Dê um Rolê escrita por Lady Babel


Capítulo 1
Complicado e ao mesmo tempo diferente


Notas iniciais do capítulo

Olá, queridxs! Uma twoshot ou threeshot de Elica (ainda devo decidir o quantitativo de capítulos restante). Basicamente, minha perspectiva sobre como poderia ter rolado a visita de Lica à casa de Ellen. Carreguei mais as tintas em alguns temas e reforcei algumas comparações, baseada na minha visão pessoal das personagens. Taí, aproveitem! Beijos.



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As botas caras — gastas do modo mais blasé possível — pisaram no chão da Rua do Farol, que desembocava numa subida morro acima. Era para lá que rumavam: Heloísa Gutierrez enfim chegara à Brasilândia. Meia hora da estação de Vila Mariana à Barra Funda; em seguida, uma perua lotada de gente desesperada pelo retorno à humilde residência. Metrô, ônibus, nenhum rastro de motorista e o enigmático Bilhete Único a orquestrar todas as conexões. Quase um estudo de antropologia urbana, pensou Lica, e ela pensou tão teoricamente pois, no afã de impressionar Aquele-Que-Não-Deve-Ser-Nomeado, até lera o livro sobre os Outsiders sempre mencionado por ele.

Por um breve e tresloucado instante, pensou em comentar exatamente isso a Ellen, a título de conhecimento, mas logo desistiu. Ela vai achar que tô falando da quebrada dela como se fosse um zoológico. Melhor que deixasse para lá. O ritmo da aproximação com Ellen estava bom, muito gostoso na verdade, e ela não pretendia estragar mais uma relação saudável em sua vida. Ademais, essa mesma amizade já começara a se transformar de um jeito bem particular devido à condução descarada que Lica emprestava a tudo em que se metia.

Pela Rua Vitória Régia subiam uma ladeira asfaltada de buracos. A paisagem era um cordão de casas emendadas umas nas outras. Paredes pintadas de pichações, garagens com bandeiras do Brasil, telhados finos como folhas, fios emaranhados nos postes. Nas bordas das calçadas se viam muitas vendinhas de cacarecos, padarias com abelhas a pousar nos pratos de pão doce, lojas de material de construção e bares no maior estilo pé sujo. Nos entremeios disso tudo andava a maré de negros e negras que não havia e nunca houvera nas terras distantes de Higienópolis. Então era dali que eles vinham enquanto ninguém estava olhando!

Pelas escadas estreitas, encurraladas entremuros, gente subia e descia com pressa, gente subia e descia com carregamento, motos subiam e desciam sem trégua, era um vai e vem e leva e traz que dava tontura. Lica passava despercebida para alguns, enquanto outros a examinavam sem qualquer discrição. Ali, ela era o zoológico humano. Ela era a branquinha, a burguesinha, como tudo em sua aparência dava a entender.

Sentiu medo. Lembrou-se das matérias que já assistira em sua SmartTV de 50 polegadas; as perseguições policiais em high definition e os tiroteios em Dolby 5.1 exibidos diretamente pela Rede Globo. Os fuzis nas mãos dos traficantes do filme Cidade de Deus. Quem seria o primeiro a assaltá-la, a sequestrá-la, a —

“Lica, cê tá enjoada de branca agora,” acompanhou uma risadinha. Lica olhou para a amiga e naquela cara havia preocupação, vá lá, mas a verdade era que nunca ficara tão gritante que naquela terra Ellen era personagem principal. Um lugar em que a excluída não era ela. “Relaxa, o povo aqui é de boas, juro que você sai viva amanhã.”

Tal afirmativa confortou-a por frações de segundo, até Lica notar que, a depender dos sujeitos que a encaravam sem o menor pudor a poucos metros de distância, ela estaria nua, pelada, despida — todos os ângulos de um striptease — em plena Zona Norte. Empoleirados nos degraus da escada bem em frente às meninas estavam uns caras sem camisa ostentando grossas correntes douradas no pescoço. Fumavam um tipo bem suspeito de cigarro e soltavam baforadas na reta de Lica.

“Aqueles caras estão me olhando, amiga,” sussurrou toda tensa para Ellen, a boca contorcida de maneira quase cômica na direção da garota.

Ellen fuçou de esgueira e averiguou de quem se tratava. Bufou. Girou os olhos.

“Conheço esses babacas. Ficam fumando baseado o dia inteiro e acham que são os donos do morro. Já me cantaram também.”

Um deles agora lambia os dentes em um convite muito visível. Seu colega simulava movimentos pélvicos.

Ellen puxou a amiga pela borda da camisa de marca — naquelas bandas, a única marca que Lica tinha. De resto, era quase nada.

“E você, o que fez?” A urgência mal se escondia por trás da pergunta. Urgência e uma pontada de desespero.

“Como você reage a macho escroto te assediando lá no asfalto?” Ellen perguntou enquanto levava Lica para longe da cena.

“Hã… Ignoro, faço a egípcia e às vezes mando tomar no cu?”

Ao final da frase, resolutiva por si só, já se desprendia um riso legal entre as duas.

“Viu, nosso guia de sobrevivência na Brasilândia é o mesmo,” disse Ellen quando elas enfim pararam defronte a outra escada amassada entre casas. A garota tinha toda pose de tutora da periferia. Cara a cara. A mão antes agarrada ao tecido da camisa fora se pegar à própria mão de Lica em um gesto de sororidade.

“Dá pra subir por aqui. Fica mais longe, mas ainda rola. Ah!” De súbito relembrou algo; Lica achou um charme aquela expressão de surpresa, tanto que observou-a com um toque de malícia, só um toque. “Preciso te mostrar uma lanchonete que abriu ali perto. Vende um hambúrguer que só!”

Tagarelava com uma animação que, à distância, não aparentava estar nas condições normais de temperatura e pressão. Lica foi novamente arrancada do ponto onde parara, permitindo que a amiga lhe arrastasse degrau por degrau, inserindo-a na rede fina de ruelas da favela, mergulhando-a de cabeça no fluxo, no lucro daquele lugar. Deixava-se ser movimentada pela mão de um lado para o outro com muito gosto, obrigada, de nada. O pavor de antes já sumia na memória e a guia era mais que qualificada.

Ellen não parecia bem a mesma criatura que rodava ensimesmada pela Vila Mariana. Havia todo um furor explodindo sob a superfície, um escarcéu que dava sinais de fumaça pelas ações: o andar que corria frouxo na medida, a postura que dissolvia o peso da mochila — agora carregada na mão e não mais nas costas —, a voz que recitava o nome de cada estabelecimento, cada vizinho, cada beco. Lica simplesmente não conseguia parar de olhar: que garota era aquela que entre os seus se rebentava, tão mais própria quanto mais longe do Centro — branco, classe média — da cidade cinza?

Até então, passar a tarde com a amiga lhe saía melhor do que poderia ter imaginado.

A próxima surpresa foi o custo-benefício do tal hambúrguer: nove reais o exemplar com calabresa, bacon e molho picante. Mesmo Lica, que não tinha noção de preços por nunca ter pago as coisas do próprio bolso, percebeu que se tratava de uma oferta e tanto. Ensaiou sugerir que ambos os lanches ficassem por sua conta, afinal, não era ela a privilegiada? Apesar disso, sem demora entreviu que Ellen não a perdoaria por tal oferta.

Em dez minutos de espera na fila espremida, três pessoas pararam para falar com Ellen. Os comerciantes, os clientes, a gente inteira sabia seu nome, perguntava pelo resto da família, questionava em qual ano estava na escola e quando entraria na faculdade. Essas indagações acadêmicas ela respondeu em piloto automático, como que não quisesse pensar a respeito. Lica sabia o porquê.

Não demorou até que, iniciado o tempo de espera pela entrega dos pedidos, outro conhecido acenasse para Ellen e lhe oferecesse uma cadeira à mesa com logotipo da Antártica no centro da calçada.

Decerto, não existia tal coisa de anonimato na favela. Essa visita renderia um livro, Lica repetiu consigo. Bóris adoraria debater…

Bóris. Porra. Deu até um embrulho no estômago; esse nome, o tal Complexo de Édipo e a história vergonhosa que os acompanhava... Too much.

“Quero fumar,” disparou enquanto atirava a mochila no colo da amiga incauta, cuja resposta primeira foi um franzir de sobrancelhas.

“Qual é o pro—”

“Onde eu compro?”

Ellen logo se recuperou do corte rápido e girou os olhos. “Tem uma padaria logo ali.” Não se deu ao trabalho de apontar. “Mas aqui só vende cigarro ralé demais pro seu bico de madame.”

Dito e feito: Lica retornou com um Hollywood azul devidamente aceso. Empoeirado, gosto ácido, mas de qualquer modo uma necessidade. Necessidade? De fato. Nem pensar em portar-se como gente sem o anteparo entre os dedos, sem a fumaça rasgando a garganta e correndo pelos pulmões. Naquele momento — e apenas nele, jurava — poderia ser um pouco mimada. E dramática!

Ellen nem permitiu muita aproximação e já foi logo metendo a mochila nas mãos da garota, como que dissesse “Eu não sou seu cabide não, ô babaca!”. A ponta do cigarro esbarrou no tecido hiperfaturado da mochila (outra marca precária de Lica), deixando um buraquinho no ponto de encontro. Antes que qualquer “Puta que pariu” pudesse ser liberto em protesto, Ellen já se levantara na velocidade da luz e encontrara abrigo dentro da lanchonete, em franca fuga do vapor barato nada hollywoodiano. Não era minimamente obrigada a tolerar o vício de terceiros. Ou seria o prazer — alheio e o seu próprio — que a bagunçava?

Quanto a Lica, ecoava-lhe uma frase: oops, I did it again. Talvez a vergonha deveria ser o afeto por consequência, mas estava afetada demais para se importar. Que fosse à merda a promessa que fizera a mãe de não se envolver mais com substâncias tóxicas e proibidas para menores. Dera na telha, e aí? Ela nunca criara problemas com o cheiro, o efeito era aprazível e a pose, ah, a pose… Verdadeira injeção de volúpia onde antes estagnava uma inércia chata e velha.

Por algum motivo, queria saber se Ellen a observava fumar. Deu uma viradinha na lateral, uma escorregadinha na cara, e de relance notou que a garota fazia o jogo do sério assistindo à televisão na parede, que exibia uma novela qualquer. Como se ela se importasse com essa besteira, pensou. Atirou a guimba no chão e deu uma pisada digna de matar baratas.

A voz da Ellen iniciou uma ronda do acontecimento. “Sabe, você podia pelo menos disfarçar essa cara de nojo,” disse. Estava encostada na parede e fitava diretamente, de cima para baixo, a colega de guerra. Foi só finalizar a frase que os lábios se comprimiram com a força de uma embalagem a vácuo. As narinas se alargavam a cada inspiração. Oficialmente, estava puta.

Evidente que Lica se coçava para espernear e cair em uma peleja desvairada. Decidiu, porém, apelar para o ridículo.

“Não dá pra esconder o nojo que eu sinto desse Hollywood, pode crer.”

“Não banca a desentendida, Lica. Se é pra ficar com essa má vontade, da próxima vez vai dar um rolê nos Jardins e não sobe o mor—”

“Ellen, não viaja! Eu vim aqui porque eu quero, tá?!” interrompeu-a. Desviou um pouco o olhar antes de continuar. “Eu só estava pensando em outra coisa. Não posso?”

A menina engoliu em seco. Logo foi chamada e retornou com os dois hambúrgueres numa sacola plástica. Caminharam sem conversar por mais uma subida; nada de Ellen fazer a vez de guia. Lica já não sabia o quanto de silêncio aguentaria, precisava preenchê-lo de alguma coisa, qualquer coisa, uma palavra. Talvez agora estivesse sim um tantinho constrangida pela cena que produzira. Ellen tinha uma expressão imperiosa de quem não cai, mas aquele queixo apertado dava notícias de uma tensão debaixo dos panos.

Passaram em frente a um muro, cujo espaço inteiro, tal qual uma tela em branco, era ocupado pelo grafite de uma mulher. Ela fora pintada como uma sobreposição de vários bloquinhos, várias casinhas coloridas  uma em cima da outra em baixo das outras, exatamente as muitas que compunham a Brasilândia.

Estacou para admirar a arte. Virou-se para Ellen, quem também parara, ainda que um pouco mais distante:

“Quem é ela?”

Ellen suspirou quase imperceptivelmente. “A Negra Li. Ela cresceu aqui.”

Lica sacou o celular da mochila.

“Vamos tirar uma foto com esse grafite,” pediu, convocou.

Segundos parada. Ellen deu um passo à frente e se posicionou ao alcance da câmera frontal do celular. Lica meio-abriu um sorriso. Ellen fez diferente.

A imagem foi postada no Instagram com a legenda “Manas na cidade”. Ellen espichou o pescoço para olhar a postagem e sorriu de cantinho. Tão na miudeza, no sapatinho, como diriam, que Lica se perguntou depois como diabos percebera tudo isso.


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Notas finais do capítulo

Título do capítulo retirado da música "Meninos e Meninas" do Legião Urbana. Reviews sempre bem-vindas! Até o próximo.



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