Um Pesadelo escrita por Astus Iago


Capítulo 1
Um Pesadelo




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Esta noite, tive um pesadelo. Sonhei com a casa dos meus avós, uma daquelas habitações habituais da gente velha, daquelas pequenas casas de campo com animais e uma horta bem cuidada no terreno adjacente. Lembro-me de lá ter entrado com os meus dois irmãos mais novos e tudo começou normalmente. Parecia uma visita comum. Trocámos bons dias e olás, e comemos um bom lanchinho. Nada de anormal até aí.

Lembro-me de que havia um certo recipiente, em cima da mesa de jantar, contendo um misterioso fluido vermelho-escuro, mas não lhe toquei. Talvez tenha aparecido nesse sonho como uma memória residual do chamado mercurocromo, um antigo anti-séptico possuidor dessa mesma coloração, e que já tive a oportunidade de observar algumas vezes.

Depois de lancharmos, tive de lidar com a minha querida avó, que estava sentada na sala de estar enquanto o seu marido cuidava das suas agriculturas. Da sua boca, saíram as habituais conversas de avó. Perguntou como estava a correr a minha vida, como estava de saúde e de dinheiro. Divagou sobre esse tipo de assuntos como os velhotes fazem sempre, como que interrogando os mais novos até à exaustão. Porém, algo na sua voz não me parecia natural. As suas feições pareciam mais gélidas, algo estáticas, como se a sua cara não passasse de uma máscara feita de cera. Incomodada com essa minha súbita analogia mental, decidi sair do edifício e, sozinha, visitar os animais.

Passei pelas galinhas barulhentas e cheguei ao lamacento curral dos porcos. Estes estavam muito bem escondidos por uma bizarra barraca de madeira, devidamente cercada por segurança. Não me lembrava de ter visto aquela barraca antes, mas é certo que não me pareceu necessariamente peculiar à primeira vista. Tudo nos sonhos parece mais natural, mesmo aquilo que não o é. As leis da lógica desaparecem, e o raciocínio turva inevitavelmente, levando-nos a aceitar realidades ridículas ou até mesmo moralmente inaceitáveis.

Entrei facilmente na barraca, pois não estava devidamente fechada. Nunca teria estado preparada para aquilo que lá se encontrava dentro. Eram os porcos que esperava, isso sim. Mas o seu estado físico...

As gargantas dos pobres suínos haviam sido literalmente abertas por lâminas cortantes. Contudo, mantinham-se vivos sem qualquer custo. Ao que parece, sofreram um transplante algo macabro. Cordas vocais humanas teriam sido introduzidas naqueles pescoços gordos e sumarentos. Vozes pediram ajuda, vindos daqueles corpos desgraçados de obeso animal, gritando por misericórdia quando o meu avô, subitamente, apareceu e disparou a sua espingarda. Assim deixaram de haver provas daqueles mórbidos exercícios de vivissecção. Sem mais evidências de qualquer experimentação ilegal.

Então, o velho olhou para mim. Inicialmente, um olhar de reprovação e ódio puro. Posteriormente, um sorriso divertido, convidando-me a voltar para dentro de casa. Assim o fiz. Não ousaria irritar mais o meu querido avô, cujas expressões faciais pareciam tão alienígenas quanto as da minha avó.

Quando entrei novamente no edifício, a primeira coisa que fiz foi procurar a velhota e contar-lhe o sucedido. Algo de perigoso se estava a passar. O agricultor idoso só podia estar louco, possível consequência de longos períodos de isolamento social. Acabei por encontrar a decrépita mulher no sótão, bastante concentrada e alheia aos meus chamamentos insistentes, desenhando algo numa parede com giz branco. Estranhas runas arcaicas formavam o que parecia ser um aglomerado de frases redigidas num alfabeto arcano, claramente exótico e desconhecido. Esquemas ligavam umas frases a outras sem fazer o menor sentido. Diagramas sinistros, desenhos onde eu e os meus irmãos estávamos de cócoras, uns sobre os outros, dispostos em pirâmide. Retas a giz delimitavam essa vil edificação humana.

Nesse momento reparei que, desde o lanche, nunca mais vi os meus irmãos mais novos. A velha virou-se lentamente, esboçando o sorriso mais hediondo e extraterrestre que já alguma vez tive a infelicidade de testemunhar. Os lábios, secos e incolores, esforçavam-se por se esticar nas pontas da boca, revelando um conjunto incompleto de dentes amarelados e relativamente apodrecidos. E aqueles olhos, as pupilas gigantescas e disformes, tão enegrecidas quanto nítidas, quase me fizeram desmaiar de honesto terror e desespero.

Aqueles não eram os meus avós. O que fizeram com aquele modesto casal de agricultores? Que maléficos intentos tinham estes impostores em mente quando mutilaram os animais indefesos? Onde estavam os meus irmãos? E onde estava o gato preto de que a minha avó tanto gostava, o pobre Erebus? Onde estavam todos?

Tentei escapar daqueles sádicos asquerosos, mas vi a única saída da casa impedida pelo meu avô e a sua espingarda. Então, a minha avó retirou do bolso o enigmático licor vermelho-escuro da mesa de jantar. Disse-me que se o bebesse iria correr tudo bem e que, "se me portasse como uma menina bonita", poderia voltar a ver os meus irmãos. Sem outra opção razoável, engoli o fétido líquido que me deram de beber.

Curiosamente, eles cumpriram a sua parte da promessa. É verdade que ainda vi os meus irmãos, ou melhor, parte deles, biologicamente misturados com os corpos rosados de carcaças suínas. O jovem rosto deles, coberto de veias que não lhes pertenciam. E a gordura acumulando-se no pescoço das abomináveis quimeras, completamente apáticas e incontinentes, incapazes de conter por um segundo que fosse a libertação dos seus excrementos. O que fizeram com a minha família? Onde estão os meus avós?

A última coisa de que me lembro foi de um anómalo brilho amarelado que parecia provir dos meus olhos. Isso e uma incómoda sensação de perda de controlo, como se o meu corpo estivesse a ser dominado por uma qualquer força externa. Como se me tivesse sido roubado, deixando-me à mercê de um predefinido conjunto de desígnios incompreensíveis e diabólicas sugestões hipnóticas.

Foi assim. Foi este o terrível pesadelo que tive ao adormecer na noite passada. Mas o pior de tudo, e o mais assustador também, é que, desde que adormeci, ainda não consegui acordar.


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