Histórias do cara do balcão. escrita por Mestre do Universo dos Vermes


Capítulo 4
Estagiescravidão e assuntos correlatados.




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Hey! Há quanto tempo!

Estão, se lembra daquele tempo que eu repetia o quanto estava entediado e o quanto ficar isolado no balcão no fim do mundo era chato?

Pois é, eu me arrependi um pouquinho... Só sentimos falta do que temos quando perdemos, certo? E, vai por mim, eu senti muita falta desse balcão!

Mas, ei, vamos do começo, certo? Afinal, você deve estar mais perdido que o normal nessa história.

Lembra meu encontro com a cientista e o agente de campo? Excelente, partimos daí então: foi assustador, claro, eu fui de escada bem lentamente para poder enrolar mais um pouco (o elevador pareceu rápido demais...), e, só por garantia, eu coloquei uns dentes de alho e umas pimentas no bolso. Por quê? Fácil:

Primeiro: minha avó dizia que pimenta afasta mau-olhado e energias ruins.

Segundo: todo mundo sabe que alho afasta vampiros.

Terceiro: se todo o resto desse errado, eu podia simplesmente jogar alho e pimenta neles (com sorte, acertando os olhos) e sair correndo desesperado. Ataques surpresa geralmente retardam inimigos, concorda?

Não, eu não precisei apelar para o "plano de fuga", mas, em respeito a minha avó, eu tenho certeza que ninguém olhou feio para mim no caminho, então, sim, afastou mau-olhado!

O que eles queriam comigo, você pergunta? Uau... Quanta curiosidade, espero que você não seja um gato, afinal, todos sabem o que a curiosidade fez com ele...

A cientista e o agente de campo também são muito curiosos. Mas não do tipo legal como você, eles são do tipo assustador e levemente obsessivo. Eles não perguntam, exigem.

Tirando isso, até que foi um lanche agradável. Foi no pátio do "restaurante universitário", que geralmente está além dos limites da minha classe (os quais se resumem ao quarto andar, na verdade) e eu pude comer comida boa enquanto ficava lá. Tudo bem que precisei insistir numa mesa bem longe do restaurante por causa do risco de a Chef Olga-ainda-brava-com-aquela-história-de-incendiar-a-cozinha me ver.

Aquela mulher pode ser bem vingativa! E eu realmente não acho que o fato de eu estar bem longe dela e nem trabalhar mais lá a impediria de bater na minha cabeça com a colher de pau.

Enfim, por detrás dessa fachada de "lanche amigável entre colegas de trabalho", era óbvio que eles queriam algo. Afinal, quem nesse prédio é legal comigo sem querer algo em troca? Com exceção, talvez, da Susete/Selma/Serafina. Se ela quer algo de mim, ainda não descobri o quê...

Eles começaram a fazer perguntas nem tão discretas sobre minha experiência aqui, meus empregos, se eu tinha aprendido coisas interessantes... Depois as perguntas passaram de "nem tão discretas" a "completamente escancaradas" num piscar de olhos e eles já estavam indagando sobre os andares do subsolo. Mais especificamente, os detalhes sobre as salas, o que tinha nelas e, é claro, como chegar lá.

O quê? Você achava que era só apertar um botão no elevador e puft, você chegaria aos andares mais inferiores? Nah... Não seria nada inteligentes deixar "andares secretos" tão óbvios assim.

Minha resposta para os dois enxeridos? "Eu sei que é confuso, mas não é porque eu trabalho no balcão de informações que eu sou um informante".

Pode não ser a resposta mais brilhante, mas valeu a pena só para ver a cara deles! Afinal, não é todo dia que o cara do balcão tem a chance de calar a boca de dois integrantes do "topo da cadeia alimentar".

Obviamente, eles não deixaram isso barato. E eu tive que pagar o preço da brincadeira!

Depois de uma sessão de interrogatório disfarçado longa demais para o meu gosto e mais uma ou duas zoações com eles sem dar nenhuma resposta de verdade, acho que eles desistiram de mim, ao menos por hora.

Então eu pude voltar ao meu querido balcão? Claro! Que não!

Afinal, seres do topo da cadeia são rancorosos e vingativos. Tentaram me "punir" por desperdiçar o tempo deles, zoá-los e me recusar a ser um informante ou algo assim. E foi assim que, pela terceira vez na minha vida, eu fui estagiário.

Quarta se contar o "estagiário/ajudante de cozinha".

Eu nem sabia que eles podiam me exigir como estagiário pessoal, já que, depois dos meus outros fracassos como estagiário, eu fui meio que banido do cargo.

Obviamente, assim como as outras vezes, essa não durou.

Existe um motivo para eu ter sido sempre despedido no fim das contas!

Felizmente, dessa vez não envolveu nenhum cômodo pegando fogo.

E, sério, ou eles são muito próximos do diretor de RH, ou o cara estava devendo um favor dos grandes para eles. Só assim para me deixarem voltar a ser estagiário! Fala sério, não se comete esse erro pela terceira vez!

Como foi voltar a ser estagiário, você pergunta? Bem, foi exatamente como das outras vezes, com o pequeno diferencial de não tentarem fingir que eu não era um escravo. Só faltou aplicarem chibatadas e máscara de flandres! Eu até usei o crachá vermelho de "alvo" que os novatos usam!

Tá bom que, no meu caso, não surtiu muito efeito... O povo já me conhece o bastante para evitar me pedir coisas, mesmo com o crachá vermelho. Afinal, eles sabem que eu sou propenso a acidentes e tudo o mais... E ninguém quer se arriscar a ser escaldado por café quente, ter o escritório em chamas ou os papéis "importantes" arruinados por um ou mais incidentes estranhos envolvendo tinta de polvo e garras de lagosta.

Longa história, mas, em resumo: se você planeja libertar os frutos do mar do destino horrível da panela, não os esconda nos escritórios, ou vai acabar com muitas pilhas de papeis picotados e manchados.

Mas a pergunta que não quer calar: como eu consegui ser demitido dessa vez?

Não foi a coisa mais fácil do mundo, afinal, aqueles dois estavam dispostos a me manter como estagiescravo e me torturar até eu abrir o bico! Sorte que ser demitido é minha habilidade natural.

Temos a Dra. Acre, que, como você pode ver, conseguiu um apelido para eu ter como chamá-la (pior que ela se apresentou naquele lanche pseudo-amigável... Mas eu esqueci completamente!). Por quê "Acre"? Fácil. Primeiro: quase ninguém se lembra da existência dela, já que ela passa muito tempo enfurnada no laboratório, mas, acredite, ela existe! Segundo: ela é rude, desagradável e faz comentários ácidos, se você não sabe, essas também são características "acres" (sim, acre é adjetivo!). Terceiro: Acre é uma unidade pouco utilizada de medição de terras rurais, equivalente a 40% de um hectare, não, isso não tem nada a ver com ela, mas eu queria comentar.

A Dra. Acre parecia ter um prazer enorme em me mandar fazer as tarefas mais estúpidas, humilhantes ou desgastantes possíveis. E ela deve ter se decepcionado porque, bem, eu sou idiota o bastante para "tarefas estúpidas" serem consideravelmente complicadas (em minha defesa, como eu ia adivinhar que "trazer um béquer com Sr" significava "pegar um potinho com estrôncio (seja lá o que isso for)", não chamar um senhor para me ajudar a levar um béquer? ... Ela podia ser mais específica!).

 Depois chegou um ponto no qual ela preferia não me pedir nada complicado demais por falta de paciência para desenhar exatamente o que queria. Então ela apelou e só me pedia coisas simples, mas humilhantes, é uma pena que ela não contava com minha falta de noção/respeito próprio duvidoso. Quando eu digo que aquela mulher é criativa, não duvide! Sério! Ela me colocou numa fantasia de cachorro e me fez andar pelo prédio de quatro patas e na coleira. Por quê? Porque ela podia, simples assim, sem nem uma explicação meia boca de como isso ajudaria no trabalho dela ou algo assim. Obviamente, o resto do povo "topo da cadeia alimentar" aceitou aquilo perfeitamente porque, bem, era eu. Se fosse qualquer outro estagiário, eles reclamariam, diriam que é cruel ou humilhante demais, etc, mas quase todo mundo tem algum ressentimento contra a minha pessoa.

O que eu fiz? Andei por aí engatinhando com uma fantasia peluda, lati bem alto para atrapalhar todo mundo quando estava perto dos escritórios, mordi os tornozelos do maior número de pessoas que consegui, puxei a toalha de mesa do restaurante com os dentes para derrubar tudo que estivesse em cima, me desvencilhei da coleira e invadi a cozinha para fazer bagunça e, se possível, roubar comida no processo... Ela desistiu de me manter como bichinho de estimação aí? Claro que não! Ô mulherzinha teimosa... Mas ela me deixou de castigo. Me acorrentou no escritório dela, que fica ao lado do laboratório. Então eu esperei ela sair (afinal, mesmo como cão, eu gosto de privacidade para certas coisas) e urinei no tapete dela. Infantil? Sim. Nojento? Talvez. Ato impensado? Óbvio! Desde quando eu penso? Mas, depois dessa, ela desistiu de me ter como cachorro.

Mas não desistiu de mim.

Ou, mais especificamente, de me humilhar publicamente.

Ela disse que ia numa festa à noite e queria que eu amaciasse os saltos dela e testasse o vestido. Isso era necessário? Provavelmente não. Era verdade? Não faço ideia, não sei se a Dra. Acre é do tipo que vai a festas... Só sei que eu acabei desfilando por aí com um vestido preto sóbrio e saltos prateados um pouco apertados, mas não absurdamente como você pode imaginar. Afinal, eu calço 38/39, o que, eu admito, não é um número impressionante, e ela calça 37. Não foi a coisa mais confortável do mundo, mas não foi como se o demônio apertasse meus pés.

Se tenho alguma reclamação? Sim. Quem usa vestido preto "sóbrio" numa festa? Fala sério! Tá que eu espero algo assim da Dra. Acre, mas, mesmo assim.... Nem para ser algo que favoreça meu estilo ou destaque meus olhos! Mesmo assim, eu desfilei por aí com a minha cara de pau e um sorriso, quem reclamasse ouviria um "inveja mata" e, se olhar demais, eu já digo "eu sei que eu sou lindo, mas para de me olhar como se eu fosse um pedaço de carne".

Os estagiários riram, talvez felizes por ser eu e não eles, os "sêniores" que já me conhecem só ignoraram ou reviraram os olhos. Não é a situação mais estranha que eu já me meti e eles sabem disso.

Ah, falando em estagiários, lembra da tarefa universal de buscar café? Pois é, normalmente eu já sou atrapalhado, correndo por aí com café quente nas mãos e saltos altos não ajudou em nada a situação. E foi assim que eu arruinei o vestido funerário de festa. Para a minha sorte, o tecido era grosso o bastante para eu não me queimar feio, mas a Dra. Acre se importava mais com o vestido que comigo...

E foi assim que ela me passou para o agente de campo. Sim, me passou como mercadoria. Algo do tipo "não quero mais lidar com essa coisa, se vira".

Agente Chihuahua, por quê? Porque ele late, late, late, mas não morde. E, é claro, como detalhes são tudo: ele treme um pouco quando fica estressado. Já o tamanho não encaixou... Ele não é pequeno e fofo como um chihuahua, é mais alto que eu e parece um armário pequeno. Gosta de se gabar, mas aposto que, quando é hora da ação, não faz metade do que diz (late e não morde). Ele patrulha a fronteira da zona segura de vez em quando e, quando está no prédio, é instrutor de luta e de armamento para os novos recrutas, ou seja, ele nunca realmente se afasta da zona segura, só fica nas bordas. Por quê? Bem, caçar monstros é estressante e a última coisa que precisam é um agente que treme sob pressão, seria um desperdício de munição...

Com ele as coisas não foram tão interessantes. Ele me obrigou a correr umas voltas no pátio para "me pôr em forma" e a levantar uns pesinhos na academia do prédio. Não vou falar das flexões e abdominais porque foram tentativas ridículas e patéticas até para mim... Por que eu tinha que "entrar em forma"? Porque sim. Ele disse que preferia assim e, como um neoescravo, eu só aceito. Acho que a única grande diferença entre ele e meus outros "chefes" foi que ele não tomava café. Não, isso não significa que eu não precisava descer até o térreo um milhão de vezes, mas eu tinha que fazer isso para buscar latas de refrigerante.

Ele até ameaçava uma ou outra coisa, mas nada no nível da Dra. Acre, aliás, ele era bem mais doce que ela. E nunca cumpriu nenhuma das ameaças... Mas uma hora eu enjoei do blá-blá-blá constante dele (eu sei, que hipocrisia... Mas, eu minha defesa, eu falo muito, sim, mas não me gabo) e das corridas pelo refrigerante, além disso, bateu saudades do meu balcão... E, vai por mim, instrutores não deviam se gabar tanto, então eu disse que, se ele não me liberasse para voltar ao balcão, eu contaria aos aprendizes dele que ele nunca nem saiu das fronteiras.

E assim eu voltei.

Viva!

Sentiu minha falta?

Enfim... Eu não acho que fiquei te devendo algo, certo?

Então vai ser só pura tagarelice, como nos velhos tempos...

Vejamos... Depois dessa desventura minha vida não foi realmente interessante. Eu peguei meu tamagotchi com o Vicente... Ou era Vinícius? Talvez Victor... Enfim, eu peguei meu tamagotchi de volta depois de deixá-lo com uma pessoa de confiança caso eu morresse naquele interrogatório. Eu gosto do Valentim/Vagner/Valdir, ele aparece por aqui de vez em quando (não tanto quanto a Soraia/Sandra/Samantha, mas com uma frequência razoável) e é um dos poucos "aliados" que eu tenho que estão acima da base da cadeia alimentar. Ele trabalha na cafeteria, e não, ele não guarda rancor pelos meus desastres com café ou com fogo na cozinha.

E ele cuidou muito bem do meu tamagotchi, Ricardo... Ou é Roster esse mês? Será que era Ronnie? Enfim, o R___ muda muito de nome, muito mesmo. Não é culpa dele, é que eu não sou o mais responsável dos donos e ele morre quase todo mês. Então eu faço a coisa mais plausível: faço um minuto de silêncio respeitoso, aperto o botão de resetar e começo de novo. Eu sempre mudo o nome em respeito ao falecido, afinal, eu não sou como os pais do Salvador Dali para arriscar mexer com a cabeça do meu bichinho virtual o nomeando depois do irmão morto.

Sabe o que eu mais gosto no Vincent/Vero/Vanúbio? Ele sempre mantém meu tamagotchi vivo e feliz! O que, de certa forma, o faz um pai melhor que eu... Sério, acho que o tempo que eu trabalhei com ele foi o que meu bichinho durou mais tempo. E ele também era um "chefe" razoável, não gritava muito comigo e sabia me repreender de modo mais gentil. Além de ter o bom senso de me manter longe dos clientes! Ele era tão legal que eu quase me senti mal por ser demitido da cafeteria... Mas alguns desastres são demais para ele me encobrir! E, acredite, mexer com o café é comprar briga com o prédio inteiro, já que todo mundo vive de cafeína.

Sério, eu acho eu irritei menos gente quando trabalhei na creche que quando estraguei o café. E eu era um "tio da creche" péssimo! Tá que eu era um pouquinho melhor nisso do que cuidando do tamagotchi, já que nenhuma das crianças morreu e teve que ser resetada, mas, mesmo assim, foi muito ruim.

Em resumo, eu perdi as crianças.

Isso aí, perdi um montão de seres minúsculos num prédio enorme e tive que caçá-los por aí e torcer para encontrar todos razoavelmente sãos e salvos. Mas essa é outra história que talvez eu conte outro dia...

Por enquanto, acho que é isso. Bem vindo de volta, eu!

E eu tenho que dizer isso porque ninguém mais vai dizer.

Agora, se me dá licença, vou ficar aqui curtindo o grande vácuo e meu lindo balcão de madeira barata.

Até mais!


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