Sombra de Lobo escrita por Sarah


Capítulo 4
Capítulo 04




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/744849/chapter/4

Às vezes Remus anunciava que ia sair por um tempo — ou simplesmente deixava de acompanhá-lo no jantar — e no dia seguinte surgia cheirando a especiarias. Em alguns momentos ele parecia apenas mortalmente cansado, em outros como se tivesse entrado em uma briga de bar com um gigante durante a noite.

Sirius chegara a ligar para James e perguntar se Remus podia estar metido em alguma coisa perigosa, mas James apenas repetira o discurso dele — cuide dos seus próprios assuntos, está tudo bem. Nas duas oportunidades em que Sirius tinha tentado pressionar Remus sobre aquilo, fora bastante óbvio que ele iria deixá-lo antes de dizer alguma coisa, e, céus, Sirius estava começando a gostar das músicas da Madonna.

Naquele instante, enquanto falava com Olho-Tonto Moody no telefone, Sirius lançava olhares de esguelha para Remus, tentando avaliá-lo. Fazia dois dias desde que ele tinha aparecido para o café da manhã com um corte em seu braço esquerdo, recusando-se a falar sobre o machucado, mas naquela altura suas olheiras estavam mais brandas, havia um pouco mais de cor nas suas faces, e o corte estava curando bem...

— Alguma coisa? — Remus perguntou assim que Sirius encerrou a chamada. 

— Moody falou de três casos suspeitos a menos de um dia de viagem.

— Escolha o trabalho em que exista a possibilidade de alguém nos pagar.

Sirius arqueou uma sobrancelha para isso, mas se dirigiu para uma cidade chamada Hamtown, onde, aparentemente, uma velha senhora estava dizendo que uma alma penada assombrava os jardins da sua propriedade nas noites de sexta-feira. A hipótese mais plausível era que fosse algum rapaz se esgueirando para se encontrar com uma das empregadas, porém Remus ainda parecia um pouco pálido, e algo fácil de vez em quando não era ruim. Além do mais, dois provavelmente conseguiriam um pagamento da senhora caso se livrassem do fantasma.

Eles alcançaram a cidade no começo da noite, apenas um fio de luz ainda visível no horizonte. Sirius parou perto de um bar e perguntou para um sujeito meio bêbado sobre pousadas baratas, se orientando pelas indicações em seguida, até parar em frente a estabelecimento de estrutura simples, mas bem pintado e com aparência de limpo. Ele puxou o freio de mão ao alcançar o estacionamento. Estava pegando sua bolsa de roupas quando reparou que Remus não tinha se movido.

— O quê?

— Vou dormir no carro.

— Nem pensar — Sirius respondeu antes mesmo de pensar nas palavras. — Lupin, está fazendo menos de cinco graus de madrugada.

— Não é nada com que eu não tenha lidado antes. — De repente, a palidez deu lugar a um delicado tom vermelho sobre suas bochechas.

Sirius tornou a entrar no banco do motorista, fechando a porta atrás de si mesmo.

— Qual o problema? — perguntou, voltando-se totalmente para Remus.

Remus hesitou, relanceando o olhar para ele, e então desviando os olhos para o painel, uma e outra vez. Finalmente, as palavras brotaram da sua garganta:

— Não tenho dinheiro para mais uma hospedagem. De verdade, Sirius, eu já dormi em carros antes, e em lugares piores, isso não vai me fazer mal.

— Se você acha que esse conhecimento vai me fazer mais confortável, está enganado. Vamos, Remus, eu posso arcar com isso.

— Não posso aceitar — ele falou, a vermelhidão agora escorrendo para o seu pescoço e peito. Sirius reprimiu a vontade de revirar os olhos.

Quando abriu a boca novamente, foi meio instintivo, como quando ele simplesmente sabia para onde apontar uma arma de sal, mesmo quando o fantasma em questão estava invisível, apenas pela forma como os pelos da sua nuca se arrepiavam.

— Podemos dividir um quarto. Eu não vou conseguir dormir se você ficar aqui fora, Remus. De qualquer forma, passamos a maior parte do tempo em uma única habitação.

Era verdade. Quando estavam no meio de uma caçada,  Sirius costumava passar metade da noite no quarto de Remus, sentado à mesa, lendo livros e jornais locais — e ocasionalmente os livros negros que ele tinha roubado da mãe antes de fugir de casa —, enquanto o outro pesquisava formas de matar ankous, jinns e ortros em seu notebook.

Durante o tempo em que ele caçara com James, às vezes os dois também dividiam quartos. Naquelas ocasiões Sirius se sentia terrivelmente consciente da presença de James, porém eles tinham compartilhado o mesmo dormitório no internato durante uma boa parte da infância e toda adolescência, então a coisa também era natural. Com Remus, a oferta parecia uma ousadia.

Lupin levou todo um minuto ponderando, até que assentiu sem nenhuma palavra. Era óbvio que ele estava envergonhado, mas Sirius não soube o que dizer para que ele não se sentisse dessa forma, então não disse nada.

Ao falar com o recepcionista, Sirius pediu um quarto duplo. Ele pegou a cama da direta. Havia um crucifixo de bonito sobre a cabeceira de cada leito. Sirius cutucou distraidamente aquele que ficava em cima da sua cama, se perguntando se era só um pedaço de madeira com um boneco ou se estava abençoado e poderia de fato oferecer alguma proteção. 

— Vou tomar um banho — Remus anunciou depois de depositar suas duas bolsas na cama da esquerda, em um tom de voz mais baixo que o normal e ainda sem encará-lo direito.

O outro passou por ele com uma toalha e xampu nas mãos, porém Sirius o deteve.

— Remus. — Ele parou na porta do banheiro como uma corsa assustada pela luz de um farol, quase da mesma forma como James de vez em quando costumava agir. — Quando eu fugi de casa, meu tio Alphard ficou muito orgulhoso de mim. Ele também detestava essa família. Ele me deixou uma herança boa o bastante para eu viver uma vida tranquila. Eu não ganhei esse dinheiro com meu esforço, e meu tio gostaria do que estamos fazendo aqui, então está tudo bem, de verdade.

Muito lentamente, Remus concordou com um aceno, entrando no banheiro assim que ficou claro que Sirius não diria mais nada. Ao ver-se sozinho, Sirius suspirou, retornando à sua inspeção pelo quarto da pousada. Não havia muito para ver, e ele logo se deteve nas bolsas de Remus.

Ele nunca ousaria mexer na mala de roupas e peças pessoais, mas a bolsa de instrumento de trabalho — de couro velho e desgastado, mas ainda firme, com as iniciais RJL gravadas numa letra dourada que permanecia teimosamente brilhante — estava entreaberta. Ouvindo a água escorrer pelos canos e cair no chuveiro, Sirius analisou um livro sobre criaturas mágicas, um especificamente sobre lobisomens e um acerca de encantamentos advindos de plantas. Não foi difícil constatar que entre os pertences não existia nenhum estojo com balas e lâminas de prata, e aquilo era algo que todo caçador precisava.

Sirius se perguntou se Remus havia vendido suas balas de prata por precisar de dinheiro em algum momento antes de James casar e juntar os dois no processo, mas, considerando o humor do outro, aquele não era um questionamento que ele estivesse prestes a fazer.

.

.

.

Sirius e Remus fizeram sua pesquisa, sondando ao redor, lendo os jornais circulares, especialmente aqueles mais sensacionalistas, antes de finalmente falarem com a dona da propriedade supostamente assombrada.

Ao pararem na frente da casa, Sirius assoviou — o lugar era um palacete, do tipo que estaria adornado com uma mistura duvidosa de lustres de cristal, cabeças de alces empalhadas e enfeites de porcelana chinesa.

— Minha mãe adoraria esse lugar.

O imóvel ficava na beirada da cidade e se abria para um terreno enorme que um dia devia ter sido cultivado, mas que reassumia lentamente sua natureza selvagem. Eles podiam ver o começo de um bosque à direita, e não demoraria até as árvores retomarem toda aquela área. Por sua vez, a casa em si estava bem cuidada: o vidro nas janelas brilhava, refletindo a luz do sol.

— Ela não deve ser do tipo que vai regatear o pagamento.

— Espero que não. Esse lugar é enorme. Devíamos estar lidando com um quintal, não com uma fazenda — Sirius falou e tocou a companhia.

A senhora que atendeu era gorda e alta — esse último fato acentuado por ela estar usando um chapéu que somava uns vinte centímetros à sua altura —, com unhas grandes como garras, pintadas com um esmalte cinzento que estava descascando. Em meio a seu falatório interminável, os dois ficaram sabendo que ela era filha de uma lady, mas havia perdido o título ao se casar com um plebeu dono de alguns poços de petróleo na África do Sul. O título por uma boa fortuna havia sido um bom negócio, e, de fato, ela não se importou em oferecer uma quantia considerável para que eles examinassem sua propriedade e se livrassem da figura de fantasmagórica que ela costumava ver andando por ali durante as sextas-feiras.

— As pessoas geralmente não concordam com o pagamento tão fácil quando estão mentindo e só querem chamar a atenção — Remus comentou quando deixaram a mulher. — Ela está vendo alguma coisa nos jardins, ou realmente acredita nisso.

— Ainda acho mais provável ser alguém se esgueirando. No máximo, um fantasma desgarrado.

Ao voltarem para a pousada, Sirius encheu a bolsa que costumava levar à tiracolo nas caçadas com vidros de água benta, carregou uma pistola com balas de sal, outra com balas de prata e uma última com balas normais. Remus espelhou seus movimentos, mas dispensou as balas de prata.

— Se você precisa de munição... — Sirius começou, no entanto Remus o cortou com um aceno firme.

— Tenho material suficiente aqui.

Sirius achou melhor não discutir. Se a coisa fosse um fantasma, e sal e água benta certamente seriam o bastante para isso.

A noite já era densa quando eles reencontraram a senhora e ela os conduziu até os fundos da casa, onde costumava ver a assombração.

— Sinto muito, meninos, mas não vou passar daqui — ela disse, parada na soleira da porta que se abria para os jardins dos fundos. — O fantasma costuma ficar por perto, uns quarenta metros, mas às vezes eu vejo seu brilho na campina, ou um ponto prateado ao redor do bosque, e sei que é a coisa.

A senhora tinha as mãos firmemente colocadas sob as axilas, e Sirius pôde ver que os pelos do braço dela estavam arrepiados.

Ela fechou a porta atrás dois. Ao ouvir o baque, Sirius sentiu uma sensação agourenta pousar em seu estômago, como um gole de água muito gelada em um dia muito quente. Remus também parecia tenso ao seu lado.

— O bosque é muito longe para essa coisa ser um fantasma ligado à casa — Lupin disse, a mão pousada sobre o bolso da jaqueta, onde Sirius sabia que ele tinha guardado uma das pistolas.

— Ele pode estar atrelado ao terreno.

Remus lhe lançou um olhar descrente: ambos estavam cientes de que que fantasmas geralmente não tinham territórios tão grandes. Sirius sentiu-se gelado e pensou que deveria ter vestido sua jaqueta — grande e de couro, que um dia tinha pertencido a James e ainda conservava um pouco do cheiro do desodorante que ele costumava usar.

Sirius e Remus andaram à esmo pela área mais perto da casa — que ainda era um pouco discernível como um jardim, apesar de já estar se tornando densa, pontuada com arbustos cheios de espinhos e árvores de crescimento rápido. Não viram nada estranho, mas o ar parecia cada vez mais pesado, quase pegajoso ao descer até os pulmões. Se respirasse pela boca Sirius achou que poderia sentir seu gosto, e não seria agradável. Trincou os dentes.

Em algum momento Remus falou que ouvira um ruído. Os dois seguiram na direção que ele apontou, mas afinal tudo o que encontraram era uma fonte. Uma carpa esculpida em pedra cuspia água para cima. Remus suspirou e se inclinou, apoiando-se na estrutura.

— Vamos amanhecer aqui sem ter coberto nem metade do lugar. Será mais produtivo se nos separarmos. 

Ele estava certo, mas isso não impediu que Sirius sentisse um estremecimento passar por seu corpo. Rezou para que Remus não tivesse percebido.

— Você tem água benta? — Lupin anuiu. — Ótimo. Se for um fantasma, não hesite em atirar, se for uma pessoa, e ele tentar alguma coisa contra você, também não.

— Eu sei me cuidar, Sirius. — O tom de Remus foi exasperado, mas ele pousou a mão em seu ombro, para em seguida deslizar os dedos por todo seu braço, até que a palma direita dele encontrou a sua, e Remus deu um ligeiro aperto.

Dessa vez o arrepio que o tomou não teve nada a ver com nenhuma assombração.

— Tenha cuidado — Sirius sussurrou e se afastou.

Os dois andaram em linha reta em direções opostas até que Sirius se embrenhou mais na vegetação semisselvagem onde a área deixava de poder ser considerada como um jardim, abrindo-se para a campina e o bosque adiante. Nada se mexeu nos arredores — a não ser que ele contasse uma nuvem de insetos e um rato do mato—, mas havia uma pressão constante em sua nuca e estremecimentos que vinham de quando em quando, mesmo que não houvesse nenhuma brisa gelada soprando ao redor. Estando sozinho o lugar parecia ainda maior, repleto de arbustos que, em sua maioria, alcançavam a altura do seu queixo. Altos o bastante para restringir seus movimentos, mas que ainda permitiam visão suficiente para que Sirius tivesse uma sensação de desolação.

Ele passou por uma figueira seca e fez o sinal da cruz inconscientemente: havia uma coisa meio bestial na forma como os galhos retorcidos se estendiam em direção ao céu. Um veio de água contornava a árvore, formando um pequeno olho d’água antes de correr para se juntar a algum riacho, e Sirius pensou que uma criatura crua e disforme poderia usar o lugar para beber.

Estava considerando fazer uma vigília de alguns minutos no local quando o barulho de tiros soou.

De repente, Sirius era todo feito de instintos. Ele se virou e correu em direção ao som, esquivando-se de árvores e de plantas. Um espinho bateu no seu pescoço, ardendo e tirando sangue. Ele não havia planejado se embrenhar tanto no terreno, mas o caminho de volta pareceu não ter fim. Quando finalmente a vegetação baixou, ele encontrou um emaranhado de folhas que um dia devia ter composto um labirinto feito de cercas vivas, mas que agora simplesmente crescia ao seu bel prazer. Outro tiro ecoou no ar, e depois um som de grito. Sirius nem mesmo ofegou, apenas foi mais rápido. Em algum ponto ele tropeçou contra uma raiz, porém mal registrou o tombo e então estava de pé novamente, correndo. Alguma coisa se chocou contra o seu ombro e a dor estalou através dele. Seu coração estava batendo na garganta.

Céus, ele já tinha percorrido florestas antes, mas aquele jardim parecia mais escuro do que qualquer lugar em que Sirius já houvesse estado. A casa mal era discernível na noite, e nenhuma lâmpada estava acesa nela. Ele tentou não pensar no que encontraria quando parasse de correr. Guinchos pingaram no ar: um som obviamente inumano.

Sirius derrapou sobre folhas mortas ao contornar alguns arbustos, e, então, finalmente encontrou Remus. Ele estava agachado no chão, a arma engatilhada e apontada para uma criatura que se contorcia três metros adiante. Ali havia luz, a criatura iluminava toda a área ao redor com tons prateados. Remus atirou de novo, acertando a besta com uma bala de sal.

A única coisa que a mantinha no lugar era um pentagrama desenhado na terra, Sirius percebeu. Remus devia ter armado uma armadilha ao perceber a criatura ao seu redor. Outros símbolos de proteção estavam desenhados em volta de Remus, e ele fincara uma cruz de ferro à sua frente. As balas de sal machucavam, mas obviamente eram insuficientes. Os próprios símbolos de proteção pareciam mais irritar a coisa do que debilitá-la. Quando Sirius apareceu, o bicho se voltou para ele.

Remus atirou mais uma vez. O ser deixou escapar um som lamuriento e a luminosidade que ela emitia se apagou. O mundo tornou-se negro de novo, mas Sirius ainda podia ver a criatura. Era como se ela fosse feita de trevas, sua figura flutuando na escuridão. Ainda estava de pé e se mexendo.

— Bala de prata, Black! — Remus gritou à sua esquerda.

Sirius não precisou de um novo aviso. Antes que as palavras de Remus tivessem se dissipado na noite, sua pistola estava nas mãos e ele atirou. A coisa ganiu, encolhendo-se sobre si mesma. O som fez Sirius congelar de medo — deuses, ele já tinha lidado com espíritos, demônios e maldições, mas aquele som abafou os seus sentidos, deixando apenas o pavor. Por sua vez, Remus se aproximou da criatura, o rosto impassível, como se o ruído não o tivesse abalado em absoluto. O crucifixo de ferro estava nas mãos dele. Sirius teve que conter o impulso se jogar para frente, afastando Remus para longe do bicho, quando ele levou a mão para dentro do pentagrama que continha a criatura, pressionando a cruz sobre a sua cabeça.

Ouve um chiado como se a carne estivesse queimando, e Sirius sentiu cheiro de peixe podre. A besta lançou um último gemido, caindo com um baque que estremeceu o chão, mesmo que, racionalmente fosse pequena demais para causar tanto impacto.

Sirius sentiu-se vagar em direção a Remus até tocá-lo, certificando-se de que ele estava mesmo ali, quente e real. Remus fez um movimento como se pretendesse alcançar sua mão, mas, então, o olhar de Sirius fixou-se no ser caído além deles e ele deu um passo atrás.

A criatura era um pesadelo. Negra como piche; um par de chifres, curvos e afiados, crescia através da sua cabeça de cabra. Os olhos estavam abertos e eram o único ponto de cor em seu corpo, amarelos, as pupilas horizontais destacadas sobre os globos oculares. Asas retorcidas brotavam de seus ombros, coriáceas como as de um morcego ou dragão. Seus cascos eram fendidos e a cauda era longa e bifurcada. A língua não estava à mostra, mas Sirius apostaria qualquer coisa no mundo que ela também se dividia em duas.

Ele tinha visto um ser parecido com aquele uma vez, no sótão da sua casa quando tinha dez anos, e a imagem acompanhara seus sonhos por anos depois disso.

— Sirius? — Remus chamou, obviamente preocupado, mas Sirius não encontrou a própria voz para responder. — Está tudo bem. Vou queimar isso, você espera.

De fato, Remus assumiu o trabalho dali em diante, jogando óleos sagrados — também usados em extrema-unção — sobre o bicho e tacando fogo em seguida. Ele queimou com cheiro de enxofre e medo.

O protocolo dizia que eles deviam enterrar as cinzas, no entanto em alguns minutos sobrou muito pouco que pudesse ser enterrado, então Remus apenas espalhou os restos oleosos pela terra.

Ao voltarem para a casa e anunciarem que o serviço estava feito, a senhora pareceu extremamente satisfeita. Era possível sentir o cheiro de enxofre dali: ela não tinha motivos para duvidar deles. Uma bolsa de dinheiro foi oferecida, mas Sirius já estava na soleira da porta, e Remus conjurou alguma desculpa para a mulher, dizendo que, afinal, o serviço que eles faziam não podia ser mensurado, e não devia ser cobrado. Remus sequer tocou no dinheiro e ambos ignoraram quando ela estendeu as mãos — unhas como garras, com esmaltes descascando — para um cumprimento final.

Ao chegarem no carro, Remus assumiu o assento do motorista e colocou “Womanizer” para tocar, logo depois de ligar o motor e começar a se afastar dali. 

— O que você acha que aquela mulher fez de tão terrível que atraiu o diabo para a casa dela?

— Não quero saber. — Foi a única resposta que Sirius conseguiu pensar para aquilo.

.

.

.

Ao voltarem para o hotel, Sirius pensou em James. Ele teria reconhecido aquela criatura como parte dos seus pesadelos e entenderia sua angustia.

Remus parecia preocupado, porém Sirius se sentia pouco tentado a começar a explicar alguma coisa para ele. Por um momento considerou ligar para James, no entanto era mais de uma da manhã. Ele acordaria James apenas para lançá-lo de volta na pior parte da vida que o outro tinha feito questão de deixar para trás. Em vez disso, Sirius tomou um banho, jogando suas roupas com cheiro de enxofre e peixe podre direto no lixo, vestiu o pijama e enterrou-se debaixo de três camadas de coberta.

O sono veio rapidamente, mas o pesadelo o alcançou com a mesma facilidade.

Acordou com Remus sacudindo-o pelos ombros. 

— Sirius? Está tudo bem, eu estou aqui. — A voz de Remus era suave, mas Sirius se sobressaltou mesmo assim, colocando-se sentado tão rápido que quase bateu a cabeça na cabeça de Remus. Seu corpo estava molhado com suor. Sirius abaixou o rosto, correndo as mãos pela face e pelo cabelo, sentindo os fios úmidos.  — Você estava se debatendo... — Remus falou muito baixinho, como uma desculpa por tê-lo acordado. Se intrometido.

— Eu... Merda — Sirius murmurou, sem saber realmente o que dizer.

— Todo caçador já encontrou alguma coisa que se infiltrou em seus pesadelos.

Sirius olhou para ele, sentindo-se ao mesmo tempo gelado e envergonhado.

— Você não pareceu ter medo daquele bicho.

— Eu tive medo, é só que já me deparei com outra coisa que me assustou mais.

— Mais do que o diabo?

Tinham fiando a manifestação daquela criatura, mas não era o tipo de ser que se matava de verdade. O ar no jardim havia continuado tão rançoso quanto antes deles queimarem o bicho.

Remus encolheu os ombros. Lentamente, como se tivesse medo que Sirius se afastasse, ele tocou seu joelho num gesto confortador. Como se o toque tivesse desatado algum nó dentro dele, Sirius viu-se dizendo:

— Não foi a primeira vez que eu vi uma criatura como aquela. A primeira vez foi no porão da minha casa, e ela estava com a cabeça apoiada no colo da minha mãe. — Sirius fez uma pausa, respirando muito alto e muito rápido. — Era uma porra de um lugar.

Sirius esperou, mas Remus não disse nada. Em vez disso o toque dele sobre seu joelho tornou-se mais apertado, até que ele sacudiu a cabeça e se levantou. Assistiu enquanto ele caçava alguma coisa em meio aos seus pertences. Um minuto depois Remus retornou com uma garrafa nas mãos e um copo na outra.

A mistura dentro do vidro era verde amarelada. Obviamente uma produção caseira: álcool misturado com uma porção de ervas. Lupin derramou um dedo daquilo no copo. O ar se encheu com o odor ardente de planta e bebida forte.

— Vai fazer bem para você. — Remus estendeu a bebida.

— Se você acha que apenas esse tanto vai ajudar em alguma coisa...

O comentário fez Remus dar um sorriso de canto.

— Apenas beba, Black — ele disse com malícia na voz.

Sirius tomou um gole, e foi como beber fogo vivo. A careta foi inevitável, mas ao menos ele não deu a Remus o prazer de vê-lo engasgar. Seus braços e pernas estavam muito leves quando ele terminou de beber a mistura alcóolica. Remus retirou o copo da sua mão sem esforço.

— O que tem nisso aí?

— Você vomitaria se soubesse. — Ohh, Sirius não duvidava.

Como se fosse a coisa mais natural do mundo, Remus pegou o notebook e abriu espaço na sua cama, sentando-se aos pés dela. Sirius observou, meio zonzo, como ele abriu um site sobre vampiros, a luz do computador lançando sombras em seu rosto. 

— Durma, Sirius. — E, de repente, Sirius percebeu que não poderia deixar de fazer isso mesmo se quisesse. A bebida parecia ter encharcado seu cérebro e tornado suas pálpebras tão pesadas quanto seus membros sentiam-se leves.

Sirius não teve consciência de voltar a deitar-se para dormir, mas sua mente registrou o calor de Remus.

Quando acordou o sol ia alto. Uma nesga de luz atravessava a cortina do quarto e batia diretamente no rosto de Remus, fazendo suas sardas se destacarem com força, bem como a cicatriz delicada que arranhava sua bochecha. Remus ainda estava sentado na beirada da sua cama — adormecido, a cabeça jogada para trás — e Sirius tinha as pernas passadas sobre as pernas dele.

        Sirius inspirou, permitindo-se ficar naquela posição por mais alguns minutos, sentindo a presença de Remus e a quentura do corpo dele junto do seu, e se deu conta que não desejava nenhuma outra pessoa ali, nem mesmo James.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Ninguém me convence que o Remus não é fã da Madonna. u.u



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Sombra de Lobo" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.