Histórias do cara do balcão. escrita por Mestre do Universo dos Vermes


Capítulo 20
O começo da bagunça.




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/742270/chapter/20

Hey!

Legal te ter por aqui de novo!

E foi mal pela última vez... Acho que eu fui meio dramático.

Sei lá, fiquei meio mal por ser demitido de novo. Não acontecia há, tipo, uns dois ou três meses? Fiquei mal acostumado!

E dessa vez é pra valer...

Acho que fiquei mal acostumado por não poder ser demitido durante a guerra!

Vai por mim, ter passe livre para fazer qualquer trapalhada imaginável ou inimaginável sem ser demitido com certeza deixa as pessoas acomodadas!

Aliás, estou te devendo uma explicação para isso desde que nos conhecemos, não? Acho melhor me explicar agora!

Até porque é agora ou nunca...

Vamos lá então:

"Hora da historinha! Êêê!

Algo me diz que isso ainda vai me dar uma nostalgia...

Sei lá, tem algo a ver com esse clima todo de ser 'a última história'. É como o último dia de aula do terceiro ano do ensino médio, tem algo meio nostálgico meio aliviado. É uma sensação esquisita.

Enfim, eu já te falei do meu primeiro emprego pós-estagiescravidão: diplomata!

Sim, aquele emprego que eu escolhi quase na pura sorte por pura falta de ideias. Ainda não me arrependo.

Tá, talvez eu devesse me arrepender um pouquinho, mas ainda acho que foi uma excelente escolha! Eu só não soube preencher bem os pré-requisitos...
Eu era o novato, lembra? O cara que praticamente só estava na profissão pelos (deliciosos) jantares executivos.

Pois é, não durou...

Lembra que eu comentei dos encontros anuais entre os representantes monstros e os representantes humanos para manutenção dos acordos e da 'amizade'? Acho que eu te expliquei isso quando comentei a Revolução Monstruosa... Enfim, se você não lembra: De acordo com a Constituição, feita depois da Revolução Monstruosa, todos os anos os humanos deviam mandar representantes para a manutenção dos tratados e como um sinal de amizade e boa vontade. Nesse ano, entretanto, imprevistos ocorreram e a guerra começou...

Ok, foi isso que eu expliquei da outra vez, mas, como já não deve ser surpresa pra mais ninguém: a culpa foi minha!

É, isso aí, toda minha... Foi o primeiro emprego que eu arruinei!

Vou explicar direito, mas já adianto que não é uma história longa:

Então, eu era o novato na diplomacia, mas tinha sido estagiescravo há um tempinho considerável e isso me rendeu uns pontos a meu favor, então ganhei a 'honra' de ser o acompanhante de um dos representantes.

Isso aí, eu não era nem o representante oficial!

E, junto com essa 'honra', veio algo que eu fiquei conhecendo bem até demais depois da estagiescravidão: se você está subordinado a alguém, esse alguém vai te dar todo o trabalho chato que ele não quer fazer!

No caso da diplomacia, a parte chata era o 'discurso de abertura'. A parte que o representante fazia um discurso em terassá (como respeito à cultura deles)agradecendo a amizade dos monstros e comemorando as boas relações ou algo assim. Era pura baboseira repetitiva que se repetia ano após ano.

E, como meu 'chefe representante oficial' não estava a fim de ficar repetindo as mesmas coisas de sempre como um papagaio ou qualquer coisa assim, ele passou a tarefa pra mim. Que divertido! Só que não...

Eu tinha 10 dias para conseguir falar um discurso de uns 5 a 7 minutos em terassá. Ainda acho maldade passar isso para o novato! De acordo com o resto da diplomacia, até um completo idiota conseguia fazer um discurso curto de abertura e, mesmo se eu não conseguisse 'aprender' terassá em 10 dias, eu só precisava decorar foneticamente o discurso.

Decorar foneticamente, de acordo com eles, era tão fácil que até um macaco treinado faria. Sim, as pessoas na diplomacia podem ser meio cruéis... Mas são gente boa também. Só acho que deviam ter escolhido o macaco para fazer o discurso no meu lugar.

Eu passei 10 dias com as caras enfiadas nos livros tentando aprender pelo menos o básico do terassá, assim eu não me sentiria um completo idiota falando palavras que não faz a menor ideia do que significam. Depois de uns 8 dias, percebi que aprender terassá clássico é um inferno e, na época, minha versão simplificada obviamente não existia... Isso me deixou com 2 míseros dias para decorar foneticamente um discurso inteiro.

E, eu não sei se você reparou, mas decorar coisas não é minha praia...

Não consegui nem decorar a trigésima cidade inútil daquele lugarzinho lá para a minha prova de geografia do ensino infantil!

Mesmo assim, quando o dia chegou, coloquei meu melhor terno (que, na época, era meu mesmo! Nada de terno emprestado!) e subi no palco. Sinceramente, eu sentia que ia vomitar meu próprio coração a qualquer momento, provavelmente junto com meus intestinos, considerando o modo que eles se reviravam... Mas eu subi no palco assim mesmo e dei meu melhor sorriso amarelo!

Foi exatamente esse o momento que eu fiquei me perguntando por que diabos eu escolhi uma carreira na diplomacia...

Como eu sei que devo ter falado tudo errado? Primeiro, porque os diplomatas 'de verdade' tentaram muito me tirar do palco no meio do discurso, mas eu não percebi que o gesto significava 'sai já desse palco, seu idiota!', eu achei que eles estavam só agitando os braços pra me animar. Sabe, como nos shows de rock?

Segundo, o discurso devia ter de 5 a 7 minutos, o meu teve 11 cravados. E isso mostra que eu devo ter cometido uns erros consideráveis!

E, é claro, terceiro, mas não menos importante: os monstros declararam guerra!

Aparentemente, meu discurso ofendeu profundamente toda a comunidade monstro e eles queriam minha cabeça numa bandeja de prata ou seja lá qual for o equivalente terassá para isso...

E não, eu não fazia a menor ideia de como pedir desculpas em terassá, então tudo que pude fazer foi sair correndo daquele palco e me abrigar na sala do chefe dizendo algo nas linhas de 'Chefe! Eu estraguei tudo! Não deixa eles me matarem!". Não tenho certeza do quanto deu pra entender, porque eu falei isso em pânico e saiu tudo muito rápido e embolado... Mas eu fiquei a salvo, pelo menos na hora. Os monstros profundamente ofendidos se retiraram até pacificamente do prédio e a reunião anual foi encerrada mais cedo.

Não, nem os diplomatas conseguiram diminuir a tensão. Eu devo ter falado algo bem sério!

Depois disso, eu descobri quem era o Anselmo... Motivo? Ele exigiu que a humanidade me entregasse para ser morto como símbolo de como eles estavam arrependidos ou qualquer coisa assim. A cultura monstro é meio radical com as punições. Vide: Presinhas de Prata, expulsa de casa por comer gelatina em pó e roer mesas.

Eu devia ter comido gelatina em pó e roído mesas... A punição é pior para quem ofende todos os monstros existentes num discurso de 11 minutos!

O chefe, obviamente, não via grandes problemas em me sacrificar pelo bem do resto da humanidade. Nunca fomos próximos nem nada. Eu era só um reles empregado que cometeu a maior estupidez possível.

E foi aí que eu agradeci mentalmente todas as entidades superiores já criadas por ter escolhido diplomacia. Por quê? Porque, graças a isso, eu já tinha estudado um pouco regras internacionais. Mais especificamente, asilo político.

Funciona mais ou menos assim: se uma sociedade inteira quer me matar do modo mais cruel e frio possível, eu tenho o direito de pedir abrigo e proteção para outra sociedade (de preferência, uma que não queira me matar do modo mais cruel e frio possível) e essa sociedade deve me conceder todo o suporte necessário.

Obviamente, eu ganhei a causa! (Não estaríamos aqui se eu tivesse perdido, certo?) Só não tenho certeza de como, mas ganhei... Não fui entregue como oferenda para aplacar a fúria dos monstros.

E aí a guerra foi declarada oficialmente e a humanidade inteira precisou pagar pelo meu erro...

Como você pode imaginar, um montão de gente ficou de birra comigo por isso. Me surpreende que eu ainda tenha conseguido fazer amigos depois disso! Sabe, é meio complicado achar pessoas dispostas a se relacionar com o cara que causou o extermínio de boa parte da população mundial...

Enfim, foi assim que eu fiquei meio que de 'prisão domiciliar' nesse prédio. Nos primeiros anos, eu não conseguia dar dois passos lá fora sem alguém de olho em mim! Depois as coisas ficaram mais de boa, mas, no começo, era pesado!

E o prédio mudou bastante também. Sabe, quando eu fui estagiário antes da guerra, aqui era um prédio normal, mas, quando eu virei estagiário depois da guerra, ele foi se transformando nessa bagunça que você conhece hoje.

Aliás, se não deu pra perceber, me rebaixaram. Estagiscravidão parte 2 - Edição pós apocalíptica!

E depois, bem, eu fiz muita bagunça como estagiescravo e virei contador, depois fiz muita bagunça como contador e virei ajudante na cozinha, depois na lanchonete, depois na cafeteria, depois na enfermaria. Aí fui camareiro, fazendeiro, cara da segurança (o que vigia as câmeras. Big Brother, lembra?), tio da creche, bibliotecário, tutor, cara dos reparos, jardineiro, manobrista, ajudante nos treinos de luta, tio da limpeza, recepcionista, agente de campo, porteiro e cara do balcão.

Nada mal, não? Garanto que está certo porque preparei meu currículo ontem! Afinal, sinto que vou precisar dele num futuro próximo...

A única parte ruim é a de 'referências'. Não consegui pensar em nenhum ex-chefe meu que me recomendaria!

Enfim, pensamente positivo: vai dar certo!

E eu admito que me aproveitei um pouco do fato de não poder ser demitido... Afinal, se não podiam me mandar embora, por que não aproveitar e causar alguma confusão? Mas não foi um ato muito nobre!

Não siga meu exemplo!

Admite, vai, é um currículo impressionante para um cara com menos de 25 anos! O único problema vai ser explicar por que eu só durei uns 3 ou 4 dias em boa parte desses empregos...

Será que eu ainda consigo passar numa entrevista de emprego sem colar?

E eu estou, sim, devaneando livremente porque, bem... A história acabou. Foi isso. Eu disse que era curta.

Decorei um discurso errado, falei besteira, provoquei uma guerra, consegui asilo político e fiquei sendo um grande problema para o prédio desde então.

Aliás, até hoje eu não faço ideia do que eu falei, acredita?

Passei quatro anos tentando aprender terassá para nada! Eu não consigo lembrar o que eu disse exatamente, então é impossível traduzir e ver o que diabos é tão ruim a ponto de causar uma guerra em 11 minutos!

Aliás, se eu não consigo aprender terassá clássico em 4 anos, imagine em 10 dias! Acho que os diplomatas superestimaram o macaco... Se bem que eles disseram que o macaco decoraria foneticamente o discurso, não que ele aprenderia terassá...

Enfim, acho que não importa mais, acabou.

Acabou tudo. Esse prédio, essa história, a guerra.

Hora de a vida voltar ao normal".

Estou bem mais feliz que da última vez, sério mesmo.

Afinal, eu sou jovem e o mundo ainda está aí, inteirinho, esperando ser explorado! E eu ainda tenho uma mochila em estado aceitável... Talvez eu dê uma de mochileiro e vá para algum lugar bem longe dessa cidade, conhecer gente nova, começar de novo...

Ou eu posso ficar aqui mais um tempinho.

Ou eu posso juntar muita comida e passar um mês acampado no laguinho junto com as rãs.

Ou eu posso dar uma de mochileiro, mas ir para um lugar mais perto dessa cidade. Se bem que eu adoro aventuras... E quanto mais longe, maior a possibilidade de aventura!

Eu poderia ir para outro país. Meu inglês é bem aceitável (aceitável o bastante para não causar uma guerra, pelo menos) e até meu terassá melhorou muito. Eu poderia aprender francês... E que lugar melhor para fazer isso que na França? (Ou no que sobrou dela...).

Bem, são muitas possibilidades! Estou até empolgado!

Enfim, acho que é isso.

E me desculpa por não te contar isso antes... É que eu fiquei muito empolgado por ter alguém que sempre volta para ouvir minhas histórias! E, bem, todo mundo do prédio pegou birra de mim pela guerra, então eu achei que, se você soubesse, não voltaria mais...

Mas isso foi besteira, não? Você voltou!

E é meio bobo ficar com raiva de mim por algo que aconteceu há cinco anos...

Tá, eu causei o apocalipse, e daí? Passou.

Agora acho melhor eu ir me despedir do povo e terminar de arrumar minhas coisas. Amanhã é meu último dia.

Foi um prazer ter você por aqui! Contar minhas histórias me ajudou a, sei lá, manter a sanidade durante uma guerra? Principalmente quando me jogaram no quarto andar e eu passei a não ver muita gente. Isolamento enlouquece, sabia?

Posso contar com você aqui amanhã para nos despedirmos?

Isso é, se você não ficou mal comigo por essa coisa toda de ter causado a guerra e o extermínio de boa parte da humanidade...

Espero que a gente se veja lá!


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!