Crônicas de uma gordinha escrita por Roberta Dias


Capítulo 6
Deixe tudo por conta de seus amigos


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura ♡



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— Sua gorda feia! 

 

Fala sério: até parece que eu ia me importar com que um garotinho de no máximo doze anos e o irmão ainda mais novo que ele diziam sobre mim. Não sei por quê, mas crianças gostam de ofender os outros e ligar para uma ofensa de uma criança era uma bela idiotice. Ele nem devia saber para que o cérebro funcionava direito e achava engraçado xingar os outros, mas quando crescesse perceberia o quão desnecessário isso era. De dez ofensas que eu recebia na rua, pelo menos umas oito eram de crianças e já amadureci o suficiente para não me importar. 

 

Até parece que eu ia chorar porque um garotinho me ofendeu. No dia seguinte ele ofenderia um coleguinha na escola, e no seguinte, e no seguinte, até que percebesse por si só que era total perda de tempo ofender alguém. 

 

Eu podia não ligar, mas Ester ligava, e não me surpreendi quando ela deu meia volta até o garotinho. Se abaixou até que seu rosto estivesse na altura do dele e deu um sorriso sinistro. 

 

— Sabia que é falta de educação ofender os outros? Você tem sorte de eu não ter o seu tamanho, porque senão você ia ver uma coisa...

 

— Ester! — Peguei o braço dela quando vi que a mãe dos garotos se aproximava. — Pare com isso! 

 

— Você é a mãe deles? Devia dar educação para...

 

— Desculpe, senhora, ela não sabe o que fala. — Puxei Ester com tudo e continuamos a andar enquanto Matheus e Daniel ficaram rindo. — Mas o que foi isso? 

 

— Você devia tomar uma atitude, Lizzy. — Ela puxou o braço. — Vai deixar as pessoas te ofenderem e não vai fazer nada?

 

— Sim. E aquele garoto devia ter uns doze anos, mais ou menos a idade que a sua mentalidade funciona — revirei os olhos. — Sossega, menina. 

 

Ela deu os ombros e sentou à mesa que sempre sentávamos. Sábado à noite, nada para fazer, então meus amigos e eu decidimos ir a pizzaria. Era o nosso lugar favorito para comer e jogar conversa fora; não era longe e tinha preços que cabiam no nosso bolso, que sempre vivia em estado crítico. Era um lugar bem aconchegante com decoração italiana — com direto a toalha de quadradinhos verdes e vermelhos —, um salão bem espaçoso e música  que saía das caixas de som que ficavam nos cantos. Só seis mesas estavam ocupadas, e uma delas era bem ao lado da nossa; só havia garotos nela, para felicidade de Ester.

 

Tivemos a nossa habitual discussão sobre que sabor de pizza comeríamos, e chegamos ao acordo de pedir uma portuguesa. Normalmente, eu gostava de pizzas vegetarianas, e aparentemente só eu mesmo. No momento em que ir pizzaria se tornava uma ideia para nós, já deixavam claro que pizza vegetariana não era opção. E eu quase nunca comia! Não aguentava uma pizza inteira e não achava ninguém que gostava, então as ocasiões eram raríssimas. 

 

— Olha só, Lizzy está arrasando corações! Está toda gata hoje também, não é? — Ester comentou e eu olhei para os lados para ver se ela estava falando comigo mesmo. É, não havia outra "Lizzy" por ali. 

 

Nem me arrumei direito. Só coloquei uma blusinha branca de alcinhas, uma camisa xadrez, uma calça leggin preta e um tênis preto com detalhes cinzas; cabelo solto — e se quer saber eu nem passei um pente por ele —, maquiagem leve e óculos — sim, eu usava óculos de vez em quando só para fazer um charme: isso não era estar arrumada, isso era o visual que eu ia para escola. Claro, tirando a maquiagem e os óculos. O que ela quis dizer com "está arrasando corações" e "está toda gata" não vou saber te explicar.

 

— Na mesa do lado — sussurou Matheus, se inclinando para perto de mim. 

 

Olhei para o lado e logo percebi o cara que olhava para nossa mesa. Ele virou a cabeça e fingiu estar prestando atenção no que seu amigo dizia. Ele até que era bonitinho; devia ter uns dezoito anos, cabelo preto arrepiado, olhos verdes, pele morena e barba feita. Muito bonitinho mesmo, para falar a verdade. 

 

— Ele deve estar de olho em você, Ester. — Cheguei a essa conclusão. Na verdade, mesmo que ele estivesse de olho em mim, eu não queria que estivesse. 

 

Ela negou com a cabeça e o cheiro do xampu de morango chegou até mim. Já estava pronta para contradizer quando ela olhou para ele e apontou para si mesma; virei a cabeça na direção em que ela olhava e vi que o cara bonitinho de antes sorriu e negou. Logo depois, fez em gesto com a cabeça em minha direção. Franzi as sobrancelhas e balancei a cabeça; eu mereço, não é mesmo? Ester exibia seu sorrisinho vencedor enquanto me encarava. 

 

— Com certeza, não sou eu a pessoa que interessa ele. — Passei o braço pelos ombros do Matheus, que estava ao meu lado. — Vai ver ele está de olho na garçonete. 

 

— Sem graça, Elizabeth. — Ele tirou meu braço. 

 

— Não. — Já avisei diante dos olhares esperançosos dos três. — Não, mesmo!

 

— Lizzy, você não pode basear sua vida amorosa inteira em uma experiência que não deu certo. — Disse Daniel. — Me use de exemplo: nunca desisto, e um dia ainda acho minha alma gêmea!

 

— Se você gosta de sofrer, ser humilhado, ficar contando tristezas pelos cantos e se iludir como um bobo, não vou te julgar. Mas não vou querer passar por todo esse processo por tão cedo. Quando eu tiver uns... — fiz uma estimativa rápida em minha cabeça. — Trinta anos, vou começar a repensar na minha vida amorosa. Me deixem estar estabilizada na vida primeiro!

 

— O quê? Trinta anos? Não. Você sempre nos incentiva com as pessoas que se mostram interessadas, então, só estamos retribuindo o favor. — Matheus olhou para mesa do lado. — Ele está olhando para cá. 

 

— Não quero saber. — Eu disse. — Não quero ficar brava com vocês de jeito nenhum; vai por mim, vai ser melhor ignorá-lo. 

 

— Por que você ficaria com raiva de nós? —  

Perguntou Daniel. 

 

— Escutem, se eu for lá falar com ele,  começarmos a conversar e isso dar certo posso acabar me apaixonando. Depois, no futuro, se acabarmos terminando e eu ficar sofrendo, vou ter que culpar alguém. Por estar perdidamente apaixonada por ele  provavelmente não vou culpá-lo por nosso término; também não vou me culpar, e só vai sobrar vocês três para botar a culpa! Vai ser por culpa de vocês que vou sofrer, porque me convenceram a ir falar com ele e eu não quero culpar vocês, entendem? — Expliquei e consegui deixá-los sem palavras. Os três trocaram olhares e voltaram a me encarar, sem entender. — Mesmo que não faça sentido para vocês agora, se continuarem insistindo vai fazer algum dia. Mesmo que demore anos. 

 

— Perdidamente apaixonada? Você mal sabe o nome do cara. 

 

— Está viajando, Lizzy. — Ester balançou a cabeça. — Vai lá, fala com ele. 

 

— Eu juro que vou embora... 

 

— Não. — Matheus segurou meu braço quando  ameacei levantar. — Se você for embora não vamos ter o dinheiro completo para pagar a pizza. 

 

Eu sei que meus amigos queriam o melhor para mim, mas tentar me empurrar para um desconhecido já passava dos limites. Os três sabiam que eu não queria ninguém e sabiam o motivo. Sim, eu já sofri por amor, e mesmo que você pense que sou muito nova... ah, é uma longa história. Quem sabe eu não acabo contando quando estiver em momento de reflexão da minha vida. Mas, neste momento, realmente não quero lembrar. Perdi uns três baldes de lágrimas que nunca mais vão voltar.

 

— Vou ao banheiro. — Me levantei. — Você vem, Ester? 

 

— Lizzy, posso jogar no seu celular enquanto a pizza não vem? Só o seu tem o jogo do Sonic — pediu Daniel, com aquele olhar de cachorro abandonado. 

 

— Por que não baixa o jogo? — Entreguei meu celular para ele. 

 

— Já tem coisa demais no meu celular. 

 

Ester e eu fomos ao banheiro em silêncio. Pelos olhares que me lançava sabia que estava pensando em argumentos para me convencer a falar com cara da mesa ao lado. Ela sabia como pisar em ovos direitinho e era especialista em me dobrar, embora nesse assunto sempre saísse fracassada. 

 

— Então... — começou ela enquanto lavavámos as mãos. — Não tem nenhuma possibilidade de você falar com aquele carinha? 

 

— Não mesmo. — Sorri para os reflexos do espelho. Uh, até que eu estava bonitinha. O que uma maquiagem não fazia, ein? — Quero ficar tranquila por enquanto. Férias do amor, lembra? 

 

— Até quando vão durar essas "férias"? Até quando vai ficar sofrendo... 

 

— Não estou sofrendo, agora. Só quero me focar em outras coisas — dei os ombros. — Já deixei de sofrer há muito tempo. 

 

Ester sorriu, o que só podia significar que acreditava em mim. 

 

— Mas se não arrumar alguém até os 30, vamos ter que arrumar para você. Vamos conquistar alguém bem bacana para você. — Ela piscou e me deu uma cotovelada de brincadeira. 

 

— Nossa, muito obrigado. 

 

— Para que servem os amigos? 

 

Quando voltamos para mesa meu celular estava parado perto do meu copo e Matheus e Daniel estavam com sorrisos semelhantes a de uma criança que acabou de aprontar. A mesa do lado estava desocupada e os pratos ainda estavam lá, então não devia fazer muito tempo que os ocupantes tinham saído — isso! Assim eu não precisaria falar com ninguém. Meu plano de ir ao banheiro em momentos desconfortáveis deu certo mais uma vez. Você devia tentar, sempre dá certo. Quanto mais você demorar, melhor. 

 

— O que vocês fizeram? — Perguntou Ester. Se ela notou eu não devia estar errada. 

 

— O quê? Eu não fiz nada — Daniel riu. — Vocês que são paranóicas. Ah, nossa pizza — e a garçonete colocou a bandeja quente no meio da mesa. — Vamos comer. 

 

Conhecia os dois muito bem para saber que alguma coisa extraordinariamente óbvia ia acontecer. Balancei a cabeça e deixei o que quer que fosse quieto. Por hora estava ilesa e com um pouco de sorte continuaria assim até chegar em casa. Agora, era só aproveitar e relaxar. 

 

[...] 

 

Gisele ficou com Robert. Edward com Nancy. Nathaniel escreveu um livro e Pip também. E todos viveram felizes para sempre. Desliguei a televisão usando o controle e suspirei: já passava das duas da manhã e o sono ainda não tinha chegado para mim. Meu irmão estava dormindo — e roncando muito — no sofá enquanto eu estava encolhida na poltrona. Fiquei na sala quando vi que passaria Encantada, um filme da minha infância, e Tomás resolveu me acompanhar. Mas era óbvio que apenas eu queria mesmo assistir.  

 

Fiquei pensando no carinha da pizzaria. Será que eu devia ter ido falar com ele? Daniel estava certo quando insinuou que eu precisava me desprender do passado; mas acontece que eu não pensava no passado, só não queria viver tudo de novo. Esse lance de "aposentadoria do amor" foi só um jeito que arrumei para me manter afastada de furadas. Por mais que as vezes quisesse me meter em furadas. Só tenho dezesseis anos e preferia ficar perdendo meu tempo com livros ou dormindo do que com paixonites adolescentes. 

 

Fui para o quarto, peguei um cobertor para cobrir a motosserra que era o meu irmão e voltei correndo para debaixo das minhas cobertas. Apaguei as luzes e abracei minha elefantinha de pelúcia, que tinha o nome de Tika, graças as aventuras da barbie em uma ilha. Peguei meu celular para checar as mensagens antes de dormir. Ia me deitar sem estar com sono, uma hora iria acabar dormindo mesmo. Havia uma mensagem do Erick, uma do Matheus, algumas de uns colegas de escola e uma do Rafael. 

 

Acontece que eu não conheço nenhum Rafael. 

 

Rafael: Quando estiver online dá um toque ;)

 

Carinha piscando. Detesto emoticons. Ainda mais se estiver piscando... mas a questão principal aqui é saber como o número desse cara apareceu no meu celular. 

 

Desculpa, mas poderia me dizer como seu número foi parar no meu celular? 

 

Para minha surpresa, a resposta chegou em poucos segundos. 

 

Rafael: Seu amigo salvou aí, pelo que sei.

 

Sabia que aqueles dois tinham aprontado uma. Daniel pediu meu celular para anotar o número do carinha da mesa ao lado, e não para jogar como eu achava que faria. Ao invés de ficar furiosa só consegui rir; muito bem bolado rapazes. Vocês são espertos, mas ainda vai ter troco. Mas, como sou uma boa moça, não iria deixar o Rafael falando sozinho. Contanto que eu me lembrasse que estava de férias do amor e não me metesse em nenhuma furada, tudo ficaria certo. Em seu devido lugar. 

 

Pelo menos eu queria que fosse assim. 


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