Histórias do cara do balcão. escrita por Mestre do Universo dos Vermes


Capítulo 6
O manobrista que não sabia dirigir.




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Balcão, doce balcão. Tédio, doce tédio. Vida, doce vida...

Não. Simplesmente não dá.

Foi mal, eu juro que tento ser otimista e contente, mas não dá para se contentar por muito tempo quando se fica isolado no quarto andar várias horas por dia, todo dia!

Sim, longe do balcão eu sinto falta, de volta eu me entedio.

E assim a vida segue... Mas, ei, quem realmente se contenta com o que tem?

Eu gosto do meu balcão, mas a parte do tédio não dá para adoçar e a vida só vale a pena enquanto eu tagarelo com alguém.

E eu não tenho uma boa conversa há... Sei lá, duas ou três horas.

A Sirena/Saramandaia/Sergina passou por aqui há umas duas horas para buscar uns materiais e eu consegui "prendê-la" aqui por uns dez minutos para ela me contar o que se passa no prédio, mas depois ela disse algo sobre "realmente precisar terminar a limpeza" e "estar atrasada", então eu a deixei em paz.

Nenhuma fofoca interessante, se você quer saber. Ela só fez uns comentários sobre como os novos "escravos da cozinha" (que ela chama de "ajudantes") continuam ganhando colheradas na cabeça, perguntou se eu estava a fim de algum livro da biblioteca (já que é ela que pega pra mim por razões já mencionadas) e, por algum motivo, eu tenho a sensação de isso ser uma indireta, algo do tipo "vai ler um livro e me deixa trabalhar". Ela também fez umas observações nada educadas sobre o peso extra da recepcionista, mas, sinceramente, eu não culpo a mulher, recepção é um trabalho estressante e afogar as mágoas na comida é válido.

O Vanderval/Vânio/Valdir também veio me fazer uma "visita", mas isso foi ontem, então nem sei se ainda conta... Lembra dele, certo? Meu ex-chefe na cafeteria? É, ele não tinha nada interessante a contar também. Só perguntou como ia meu tamagotchi (que é o jeito educado dele de pergunta "já morreu esse mês?"), falou de um ou outro cliente da cafeteria, disse que o trabalho lá continua puxado como sempre (também, com um bando de viciados em café por andar, vai querer o quê?) e perguntou como eu estou. Nada demais...

É estranho que eu saiba mais fofocas que os dois juntos, sendo que eu quase nem saio de detrás desse balcão enquanto eles são livres para zanzar por aí?

Ok, "eles" é demais, o Valmir/Vandro/Vito fica tão preso à cafeteria quanto eu ao balcão, mas, ei, ele pode falar com as pessoas quando serve café! Já a Suleine/Sam/Sue não tem muita desculpa, o trabalho dela é, literalmente, percorrer o prédio de cima a baixo.

E o meu é ficar quietinho na minha e não arranjar confusão... Bem, pelo menos é minha melhor hipótese, afinal, eu duvido que meu trabalho seja dar informações para alguém. Se fosse, eu não estaria no quarto andar, estaria?

Mas poderia ser pior, então não vou reclamar... Pelo menos eu ainda estou com minhas integridades física, emocional e psicológica quase intactas! Algumas mais que outras, claro... Mas podia ser pior, como aquela vez que me colocaram de "assistente" no treino de luta, e eu suspeito fortemente que alguém só queria me ver apanhar, ou aquela vez que eu tive que ajudar a treinar os cães de patrulha dos agentes de campo... Vou te contar: aqueles bichos são temperamentais! Também teve aquela vez que me "demitiram de vez" e, vou dizer, foi desastroso!

Enfim, você já deve ter enjoado da minha tagarelice sem sentido, não?

Não? Ah, que ótimo! Nesse caso, que tal eu te contar um dos empregos mais inúteis que me colocaram?

Afinal, eu sei que você só vem aqui pelas histórias mesmo.

E, cá entre nós, eu adoro contá-las a você, me dá algo para fazer.

Enfim:

"O emprego era simples: 'manobrista'.

Pelo menos foi o nome que deram, na realidade ninguém era louco o bastante para me deixar manobrar um carro de verdade.

Esse emprego nem existia antes, foi um dos inventados única e exclusivamente para mim. Sim, que honra! Com esse acho que foram bem uns três.

Por que 'manobrista', você pergunta?

Simples! Assim podiam me isolar na garagem, um lugar sem risco de eu me meter em encrenca ou estragar tudo. Bom plano, não?

Mas, ei, se eu não manobrava carros, o que diabos eu fazia na garagem?

Simples: nada!

Não tem aqueles caras que ficam em estacionamentos e pedem moedas para 'olhar' seu carro? Pois é, eu era praticamente um desses, mas sem as moedas. Só tinha que ficar olhando os carros o dia inteiro e, sei lá, garantir que eles não pegassem fogo?

Aliás, dessa vez não teve fogo envolvido na história, então acho que fiz um trabalho decente!

A garagem era um lugar monótono. Claro, eu via as pessoas quando chegavam e saíam, em geral só o topo da cadeia alimentar porque, óbvio, para ter carro numa guerra pós-apocalíptica você precisa ter certo status. Não eram tantos carros quanto você pode imaginar num estacionamento, então o trabalho em si era bem simples.

É uma pena que o tédio exista.

O que fazer quando se está entediado numa garagem?

Resposta: mostre seus dotes artísticos nos carros alheios!

Eu ia do clássico 'me lave' até outras frases mais interessantes ou, se eu estivesse num dia particularmente criativo, desenhos. Claro que tinha o pequeno inconveniente dos caras de colarinho branco deixarem sempre os carros limpinhos e impecáveis... Mas nada que um pouco de terra não resolva. Afinal, sujar um carro é muito mais fácil que limpá-lo.

E eu posso afirmar isso com propriedade porque me obrigaram a limpar tudo que eu sujei depois. Admito, foi quase um pecado ter que lavar algumas das minhas obras-primas! Em especial a do cara do escritório que foi traído pela noiva da creche... Se lembra dele? Pois é, fiz um desenho até que decente da tia da creche com a ex-enfermeira num momento bastante... Íntimo. E, acredite, tudo que ele não precisava era ser lembrado desse assunto!

Mesmo assim, eu me esforcei no desenho, foi injusto ter que lavá-lo!

Não me demitiram depois dessa, incrivelmente, mas me deram uma proibição bem clara quanto a demonstrar meus dotes artísticos nos carros alheios.

Eu até fiquei de boa, me segurei, procurei o que fazer da minha tarde sem envolver o veículo de ninguém... Mas não dava! O tédio era demais!

Para você ter noção do meu nível de desespero para ter o que fazer: eu quase fiz um inventário da garagem! Contei os carros, dividi em classes por cor, modelo e, o mais importante, qual figurão de colarinho branco era o dono. Cheguei à conclusão que os chefes devem amar chamar atenção, já que os cargos mais importantes em geral tinham carros maiores que o necessário e, alguns, até vermelhos.

Falando em cor, bem que podiam ter moderado mais nos carros e caprichado nas paredes do estacionamento, ô lugarzinho sem vida! Era cinza e chato, chato e cinza, o lugar perfeito para os duendes dos Padrinhos Mágicos. Claro que era bem construído, sólido, maciço, resistente... Tanto as paredes quanto o chão, esse último principalmente porque, se o chão fosse fino demais, corria o risco de algum som dos andares subterrâneos escapar para a garagem. Acho que eles investiram uns bons metros de cimento maciço pelo bem do silêncio!

Pena que eu e o silêncio não somos exatamente os melhores amigos...

Depois de percorrer a garagem um milhão de vezes, contar tudo que era contável, dar várias voltas, etc, eu estava quase subindo pelas paredes!

Vamos ser francos, não havia absolutamente nenhuma utilidade em olhar para carros o dia inteiro e ninguém perceberia que eu caísse fora e só voltasse no fim do expediente, quando eles saem.

E foi o que eu fiz.

É, simples assim, abandonei o posto e caí fora. Uau, que rebeldia! Eu sei.

Peguei o elevador e fui dar uma volta no primeiro andar 'discreto' que consegui pensar. Escolhi o sétimo porque era a escolha óbvia, não tem nada muito interessante lá, então duvido que alguém percebesse ou desse importância à minha presença.

É claro que eu podia ter pensado um pouquinho melhor nisso... Mas, sei lá, o tédio aliado ao desejo de subir pelas paredes da garagem não me deixavam pensar direito.

Por quê? Fácil, eu esqueci o pequeno detalhe de muita gente lá me conhecer.

Afinal, é o andar da estufa e da sala de reparos e, bem, antes de virar 'manobrista', eu era o 'jardineiro' da estufa e, antes disso, trabalhava na sala de reparos, não que eu reparasse as coisas direito ou soubesse minimamente o que estava fazendo...

Enfim, até que não foi ruim, tive a chance de conhecer o cara que me substituiu como jardineiro da estufa.

Por que tem uma estufa no prédio, você pergunta? Olha, essa é uma excelente pergunta! Esse prédio é meio doido... Acho que você teria que perguntar ao arquiteto, engenheiro ou seja lá quem foi o responsável pela construção disso.

Você por acaso teria um tabuleiro ouija? Se quiser mesmo perguntar, vai precisar de um.

Enfim, voltando à história, o novo jardineiro até parecia um garoto legal. Uns anos mais novo que eu, suspeito fortemente que dei aula para ele em algum momento da minha breve experiência como tutor, mas não tenho certeza porque ele aceitou um conselho meu, o que meus ex-alunos com certeza não fariam, afinal, eles são espertos.

O garoto parecia esperto, mesmo que tenha me dado ouvidos, e, com certeza, era um jardineiro melhor que eu! Como eu sei? Fácil, as plantas estavam vivas.

Ele estava lá, na dele, regando aquelas florezinhas lilases que eu não sei o nome (e olha que eu trabalhei com elas!), vendo alguma coisa com aquela outra que para mim parece mato, mas tem um nome bonitinho, colocando herbicida numa terceira que eu não vou nem me preocupar em tentar fingir que eu soube o nome algum dia... Enfim, ele estava lá, tranquilo, fazendo o trabalho dele, quando eu já cheguei me metendo.

Como se isso surpreendesse alguém a essa altura do campeonato...

'Vai matar essas coisinhas aí' Eu disse enquanto apontava para aquelas coisinhas lá.

'...Uh?' Foi a resposta super eloquente dele.

Não o culpo, se um cara chegasse no nada se metendo no meu trabalho sem nem ter a decência de se apresentar, acho que eu reagiria parecido.

'Elas são mais sensíveis que as outras plantas, se você não misturar o herbicida com um pouco de água, não vai matar só as ervas daninhas, vai matar elas também'

'Ah' Ele disse puramente para demonstrar que compreendeu o que eu disse.

Aliás, já disse que eu gostei desse moleque? Era tão fácil falar com ele!

Provavelmente porque tudo que ele tinha dito até o momento foram monossílabos...

'Hm... Obrigado' Ele seguiu meu conselho e, pela primeira vez, disse algo com mais de uma sílaba.

'Sem problemas' Eu inclinei a ponto de um chapéu invisível para ele no que acabou sendo um cumprimento esquisito.

Eu realmente devia pensar em cogitar a possibilidade de arrumar um boné algum dia, faria esse gesto ficar mais natural.

'Trabalhei aqui antes' Eu expliquei quando ficou óbvio que ele não ia perguntar. Sim, eu explico coisas sem ninguém pedir, mas isso você já deve saber bem.

'Tá' De volta aos monossílabos... Eu não sabia se devia me sentir ignorado ou contente por não estar sendo reprendido ou algo assim.

'Bem... Melhor eu ir' Ensaiei uma despedida esquisita 'Ah, e cuidado pra não confundir o herbicida com o fertilizante, matei um monte de plantas assim' Sorri numa última tentativa de ser amigável.

'Como você confundiu isso? O spray do herbicida é verde e o do fertilizante é roxo!' Não sei por que, mas me senti orgulhoso por arrancar pelo menos uma exclamação do garoto!

E um pouquinho ofendido porque acho que ele me chamou de burro nas entrelinhas, mas não tenho certeza.

'É, eu nunca disse que era a pessoa mais atenta do mundo' Dessa vez eu saí da estufa sem mais conselhos de última hora.

Até dei uma passada na sala de reparos, mas tinha uma moça com um pouquinho de raiva de mim porque eu posso ou não ter quebrado o celular dela enquanto trabalhava lá... Quanto rancor!

Ela sabia que eu não devia estar lá e, com certeza, tinha uma ótima disposição para me denunciar, então eu saí do sétimo andar às pressas, não deu nem para passar pela sala de armas ou pelo dormitório, não que algum desses lugares fosse interessante... Mas, ei, eu queria o tour completo!

Pensei em me esconder na biblioteca do segundo andar, mas, no meio do caminho, lembrei que o Sr. Dragão também devia ter uma disposição incrível para me denunciar, então parei no terceiro andar, na sala de jogos das crianças. Muito videogame e um montão de gente que ainda não tem nada contra mim! Infelizmente, era bem ao lado da sala de segurança.

Não sei se já te contei, mas boa parte do povo da segurança não gosta muito de mim...

Enfim, é difícil andar nesse prédio às escondidas! Que fique de lição, não faça mais inimigos do que pode suportar.

Não que eu me arrependa de algo...

Enfim, some minhas demonstrações artísticas com as denúncias de estar onde não devia em horário de trabalho e você terá um excelente motivo para demissão.

Se eu não ia ficar quietinho e comportado na garagem, qual seria a serventia desse emprego inventado, certo?

E foi assim que eu deixei de ser manobrista, mesmo que eu nunca tenha manobrado um carro de verdade..."

Eu sei que não é a história mais emocionante, mas você já deve ter se acostumado com isso por agora, não?

Só não digo que foi o emprego mais inútil que eu já tive por causa daquela vez que me colocaram de porteiro...

Só digo uma coisa: a porta era automática.

Enfim, assim a vida segue, entre histórias duvidosas, comentários nem tão pertinentes, empregos inventados ou não e tagarelices sem fim.

Mas você deve gostar disso, não? Afinal, continua voltando aqui para ouvir o que eu tenho a dizer!

Espero que ainda não tenha se arrependido dessa escolha!

Bem, agora acho que é minha hora de ir, mas foi um prazer falar com você.

Quem sabe na próxima eu não te conto da vez que eu fui despedido de vez, expulso do prédio e tudo o mais? Aposto que vai dar uma história um pouquinho mais emocionante.

Mas só um pouquinho, não eleve demais suas expectativas.

Até lá.

 


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