O Bote escrita por Juno Wolf


Capítulo 1
O Bote




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Deixou a sala de aula vinte minutos antes de seu fim. Eram dez da noite de uma segunda feira fria, e ela não aguentava mais estudar Piaget.

Andou com lerdeza até o ponto de ônibus que existia dentro da universidade, mantendo seus pensamentos longe o suficiente para que não voltasse às suas notas baixas e seu relacionamento chato.

Foi à menos de dez metros do ponto que um rapaz a parou. Ele era tão alto quanto ela e usava óculos quadrados, que escorregaram pelo nariz quando ele disse:

— Seu ônibus já chegou?

Negou com a cabeça, um tanto surpresa, um tanto na defensiva, prendendo os dedos ao redor da alça de suas mochilas.

— Você pode me ouvir durante alguns minutos? Eu simplesmente preciso conversar.

Ela gostava de ouvir as pessoas. Gostava de conhecer suas mentes, de ajudar quando podia estar fazendo isso. Era exatamente por isso que cursava Psicologia. A avaliação da postura do rapaz foi quase involuntária: Sorriso de canto, olhos fixos nos seus. Parecia ansioso.

— Claro. - Respondeu, automaticamente se entregando à curiosidade tão característica de si.

Caminhou ao lado do rapaz até sentarem-se em um banco próximo ao ponto, um de frente para o outro, com as mochilas esquecidas no chão.

— Hoje é dia vinte e seis de Setembro. - Começou o rapaz sem nome. - Essa data me causa pânico.

— Por que? - Não resistiu perguntar. Teve medo de que ele não lhe dissesse.

Ele sorriu, e Anne ficou com os olhos presos ali. Não fazia a mínima ideia do que aquele sorriso queria dizer.

Ele demonstrava profunda animação, como se tivesse recebido uma novidade incrível, e essa sensação de ansiosidade em falar algo foi passado para ela, fixando toda a atenção da garota à aquela situação.

— Dois anos atrás, exatamente nessa data, eu estava iniciando um namoro com o amor da minha vida. - Disse, de forma quase cantada. Anne quis saber se ele sempre falava daquela forma, ou se era apenas a necessidade de compartilhar. - E ela não era o amor da minha vida. Um ano atrás, nesta mesma data, eu iniciava um novo relacionamento com o amor da minha vida. E ela também não era o amor da minha vida.

Ele riu, mais triste do que animado.

— E hoje...

— Você começou um novo relacionamento? - Tentou adivinhar, causando uma risada no outro.

— Não. Eu conheci uma garota. Somos amigos, ela namora e é cheia de problemas. Mesmo assim eu tinha certeza que havia me apaixonado por ela.

— Havia? No passado?

— Ouça. - Ele disse, e ela mordeu a própria língua, engolindo as perguntas.

Sentiu um pouco de vergonha por estar tão curiosa pelo desfecho. O curso ainda devia ensiná-la a calar a boca, pois Anne mal continha suas perguntas.

— Eu havia acordado meio mal hoje, por que o fim do meu último relacionamento foi meio difícil. Eu sou meio trouxa com esse tipo de sentimento, mas... - Ele travou no meio da frase. - Enfim. Eu curso tradução, e hoje estávamos falando sobre literatura... Aí a professora entregou este papel.

Ele estendeu a folha dobrada para Anne. O conteúdo era uma planilha, uma tabela com as coordenadas: sonhos-planos-metas-realizações. Leu a frase destacada em itálico: - "Mesmo com medo, vá e faça."

— Minha ex sempre me dizia isso. Faça, mesmo que o medo te paralise. Aí começamos a falar sobre sociedade dos poetas mortos, que é apenas o meu filme favorito. Entramos nesse assunto completamente aleatório dentro de uma aula de literatura. Qual a probabilidade disso acontecer? - Os olhos dele mal piscavam. - Eu resolvi me declarar. E eu ia mesmo fazer isso. Chamei ela, com as pernas tremendo, nos sentamos, olhei bem fundo nos olhos dela, e... Travei.

— Travou?

— Não era ela. Entende? Não era ela. Ali, naquela situação, certo de que ia me declarar, eu percebi que não era ela. Que ela era a minha amiga. Que eu acabei de sair de um relacionamento e que nós não somos... Nossos. Entende? Agora, como eu sei que não é ela?

— Você está esperando uma resposta?

— Não existe uma.

— Eu acho que existe.

— Eu não quero uma resposta. Não agora. Não quero que ela venha de uma outra pessoa.

— Isso faz muito mais sentido. - Eles riem. Anne olha fundo nos olhos daquele garoto. - Você já pensou que talvez você tenha dado muito significado à uma data? O dia vinte e seis já foi marcante, mas suas ex namoradas não fazem mais parte do seu presente. Tem um calendário todo para se apaixonar por alguém.

— Talvez. - Ele sorri. - Quem sabe?

— Meu ônibus chegou. - Ela joga a mochila nas costas, e se levanta. - Tenho que ir.

— Qual o seu nome?

Ela pensa antes de responder.

— Anne. E o seu?

Ele sorri de canto.

— Obrigada pelos ouvidos. - Anne nega com a cabeça, soltando uma risada curta ao que dá as costas, acenando.

— É o meu trabalho!

Quando entra no ônibus, ela sorri. Também não sabe a resposta à pergunta do garoto. Somos todos náufragos à procura de um barco que nunca vai chegar.

Ela ri.

— Construímos nosso próprio bote.


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