Crônicas de uma gordinha escrita por Roberta Dias


Capítulo 7
O primeiro beijo de uma gordinha


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura ♡



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Não é porque tenho a autoestima alta que estou sempre disposta a me arrumar ou parecer apresentável. Isso deve ser coisa de mulher, talvez: há dias em que se arrumar parece mais trabalhoso do que carregar quilos de cimento em uma obra. Para mim, hoje, colocar uma calça jeans parecia uma batalha desnecessária; nada de blusinhas com estampas bonitinhas... nada de mulherzinha. Vou para escola com uma calça e uma blusa de moletom e com essa cara de preguiça absoluta. Se quer saber, só não saí de pijama porque meu modo de invisibilidade seria drasticamente afetado. Sei disso porque saio frequentemente de pijama para ir a padaria e sempre atraío olhares que tentavam entender o por que de eu estar de pijama. 

 

Entrei no ônibus da escola me joguei no banco. Como eu queria minha cama de volta! Deixei meu celular em casa porque sabia que ficaria trocando mensagens com Rafael durante as aulas ao invés de prestar atenção na matéria. Na verdade, meu celular só servia para mensagens e joguinhos que me distraiam, além de ouvir músicas de vez em quando. Nada de redes sociais ou fotos. Odeio  tirar fotos e nunca tive uma rede social sequer; meu pai não gostava disso, era muito tradicional, por isso proibiu a mim e meu irmão de mexer nessas coisas. Nunca nos importamos, para falar a verdade... 

 

Ah, vocês provavelmente querem saber do Rafael. Ele bem legal, viu. Estávamos conversando há apenas um dia e o assunto não faltava entre nós. Eis o que sei sobre ele: tem 18 anos — não disse? —, adora livros e cursa literatura na mesma faculdade do meu irmão, é descendente de italianos, trabalha em uma loja no shopping, assim como eu adora animações e desenhos infantis, é vegetariano, gosta de filmes antigos e sua atriz favorita é a Jennifer Aniston, apesar de não gostar da série Friends. E se quer saber isso para mim já é um empecilho, porque eu adoro Friends. Rafael era muito engraçado e sincero, não era daquele tipo de cara que fingia gostar do que você dizia que gostava.

 

Quer saber se um cara é sincero? Diga que gosta de várias coisas e se ele concordar com tudo, dizer que gosta exatamente das mesmas coisas, saí que é furada. Ninguém concorda e gosta exatamente das mesmas coisas que você. Algumas, ok. Mas todas? Ele só está tentando te impressionar e nunca se esqueça de que quando se conversa por mensagens ou telefone, a internet sempre estará lá para dar as respostas que precisamos; não se deixe enganar por "respostas mirabolantes". Enfim, Rafael não era desse tipo de pessoa. Pelo contrário,  discordavámos de quase tudo. Mas isso não o fazia ser menos legal. 

 

Mas ainda sim não passaríamos de amigos. Tudo bem, um dia de conversas não define o futuro. Mas acontece que não quero que passemos de amigos que nunca se encontram e logo se esquecem um do outro — "eu ainda tenho o contato dessa criatura aqui? Mando um oi ou não... Não, talvez ano que vem". Sou o tipo de pessoa que faz julgamentos apressados. Do tipo que decide como você é só de olhar para seu rosto por segundos, e depois se arrepende de ter te chamado de metida sem nem te conhecer direito. Do tipo que define o futuro por um dia de conversas. Já tentei mudar, mas é difícil.

 

Mas eu estava com tanta preguiça que até pensar parecia muito trabalho. Talvez... no ano que vem? 

 

— Bom dia, Lizzy. — Nicolas sentou ao meu lado e bocejou. Quando foi que o ônibus parou mesmo? — Como foi o final de semana? 

 

— Hã, foi legal, eu acho. Fui à pizzaria no sábado e praticamente fui obrigada a interagir  com outras pessoas. — Encostei a cabeça na janela e suspirei. Não existe lugar melhor para refletir do que janelas de ônibus. — E o seu? 

 

Sempre pergunte de volta. Questão de educação, lembra? 

 

— Foi estranho. Encontrei a minha ex maluca no shopping... e, foi bem cansativo. — Dei um sorriso solidário. — Não vai perguntar por que ela é maluca? 

 

— Por que ela é maluca? 

 

— Porque ela começou a me seguir. Do nada. No sábado ela estava me seguindo, vi ela pelo espelho de uma loja e fui falar com ela. Foi tão esquisito. — Ele riu. — Não que ela fosse perigosa. Só era muito desconfiada. 

 

— E eu achando que coisas assim só aconteciam em filme. Mas, relaxa, ela só devia querer saber como você estava e não sabia como começar uma conversa. — Dei os ombros. — Na verdade, ela é brilhante. 

 

— Então você seguiria seu ex só para ver como ele está? Sem perguntar nada, só para observá-lo? 

 

— Não, se eu visse meu ex saíria correndo. Seu meu ex fosse outra pessoa, daí eu seguiria ele. — Brinquei, mas a verdade é que seguir pessoas era um pouco estranho. Até perigoso, eu diria. Isso não era crime?

 

— O que seu ex fez para não merecer ser seguido? — Perguntou em tom de brincadeira. 

 

— Sabe o que é mais constrangedor do que encontrar seu ex? Encontrar a pessoa com quem você deu seu primeiro beijo. — Desconversei, mas isso com certeza era verdade. — Não, é sério. Olha só, esses dias eu encontrei o Júlio no banco, quando fui lá com minha mãe. Quando olhei para ele automaticamente pensei no dia que meu amigo disse que eu precisava ir atrás da escola porque ele queria falar comigo urgente. Cheguei lá, Júlio gaguejou e me beijou. Foi... muito estranho. Nem olhar para ele eu aguentei sem cair na gargalhada. 

 

— Nunca mais encontrei com Isabelle depois que saí correndo, logo depois de morder a língua dela. — Apertei os lábios para não rir. — É sério. Mas seria muito esquisito encontrar com ela. Muito mais do que encontrar a perseguidora. 

 

— Olha só, risadas. O papo tá bom. Sobre o que conversamos? — Perguntou Erick ao chegar até nosso banco. Já tínhamos chegado na escola? Ah, e meus amigos ainda não tinham chegado, então era eu que tinha de esperá-los hoje. 

 

— Primeiros beijos catastróficos. Como foi o seu? — Nicolas perguntou. 

 

— Ah, o meu foi legal. Com uma garota incrível. 

 

Erick sorriu e eu também. Sim, é isso que está pensando: o primeiro beijo dele foi comigo. Ou talvez não tivesse pensado nisso. Acontece que Erick era irmão mais novo de Elisa, namorada do meu irmão. E foi assim que acabamos amigos. Erick sempre foi descolado, mas nunca tinha beijado ninguém  até uns três anos atrás. Estávamos conversando sobre isso quando nos ocorreu que podíamos nos beijar, para que ele praticasse antes de sair com uma garota que com certeza queria beijá-lo. Certo, nos beijamos mais que uma vez, mas só foi para praticar. Juro. E até que ele não beijava mal para um principiante. 

 

— Nem um pouquinho esquisito? — Insistiu Nicolas. 

 

— Não. Foi demais. — Erick bagunçou meu cabelo. — Vamos entrar, bolinha. 

 

— Vou esperar Ester e as outras duas beldades dessa escola. 

 

Fiquei do lado de fora esperando pacientemente. Era raro que o ônibus deles se atrasasse, mas quando atrasava... Sara chegou e passou por mim com um sorriso falso no rosto; a indiferença em pessoa. Às vezes eu pensava como seria se fôssemos amigas, porque mesmo que ela não gostasse de mim, eu não tinha nada contra ela. Pelo contrário, se ela quisesse ser minha amiga eu aceitaria numa boa. Até tentei me aproximar dela uma vez, mas não deu muito certo. Mas Sara parecia ser muito legal e o tipo de pessoa em que se pode confiar. Ester vivia me dizendo que eu era doida por pensar assim; e daí que prefiro sempre ver o lado bom das pessoas? É melhor do que ficar analisando os defeitos alheios. 

 

— No que está pensando, Lizzy? — Daniel tocou meu ombro para quebrar meu devaneio. 

 

Outra mania minha: sempre olho para as pessoas tento adivinhar o que elas estão pensando. Gosto de imaginar no que trabalham e como é a família de cada pessoa. Eu gostava de observar pessoas sorrindo. Sério, não tem nada melhor do que flagrar alguém sorrindo sozinho: sem nem perceber você acaba sorrindo também. Sorrisos são contagiantes, sabia? Se você começar a gargalhar em um lugar público, em menos de segundos todos estarão gargalhando também. 

 

— Nada. Vamos entrar? — Ester bocejou. Notei que Matheus estava atrás, um pouco afastado, com os olhos grudados no celular. E, ah, adivinha? Estava sorrindo. — Ele está cheio de segredinhos. — Ela explicou. — Está conversando com Rafael? 

 

— O quê? — Olhei para o Daniel e dei um soquinho no braço dele. Minha mão era leve, por isso ele mal deve ter sentido. — Lembrei: Seu bobão! 

 

— Só estou tentando te ajudar. — Ele beijou o alto da minha cabeça. — E então? 

 

— Ele... é legal. — Pelos olhares entendi que mais explicações seriam necessárias. — Ele é legal, é o que posso dizer. 

 

— Vou no banheiro. A senhora Gisele não tem piedade de quem tem a bexiga pequena — avisou Matheus, guardando o celular no bolso do casaco. 

 

— Vou com ele. — Disse Matheus, e os dois saíram andando apressados na frente. 

 

— Tá, agora me conta. O que o Rafa disse? — Ester passou o braço pelo meu. 

 

— Nada demais. Você sabia que os dois deram meu número para ele? 

 

— Fiquei sabendo hoje de manhã. Não enrola; vocês se dão bem? Gostou dele? Acha que tem futuro? — Disparou ela com aquele olhar sonhador. Eu já sabia que ela já havia imaginado como seriam o rosto dos nossos filhos, o meu vestido de casamento... Ester era assim. 

 

— Ester, ele é um cara legal. Muito legal. Mas eu não quero que dê certo. Não quero que haja  mais do que amizade entre nós. E eu só conheço ele há dois dias! Então...

 

— Então nada! Ele com certeza te achou bonita, e se pediu seu número é porque quer que role alguma coisa. — Entramos na sala de aula e fomos para os nossos lugares.— Pare de ser pessimista! 

 

— Ele não pediu meu número. Os meninos que derão meu número pra ele. 

 

— Os meninos disseram que ele te achou linda. 

 

— Eu sei, ele me disse isso. Umas cinco vezes. Eu faço o "estilo" dele — fiz aspas no ar. — Vamos esquecer isso, tá legal. 

 

— Vai ter que me manter informada, tô nem aí. Ei — ela pareceu se lembrar de algo. — Encontrei o Nicolas ontem. Ele foi na loja da minha mãe com a irmã e um amigo, muito bonito, aliás, e gente conversou um pouco. 

 

— Ah, foi? — Perguntei, desinteressada. Estava checando se tinha feito o dever de matemática... oh-oh, não tinha feito. 

 

— Foi estranho. Nunca nos falamos, tipo, só os dois. E ele perguntou tanto de... 

 

— Fez a lição de matemática? — Perguntei interrompendo fosse o que fosse que ela estivesse falando. 

 

— Você não fez? — Ela arregalou os olhos. 

 

— Nenhuma das duas fez? — Daniel chegou junto com Matheus. 

 

— Ah, legal. Agora a gente tá ferrado. — Matheus deu uma risada sem humor. 

 

Mas logo riu de verdade. Como todos nós. Já riu de desespero? Nossa professora de matemática era uma pessoa muito calma, até alguém ignorar seus preciosos números. As broncas dela eram as mais temidas. E agora precisávamos rever todas as nossas anotações enquanto prestávamos atenção na aula de biologia e resolver seis equações complicadíssimas, isso tudo em menos de uma hora. Uma situação desesperadora, não é? Mas ao invés de entrar em desespero, como sugeria o protocolo, nós só podíamos rir. 

 

Não tinha um ditado que dizia que rir era o melhor remédio? Pois é, esse remédio teria de funcionar. 

 


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