Histórias do cara do balcão. escrita por Mestre do Universo dos Vermes


Capítulo 3
O professor que sabia de menos...




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Parara Paratiparara Paratiparara Paratipararara...

Incrível como o tédio te faz cantarolar as coisas mais aleatórias...

Mas, ei, quem está reclamando? Fico feliz só de (ainda) ter um emprego!

Enfim, acho que eu fiquei te devendo algo desde a última vez, não?

Vejamos... O que era mesmo? Ah sim! Um pouco de história sobre a guerra dos monstros, o apocalipse e essa baboseira toda.

Ou você mudou de ideia? Espero que não, porque eu vou contar de qualquer jeito. E já aviso que não sou lá um bom professor de história.

Isso porque eu já fui "professor", mas essa é outra história. E não durou.

Vamos lá: tudo começou há uns nove, dez, onze anos no máximo... Perceba a precisão histórica. Deve ser por isso que eu era um péssimo professor.

Essa foi a época da Revolução Monstruosa. Qualquer semelhança com a Revolução Gloriosa é mera coincidência ou plágio descarado, sei lá... Eu não sei explicar direito nenhuma das duas mesmo. A Revolução Monstruosa consistiu basicamente de monstros que viviam debaixo das camas e em armários saindo de suas tocas, mostrando sua existência e exigindo direitos.

Por que, depois de tanto tempo, os monstros decidiram fazer uma mudança tão radical em seu estilo soturno e misterioso de vida? Simples: eles não aguentavam mais as crianças modernas.

Aparentemente, elas eram cada vez mais irritantes, perdiam cada vez mais cedo o respeito e temor por eles e pela escuridão. Esse último era um dos pontos mais problemáticos, já que o escuro é elemento quase sagrado para os monstros, quebrá-lo repentinamente no meio da noite com a luz de celulares, tablets, smartphones, computadores era praticamente heresia. Além disso, havia os incômodos menores: monstros de debaixo da cama reclamavam dos garotos que molhavam a cama à noite, monstros do armário reclamavam da bagunça e até do senso de moda de algumas pessoas, monstros andarilhos (os que não tem um lugar fixo e transitam entre os pontos escuros da casa) reclamavam de objetos jogados pelo chão que os fazia tropeçar.

Como você pode perceber, os monstros ficam séculos calados nas sombras, mas, quando começam a reclamar e exigir, não param mais.

Isso também rendeu algumas criancinhas dizendo "eu te disse" para os pais quando a existência dos monstros foi mostrada, o que eu, particularmente, acho uma inversão de valores, mas, no geral, não é tão relevante à história.

Relaxa, não foi aí que a guerra começou. Os governos mundiais se alinharam e até fizeram uma "trégua temporária por motivos de força maior" e, no fim, um acordo foi feito entre os chefes de Estado e os líderes dos monstros. Acordos foram selados, uma nova Constituição foi escrita, leis foram criadas, uma burocracia infernal, como você pode ver.... Mas ficou tudo bem. A educação cultural nas escolas passou a contemplar a cultura monstro (mas, se você encontrar um monstro, chame de "cultura bestial", eles ficam ofendidos de outra forma), um feriado novo surgiu, o dia da paz entre humanos e monstros, crianças humanas e crianças-filhotes de criaturas começaram a ter uma leve e tímida convivência... Era como o retorno à época do fim do Apartheid, mas, em vez de brancos e negros, eram humanos e não-humanos.

E, obviamente, isso não durou. Afinal, se a paz tivesse durado e o mundo fosse um lugar lindo cheio de aceitação, eu não estaria te contando isso agora, estaria? Uns seis anos depois da Revolução, aconteceu. Guerra.

De acordo com a Constituição, todos os anos os humanos deviam mandar representantes para a manutenção dos tratados e como um sinal de amizade e boa vontade. Nesse ano, entretanto, imprevistos ocorreram.

Em resumo, os monstros ficaram profundamente ofendidos, os humanos não conseguiram remediar a situação, decidiram resolver isso do modo mais razoável possível: declarando guerra!

Mas tudo bem, certo? A humanidade já passou por milhares de guerras e ainda estamos aqui, certo? E guerra não é sinônimo de apocalipse, certo?

Sim, está certo! Se os seus adversários não são monstros profundamente ofendidos que vivem debaixo das camas e nos armários! Mas, adivinha? Não era nosso caso!

E eu vou te contar uma coisa: monstros ofendidos apelam! Então, na mesma noite que a guerra foi declarada, milhares de milhares de pessoas "inocentes", alheias à guerra, foram brutalmente assassinadas. E isso aconteceu em massa no mundo inteiro.

Acho que foi a primeira guerra do mundo na qual os civis se foram antes dos soldados. Mas eles devem ter ido também... Geral foi "dessa para melhor". A parte mais curiosa é que a maior parte das "vítimas" foram adultos. Aparentemente, adultos tem monstros mais assustadores debaixo de suas camas que qualquer criança.

Enfim, depois dessa os governos juntaram todo mundo que restou o mais rápido possível, alerta vermelho, nível crítico, e os juntou em áreas menores e mais controladas. Esse prédio/quartel general, por exemplo, fica bem no centro de uma das zonas seguras.

E acho que isso é o bastante de história por hoje. Senão daqui a pouco você dorme entediado com minha chatice de pseudo-professor... E, seja sincero, se você ignorar a linguagem informal e a falta de precisão histórica, eu não sou um professor tão ruim.

Aliás, quer ouvir como eu virei professor?

Não é uma história emocionante, mas nunca é mesmo:

"Não era bem 'professor', era mais 'tutor'. Até porque esse era o nome oficial... Basicamente, eu tinha que ajudar as crianças grandes e os adolescentes a, sei lá, aprender alguma coisa? Não, eu nunca tive diploma em... Nada, na verdade. Nem licenciatura, nem bacharelado, nem nada. Nadinha mesmo.

Mas épocas de crise exigem medidas desesperadas e, como você pode imaginar, a queda populacional absurda resultou numa queda considerável no número de professores qualificados. Na nossa 'zona segura', por exemplo, o número era praticamente nulo. O que explica perfeitamente porque me escolheram.

Depois do fiasco de quando eu trabalhei na creche (conto essa outro dia), me surpreendeu confiarem a mim a 'educação' de adolescentes. Mas, ei, crianças grandes devem ser mais fáceis de lidar que as pequenas, certo?

Errado.

Vou te contar outro segredo: não importa se é antes, durante ou depois de uma guerra, adolescentes são difíceis e não muito entusiasmados para aprender.

Principalmente quando o professor não é tão mais velho que eles assim.

De um modo prático: não tenho nem 25 anos e alguns deles já tem 16.

Mas não foi isso que me rendeu a demissão. Eu posso lidar com desrespeito, afinal, entendo bem do assunto!

Eles me zoavam? Eu zoava de volta!

Talvez o problema fosse a parte de ensinar... Eu sou uma negação em exatas! E boa parte das biológicas. E, já que tocamos no assunto, humanas também não são meu forte... Mas eu me virava. Lia os livros junto com os alunos, via os exercícios resolvidos para 'colar', pedia ajuda para os mais nerds (sim, às vezes os alunos me davam aula!), enfim, as coisas rolavam.

Entretanto, se vale alguma coisa, eu era melhor que as crianças! Se meus 'alunos' estavam entre os 8 e os 12, eu mandava bem! Depois disso já ia complicando... Quem foi o ser sem luz que criou a álgebra? Aritmética eu podia aguentar, mas álgebra?! Já é sacanagem!

Não, não foi isso que me rendeu a demissão. Afinal, se eu parasse de causar confusão, acho que aturariam minha falta de habilidade. O grande motivo foi, principalmente, a união de dois fatores: uma boca grande demais e olhos funcionais demais.

Por quê? Eu explico.

A parte da boca grande é óbvia, eu falo demais. Você sabe disso, eu sei disso, todo mundo sabe disso. E esse era o problema. Todo mundo sabia. Incluindo meus 'alunos'.

Professor fofoqueiro + alunos curiosos e, vamos ser sinceros, maliciosos = não vai prestar.

Eu fofocava com os alunos, espalhava 'segredos' que não devia (quem se importa se a guriazinha gostava do carinha que namorava a outra guria? É só coisa adolescente... Bem, ela não pensava assim). Mas não eram os segredos jovens bobos que irritaram os 'meus superiores' (eu nem tenho mais certeza de quem estava acima de mim nesse momento), eram os segredos de... Bem, deles.

Ora, não me olhe com essa cara. Todo mundo tem seus segredos. E eu só sou inconvenientemente bom em sabê-los. Vai por mim, as tias da creche não gostam de ter crianças/pré-adolescentes sabendo da 'vida particular' delas, como que aquela tiazinha loira que eu não lembro o nome estava saindo às escondidas com a enfermeira sendo que ela era noiva do cara de colarinho branco dos escritórios do décimo segundo andar.

Não faço ideia de como a fofoca chegou lá, eu juro. Adolescentes são pestes! O noivado já era... É uma pena.

É por isso que eu não ganho mais biscoitos da creche. Nem se eu implorar.

Aliás, é melhor assim. Eu não comeria se ela me desse mesmo... Vai que ela tenta me envenenar?

A enfermeira pediu transferência para outro setor e foi substituída. Acho que a tia da creche até tentou, mas negaram o pedido.

Ela me dá medo agora...

Também tinha o tiozinho da biblioteca... Ou bibliotecário, se você gosta de falar as coisas bonitinho. Ele era gente boa, mas, se tinha um pecado que aquele cara cometia, era ganância. Era do tipo 'é meu', 'é meu', 'é meu'. Por isso, ele escondia as 'riquezas' dele e mentia feio para os chefes sobre a renda/posses dele. Além disso, vez ou outra um anel sumia ou um par de brincos... Eu o chamo carinhosamente de 'Sr. Dragão' pela mania dele de juntar a acumular coisas brilhantes.

Se ele tivesse melhores referências e currículo, provavelmente estaria lá em cima, nos escritórios ou laboratório, onde os tubarões gananciosos ficam, mas ele só conseguiu ser tio da biblioteca... Talvez ele conseguisse uma promoção se o segredo dele não tivesse vazado.

Os alunos me levaram no papo, tá?! Falei sem querer! escapou!

O Sr. Dragão não pensa assim....

Tudo que você precisa saber é que, se eu quero muito um livro, eu peço para a Simone/Shelby/Stacy pegar para mim. Não gosto de chegar muito perto daquela biblioteca! Sorte que isso aconteceu depois de eu ser bibliotecário... Se eu tivesse que trabalhar com ele depois dessa, já não estaria aqui!

Como você deve imaginar, fui demitido da biblioteca também, mas isso foi antes dessa confusão de 'tutor'.

E o outro detalhe, já que eu comentei: eu não me faço de cego.

O que, aliás, me fez ser demitido do trabalho de camareiro.

Exatamente o mesmo motivo, eu não finjo que não vejo as coisas.

Por que isso é um problema? Três palavras: sala de estudos.

É uma sala ao lado da biblioteca onde os jovens podem ir se isolar do mundo, ficar longe das crianças e dos estagiários e do povo da limpeza e estudar. Certo? Errado.

Como eu disse, estudar raramente estava entre as preferências dos adolescentes. E, bem, a guerra não anula os hormônios.

Todo mundo fazia vista grossa e fingia que não via, mas eles usavam a sala de estudos com outros propósitos. Se beijar e 'se pegar', se fosse um dia leve, e fazer 'coisas impuras' sobre a mesa ou mesmo no chão, se fosse um dia mais atrevido. Ninguém ligava porque, se eles estavam quietos e na deles, não era um problema. Com uma guerra rolando, todo mundo pegava leve com 'mau comportamento juvenil', desde que não atrapalhassem.

Claro que eu tinha que ser o tutor chato...

Eu dizia que sala de estudos era para estudar. Ponto final.

Aposto que os tios da limpeza me agradeciam no fim do dia!

Conselho: nunca fique entre jovens hormonais e suas 'atividades recreativas em dupla (ou não)'. Vejamos meu quadro: funcionários me querem demitido/morto/sofrendo, alguns alunos provavelmente faziam bonequinhos voodoo do 'tio chato que se acha mas nem é bom' e, claro, eu não sabia realmente ensinar nem tinha nenhuma qualificação.

Adeus, emprego de tutor."

Mas não se preocupe, consegui outro emprego logo. Na sessão de reparos.

Eu até contaria, mas você já deve ter enjoado de mim por hoje, não?

Além do mais, eu tenho que ir num lugar.

Pois é, que surpresa! O cara do balcão longe do balcão? Loucura!

Não vou mentir para tentar me fazer de durão, estou morrendo de medo. Apavorado. Mas, como não é para os andares do subsolo, acho que eu volto.

Espero, pelo menos.

Parece que tem algo a ver com a nova cientista, aquela que eu nem conheço mas já não confio, e, aparentemente, um agente de campo que chegou e se reuniu com ela.

Os dois querem me ver.

De novo: medo...

Uma cientista e um agente de campo? Preferia cavar um buraco e me esconder feito um tatu!

Já falei dos agentes de campo, certo? São o povo que tem permissão de deixar a "zona segura" e, bem, são nossos soldados.

Enfim, só estou enrolando porque não quero me reunir com eles.

Eles estão bem em cima na cadeia alimentar, o que podem querer comigo? Eu fico abaixo da base! E, vai por mim, não acho que algo bom vá sair daí...

Melhor eu ir andando, senão me atraso demais.

Se eu não voltar, deixo todos os meus pertences ao meu tamagotchi.

Mesmo que eles se resumam ao balcão...

Enfim, até mais!

Eu espero.


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