achava aquela situação mais divertida, se o corelliano, se o criminoso. Uma disputa de enganos e de sinceridades enviesadas. Becka gargalhou alto.

— Bem... Starkiller, vamos lá aos copos! – Olhou repentinamente para Luke. – E tu, companheiro? Terás também um nome sonante como o teu amigo?

Não se interessara pelos irmãos Mathyas. Já os conheceria, ou porque como eram irmãos, idênticos, relacionados, não constituíam uma possibilidade de ser quem ele procurava, um piloto rebelde famoso, solitário, que respondia por um nome que se relacionava com o céu e as estrelas. Um amargor instalou-se-lhe na boca do estômago e Luke respondeu:

— Lars… Owen Lars.

O sorriso de Becka esmoreceu, mas não desapareceu completamente.

— É um prazer conhecer-te como deve de ser, Lars. O que fazias antes desta trapalhada da guerra contra o Império?

— Estava… em Tatooine. Tinha uma quinta de humidade.

Era verdade e se a informação fosse investigada bateria certo com os registos do planeta, se é que existiam alguns. Tatooine sempre lhe pareceu um lugar em que tudo acontecia por iniciativa própria e sem qualquer regulamentação por parte de uma entidade superior que simbolizasse um governo ou uma organização estatal. O nome do seu tio correspondia, de facto, a um quinteiro de Tatooine.

— O wookie veio contigo, Starkiller?

— Não, com o meu amigo… Owen.

Também descartara os androides como insignificantes. O predador já tinha conseguido a sua presa. Era inquietante, mas Luke deixou Han prosseguir na farsa que ele captou desde o início. Starkiller era extraordinariamente semelhante a Skywalker. A ideia que o bandido faria do homem que deveria capturar colara-se à personalidade exibida e extravagante do contrabandista corelliano. Um herói da Aliança só podia ser destemido e vaidoso, desabrido e inabalável. Becka avançou espalhafatoso para a saída da sala de reuniões encostado a Han, com os irmãos Mathyas no seu encalço. Até Nezarthis estava desconfiado daquela súbita cumplicidade.

— Sigam-me, amigos. Sigam-me. Vamos lá conhecer os lugares onde podemos divertir-nos neste mundo tão ordenado e perfeito!

Luke impediu M’mba de avançar agarrando-lhe no braço magro. A criatura estremeceu, inquieta com aquele gesto de uma intimidade à qual não estaria habituada. Sussurrou-lhe de um modo discreto:

— Não nos acompanhes. – Enfiou-lhe um intercomunicador na mão. – Vais vigiar o que acontece na retaguarda. Com isso poderás comunicar diretamente com Artoo se descobrires problemas… Confio em ti. E eu fico com isso, como estava previamente combinado.

Agarrou no holopad e entregou-o a Threepio. Os outros iam mais adiantados, incluindo os neimoidianos que, a cochichar entre si, seguiam o grupo com relutância e Luke falou mais à vontade:

— Leva o holopad para a nossa nave e espera no espaçoporto. Não acredito que nos vamos demorar muito nesta festa. O wookie vai contigo para ir preparando a nave que deve estar pronta para descolar assim que aparecermos. Creio que vamos precisar de descolar com alguma urgência…

Chewbacca rosnou desagradado. Sabia que abandonar Han era arriscado e que estavam a envolver-se numa situação perigosa. Mais uma.

— Mas menino Lu…

Luke escancarou os olhos num aviso.

— Menino Lars… Owen – balbuciou o androide confuso. – Menino, vai correr tudo bem? E o Artoo?

— O Artoo fica comigo. Claro que vai correr tudo bem, Threepio – assegurou Luke.

O amargor persistia.

Era sinal de que não ia nada correr tudo bem.


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Notas finais do capítulo

Han está com um pressentimento e começa a desconfiar de toda a gente, especialmente dos irmãos Mathyas. Terá razões para isso?
Finalmente ficaram frente a frente com Jeiz Becka e Han voltou a tomar a iniciativa de puxar para si todas as atenções, inventando nomes que despistem o senhor do crime.
Starkiller era o apelido que George Lucas tinha criado para o personagem principal da sua Space Opera, que ficaria como Luke Starkiller. Mas como achou ligeiramente agressivo, mudou para Skywalker - Mark Hamill recordou recentemente que gravaram grande parte das cenas de Star Wars com esse nome e que não gostou quando mudaram para Skywalker (um nome menos sonante).
Mais tarde, Starkiller voltou a ser usado, desta feita para designar a base assassina da Primeira Ordem em O Despertar da Força /The Force Awakens.

O momento parece ser descontraído, mas a tensão paira no ar na companhia de Becka. O que irá acontecer a seguir?

Próximo capítulo:
Jogo de espelhos.