Histórias do cara do balcão. escrita por Mestre do Universo dos Vermes


Capítulo 2
Se não aguenta o calor, saia da cozinha.




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Uau, você voltou para outra rodada, impressionante.

Você deve estar mais sem ter o que fazer do que eu. Tédio é algo indescritível, não? Te leva a lugares inimagináveis.

Bem, agora eu estou na pausa para o lanche. O horário que a maioria das pessoas usa para socializar no térreo em uma das mesinhas da lanchonete ou da cafeteria. Então, obviamente, eu estou atrás do balcão comendo uma barrinha de cereal.

Viva! Lanche!

Por que eu não estou na lanchonete, você pergunta? Bem, é simples, não confio na comida de lá. Nem um pouquinho.

Aliás, comida nesse prédio, como todo o resto, é algo bem hierárquico. Temos três lugares "oficiais" para conseguir comida: a lanchonete do térreo, onde você vai encontrar coisas não identificadas fritas ou assadas, talvez algumas latinhas de refrigerante (ou de algo mais alcoólico, se você subornar alguém) e, ocasionalmente, uma salada de frutas cheia de leite condensado, uma caixinha de suco ou outra dessas coisas que tentam se passar por saudáveis e falham miseravelmente; também tem a cafeteria, bem ao lado da lanchonete e com mais movimento porque, vamos encarar os fatos, a maior parte da população desse prédio é movida a café, também tem uns petiscos e bolinhos de vez em quando; e, por último, o restaurante do nono andar, que eu apelidei carinhosamente de "restaurante universitário" porque é onde as coisas mais decentes realmente estão.

Como você deve ter imaginado, o restaurante do nono andar não é para qualquer um. Você precisa ser alguém para entrar lá e, na minha escala da cadeia alimentar, eu diria que você deve estar do oitavo andar para cima para ser alguém. Lá tem comida de verdade e de qualidade menos duvidosa... Ouvi falar que tiveram até lagosta numa data especial.

Como você também pode imaginar, eu não tenho nível para entrar lá. Esse é um dos baixos de ser um excluído... Mas eu e minha barrinha de cereais estamos muito felizes juntos, obrigado por perguntar.

Extraoficialmente, você provavelmente pode subornar alguém para te arrumar "comida boa" quando você é dos níveis mais baixos. Ou pode implorar uns biscoitos de chocolate ou aveia para a moça que cuida da creche, se estiver disposto a se rebaixar a esse nível. Os biscoitos valem a pena. Eu não faço isso porque não confio que as pessoas me dariam o que eu quero ou, sei lá, não tentariam me matar envenenado se duvidar... É, eu posso ser meio paranoico.

Não me olhe assim, se você tivesse irritado tanta gente quanto eu, também se preocuparia em ter um ou outro inimigo... Ou vários.

A moça da creche, por exemplo, não vai muito com a minha cara, mas essa é outra história.

Às vezes a Shirley/Serena/Sabrina aparece para comer comigo, mas ela deve estar ocupada. Limpeza é um trabalho sem fim! E eu não ligo muito de comer sozinho. Só eu e "o grande vácuo".

"O grande vácuo" é meu nome carinhoso para o espaço vazio do quarto andar. Esse, como você já sabe, é um andar esquecido. Sim, tem meu balcão renegado de informações, e o achados e perdidos, e os armários, despensas e depósitos, mas, tirando isso, também tem um grande espaço vazio que fica bem na minha frente. Só isso, um espaço vazio. Sem mesas ou cadeiras. Sem tapete. Apenas nada. O grande vácuo resume bem o que é esse andar.

Isso quase me dá saudades do tempo que eu trabalhava na cozinha... Quase.

Ah, eu comentei que eu já trabalhei na cozinha?

Não? Bem, era mais ou menos assim:

"Eu tinha acabado de ser demitido... De novo. E não, não foi da equipe de faxina, isso aconteceu bem antes de eu virar tio da limpeza. Eu tinha sido despedido do emprego de contador. Não que eu gostasse dele, matemática nunca foi meu forte... O que provavelmente foi uma das razões de me demitirem.

Bem, eu era o novo ajudante de cozinha. Perceba que não confiavam em mim nem para ser cozinheiro de verdade ou, sei lá, garçom, eu era um mero ajudante. Não que isso me incomodasse... Pelo menos era no restaurante 'universitário' do nono andar! Ainda era um emprego com um certo status.

Não que eu ligue muito para status... Mas eu já tive bastante, se quer saber.

Enfim, ajudante de cozinha. Eu tinha que obedecer à Chef Olga... Ou era Olívia? Talvez Osvalda/Osvaldina. Vou chamar de Olga porque ela tinha cara e jeito de Olga.

'Olga' era uma mulher 'volumosa', por assim dizer, não obesa, mas com certeza volumosa. Ela era grande em muitos sentidos, na circunferência, nos seios, nas coxas, nas mãos e, é claro, no ego. Aquela mulher podia ser grande, mas seu ego era mais! E, como tal, ela não admitia um erro sequer na cozinha dela. Às vezes eu acho que me puseram lá para tentar me disciplinar ou algo assim, de volta à época que ainda achavam que eu tinha jeito...

A Chef usava os cabelos presos em dois coques, um de cada lado da cabeça, e tinha um sotaque forte de um lugar que eu não sei identificar (Rússia, Finlândia, Suécia, Suíça? Onde ficam os três últimos aliás? A Escandinávia ainda existe? Se sim, quero chutar esse também!), mas, o que mais importava era sua grande colher de pau. Ela usava para mexer panelas? Não! Para bater bolo? Quase. Para bater na gente? Na mosca! Acertou em cheio! (Ela também acertava em cheio, aliás)

Acho que eu não conheci uma pessoa que nunca levou uma colherada na cabeça trabalhando lá. Isso valia para todo mundo: cozinheiros, garçons, ajudantes, até entregadores se duvidar. Isso quando ela estava de bom humor, senão ela pegava logo uma colher de ferro e, nesses dias, ninguém se atrevia a olhar torto para ela, quanto mais errar!

Isso é, exceto esse idiota que vos fala. Afinal, não é como se eu pudesse escolher não fazer bobagem, isso é parte de mim! Então, sim, já levei umas colheradas bem dolorosas na cabeça, nuca, mão, antebraço e onde mais ela pudesse mirar.

Eu jamais chegaria perto dessa mulher se ela estivesse segurando uma faca!

O que eu fazia como ajudante? Ah, isso é simples: tudo que mandavam.

Aparentemente, 'ajudante' é um modo bonito de falar 'estagiário da cozinha'. E, como todos sabem, 'estagiário' é só um termo moderno para 'escravo'.

Eu descascava verduras? Sim! Eu descascava direito as verduras? Não! Mas dá um desconto, eu não sei descascar verduras. Eu lavava pratos? Sim! Eu quebrei alguns? Também! Eu jogava o lixo fora? Claro! Eu buscava café para quem quisesse? Óbvio, aparentemente, essa é uma tarefa universal dos estagiários.

Enfim, A Chef Olga era uma mulher notável em vários sentidos, era uma cozinheira de mão cheia, sabia impor disciplina e tudo o mais... E às vezes eu suspeito que ela tomou 'me disciplinar' como a missão da vida dela enquanto eu trabalhava lá porque, sério, ela pegava no meu pé muito mais que no do resto do povo.

A boa notícia é que, depois de muitas colheradas, eu aprendi a descascar aceitavelmente batatas e cenouras.

A má é que, bem, eu posso ou não ter acidentalmente ateado fogo à cozinha...

Mas, ei, antes de me culpar, ouça a história toda!

Eu já estava há uns três dias sem fazer besteira, o que era meu recorde pessoal. E a Chef estava satisfeita pelo meu progresso. Assim, não que ela demonstrasse... Mas ela batia mais suavemente na minha cabeça, então eu acho que sim. E, pela primeira vez, eu fiquei com a tarefa de vigiar o forno.

Basicamente, eu só tinha que pré-aquecer o forno, pôr seja lá o que tivessem preparado dentro e, quarenta minutos depois, tirar.

O problema? Você realmente acha que eu passei 40 minutos quietinho esperando? Fala sério, eram 40 minutos!

Então eu acabei zanzando pelo pátio 'executivo', aquele que fica ao lado do restaurante 'universitário' e é proibido para o meros mortais. Lá tinha uma guria cujo nome eu não vou me lembrar de jeito nenhum, mas que era estagiária.

Não, não era 'escrava da cozinha', esse sou eu, ela era 'escrava clássica' mesmo. Daquele grupo que serve os executivos dos laboratórios e dos escritórios e sonha em poder ascender para exigir café do próximo estagiário azarado. Ela estava na fila do restaurante, o que, vai por mim, é um erro.

Por quê? Bem, o horário estava errado. Era lá pelo meio da tarde, hora do lanche mais ou menos, e, nessa hora, você não vê estagiários da fila do restaurante. Você até pode ver, raramente, um ou outro pegando uma marmita para os carinhas de colarinho branco que são 'ocupados demais para sair do escritório nem que seja para comer’, mas isso é no almoço. E só quando alguém não está a fim de aproveitar a pausa, o que, obviamente, não é tão comum.

Agora, no meio da tarde, todo mundo pede café, como qualquer hora do dia. Gente movida à cafeína, lembra? E eu vou te contar um segredo: por melhor que seja o restaurante 'universitário e sofisticado', ele não serve café.

O motivo? Não faço ideia, talvez para torturar os estagiescravos...

'Bom dia!' Eu cumprimentei com um sorriso simpático/irritante.

'Ah, claro, bom dia.' Ela retribuiu rápido, mudando o peso do corpo de um pé para o outro e olhando repetidamente do início da fila para o relógio. Alguém estava em maus lençóis...

'Estamos apressados hoje, não?' Brinquei.

'É, foi mal.... Eu normalmente sou mais simpática, mas é que meu chefe vai me matar por demorar com o café dele' Ela riu de nervoso.

Podemos ver que se trata de uma novata porque:

—Ela não sabe onde pegar café.

—Ela me tratou como uma pessoa normal.

—E, por último, mas não menos importante: ela tinha um crachá vermelho, que é como a marca da besta dos estagiários. Significa 'em teste/treinamento' e é o que os 'novos escravos' usam antes de serem efetivados e entrarem oficialmente na cadeia alimentar.

Sim, as pessoas abusam muito dos 'crachás vermelhos', afinal, quem perderia a chance de se aproveitar de alguém novo, inocente, que ainda não sabe como as coisas funcionam e sente a necessidade de agradar todo mundo por medo de ser despedido?

'Nesse caso, acho melhor encomendar o caixão' Eu ri.

Sim, meu senso de humor é duvidoso. Mas, ei, a essa altura você já deve estar ciente do fato.

'Hm? Por quê?' Ela pareceu meio perturbada pelo comentário.

'Bem, essa fila na qual você está gastando seu tempo não serve café. A cafeteria fica lá embaixo, no térreo, à direita, ao lado da lanchonete'.

Ela só grunhiu algo sem muita dignidade e ficou com uma expressão desconsolada.

E, bem, se lembra do meu coração mole...?

'Quem é seu 'chefe' afinal?'

Ela disse que era o Michael, ou era Marcos? Talvez Michel? Marcelo? Enfim, eu lembro dele como 'Sr. Fuinha com prisão de ventre'. Por quê? Fácil, ele parece uma fuinha com o corpo esguio e a carinha comprida de roedor, o que até seria fofinho se não fosse pelo temperamento. Daí veio o 'com prisão de ventre', já que, bem, o jeito irritadiço e mau humor constante falam por si só... É autoexplicativo.

E eu disse para ela correr pelas escadas, já que assim chegaria mais rápido que pelo elevador, e pedir um Cappuccino italiano no capricho, de preferência com espuma extra, e implorar uns biscoitos de aveia para a moça da creche no segundo andar. Ela já estava tão atrasada que nem questionou, só agradeceu.

Segredos para a sobrevivência quando se está na base da cadeia alimentar (ou seja, estagiário): saiba como amolecer o coração dos seus superiores, e isso geralmente se dá pelo café predileto de cada um. Os biscoitos de aveia são um adicional para o Sr. Fuinha porque aveia é boa para a digestão e o deixa bem menos irritadiço. Ninguém merece sofrer pelo intestino preso dos outros!

Como você pode imaginar, eu sofri bastante antes de aprender esses truques... Então, não, eu provavelmente não devia entregá-los assim, de mão beijada, mas coração mole dá nisso.

Ei, se lembra daquela coisa que eu deixei no forno? Não? Pois é, nem eu.

Esqueci completamente.

E, quando me dei conta do cheiro de queimado, corri mais rápido que a estagiária nas escadas. Previsivelmente, seja lá o que fosse aquela comida cheia de frescura, estava arruinada, queimada e provavelmente tinha gosto de carvão agora. O que eu fiz? Me preparei psicologicamente para a sinfonia da colher de pau no meu crânio e peguei um pano para tirar a bandeja de cinzas do forno.

Não pergunte como, quando ou por que, isso foi o que rolou: de algum modo eu consegui atear fogo no pano no processo de tirar a bandeja de carvão, me desesperei porque, bem, fogo! Derrubei a bandeja quente no chão, taquei o pano em chamas o mais longe da minha mão possível, o que, por acaso, foi direto na mesa. E sim, a mesa tinha uma toalha de mesa chiquezinha, de algodão e, é claro, inflamável.

Em resumo, não me deixe tomando conta da cozinha.

E a Chef Olga escolheu justo esse momento para chegar, claro.

Foi uma bagunça. Era fogo e água para tentar apagar o fogo e garçons alarmados tentaram pegar o extintor de incêndio, mas com meia dúzia deles amontoados na cozinha nem dava para se mexer, e alguém tropeçou na bandeja que eu derrubei e caiu bem em cima da Chef Olga, e eu tentei segurar a Chef (quem sabe assim ela não me mata tanto?) mas acabei esbarrando na farinha e derrubei o saco em cima de todo mundo...

Enfim, posso resumir esse episódio em três cores: preto por causa das cinzas e coisas que viraram carvão, branco, porque tudo e todos acabaram cheios de farinha, e vermelho, que foi a cor do rosto da Chef Olga, corado de raiva, e a cor dos meus hematomas depois que a confusão acabou e a colher de pau cantou.

A boa notícia é que eu me recuperei!

A má é que eu fui demitido.

Se bem que, depois dessa, talvez eu devesse agradecer... Eu correria risco de morte naquela cozinha!

Você poderia imaginar que, por causa desse episódio, eu seria banido de todas as cozinhas do prédio. Na real, eu pensei isso também. E eu estava errado.

Onde foi meu próximo emprego? Na lanchonete! Não era tão glamoroso quanto o restaurante, mas me surpreendeu me colocarem outra vez numa cozinha.

Enfim, minha pausa para o lanche está acabando e você já deve estar de saco cheio desse meu blá-blá-blá. Só vou dizer que cozinhas menos glamorosas ainda pegam fogo, óleo quente e eu não são uma boa mistura e, depois de trabalhar lá, minha confiança naquela lanchonete decaiu mais ainda. Sério, não coma lá a não ser que esteja realmente desesperado de fome.

Não importa, eu não durei nesse emprego mesmo..."

Enfim, foi um prazer te ter por aqui de novo.

A Sofia/Scarlet/Sasha ainda não apareceu... Será que ela ficou com o trabalho de limpar os laboratórios um ou dois hoje? Dos quatro, esses são os mais demorados.

E complicados. Exigem praticamente todo o equipamento de proteção.

Falando dos laboratórios, se lembra da moça nova? Aquela da fofoca? Pois bem, aparentemente é uma cientista. E trabalha nos laboratórios mais do topo, ou seja, já não confio nela.

Afinal, cientistas do topo são os que costumam projetar as armas químicas contra os monstros, e esse é um trabalho suspeito e ingrato.

Aliás, eu comentei que nossa guerra pós-apocalíptica é contra monstros?

Ah, bem, tanto faz. Olha a hora. Nos falamos depois, se você ainda voltar aqui.

Agora é hora de ficar apenas eu, meu balcão e o grande vácuo.

Bye.

 

 


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