Histórias do cara do balcão. escrita por Mestre do Universo dos Vermes


Capítulo 19
A palavra importante.




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Hey! Bom te ver por aqui!

É, eu sei, é estranho eu falar com você assim, sem aquela pausa de alguns dias para arrumar novas fofocas e te deixar em paz. Foi mal, mas achei melhor a gente conversar logo!

E aquela história da conferência deve ter atiçado pelo menos um pouquinho a sua curiosidade, não?

Bem, se quer minha sincera opinião, foi tão chata e arrastada quanto uma conferência pode ser. Sério, se fosse um pouquinho mais chata, eu não chamaria de "conferência" e sim de "arma bélica para matar as pessoas lentamente de tédio".

Ok, eu preciso de um nome mais curto para isso... Por hora, vamos chamar de ABMPLT.

Puxa, até a sigla é longa demais de falar!

Que tal "Arbete"? Seria um diminutivo de "Arma Bélica de Tédio".

Ou, para ficar bom, vamos chamar de "Bete"!

Pronto, bem melhor. Aliás, alguém devia investir em Betes porque, sério, é o modo mais fácil de ganhar uma guerra! Mate todos os seus inimigos de tédio! Ou, melhor ainda, não faça a guerra! Assim não precisa investir em armas para ganhá-la!

Enfim, é por isso que ninguém jamais me pôs para trabalhar no setor bélico.

Mas, ei, eu estava falando da conferência que, por pouco, não foi uma Bete, certo? Pois bem, só para você entender meu ponto: ela durou 19 horas, 23 minutos e 12 segundos antes de ser declarada encerrada. Eu comecei a contar os segundos quando passou de 14 horas... Como as pessoas suportam essas coisas?

Tá bem, eu posso entender que negociar a paz deve ser complicado, especialmente quando você acabou de assumir a chefia e precisa negociar com o chefe supremo dos monstros ou algo assim (admito que eu não sei, ao certo, qual o cargo oficial do Anselmo), mas, fala sério, dezenove horas?! Não sei você, mas eu, nessa situação, desistia da paz depois da décima hora e mantinha a guerra simplesmente por questões práticas! Quem aguenta passar dezenove horas negociando?!

Aparentemente, a Branca de Neve.

Pelo lado bom, ela conseguiu!

Pelo lado ruim, eu passei dezenove horas, vinte e três minutos e doze segundos assistindo essa negociação. Se eu soubesse que duraria tanto, nem teria ido!

Aliás, a Branca de Neve provavelmente ficaria bem mais aliviada se eu não tivesse ido.

Depois de passar tanto tempo no balcão de informações, eu devia estar acostumado a passar horas no tédio... Aparentemente não é assim que funciona. Meu corpo se recusa a se adaptar ao tédio!

Pelo outro lado bom, foi uma boa oportunidade de praticar meu terassá. Eu não me arrisquei a ir longe demais, mas consegui cumprimentar, me despedir e fazer pedidos simples sem grandes problemas. Vai por mim, é um grande avanço!

As coisas ficam tão mais fáceis (o que não significa "fácil", significa "mais fácil que tentar não engolir um peixe vivo enquanto se engasga com sua própria saliva")depois que você aprende o "segredo" de como falar terassá... Pelo menos eu achei, mas você não devia confiar muito nisso porque fui eu quem inventou esse segredo, então não garanto nada!

Quer saber ou eu estou te entediando? Como você sabe, o assunto terassá não é dos favoritos da população em geral...

Pois bem, vou contar de qualquer modo mesmo: lembra de todas aquelas "instruções" de como falar terassá (colocar um peixe vivo na língua, engolir gelo, imitar um liquidificador, se enforcar enquanto pronuncia...)? Esqueça todas elas, são inúteis. E eu levei um bom tempo para me tocar desse fato! Se você procurar em livros sobre terassá (que já são bem poucos...) ou perguntar para alguém que "se especializou" nessa área (se é que sobrou alguém), vai encontrar exatamente as mesmas instruções que eu comentei. Por quê? Porque é assim que se fala terassá!

E é aí que está o detalhe, é assim que se fala terassá. Sabe, aquele terassá bonitinho, perfeito e sem sotaque falado pelos monstros que nasceram e se criaram nesse idioma. Mas tem um detalhe que, aparentemente, ninguém se tocou: não somos monstros! Eu sei, eu sei, que informação chocante...

Como não somos monstros, é meio óbvio que não temos a anatomia apropriada para falar um terassá bonitinho, perfeito e sem sotaque! Então, se você já fez qualquer aula para aprender qualquer língua e ouviu as famosas reclamações dos professores porque você precisa "perder o sotaque", bem, você vai ter que ser meio contra intuitivo no terassá: você deve ter sotaque!

E é por isso que eu meio que "simplifiquei" o terassá para um terassá com sotaque humano. Sua nacionalidade provavelmente influencia nisso também, mas o sotaque humano é basicamente o mesmo. Qual a vantagem? Você consegue pronunciar sem sentir que sua garganta te odeia e é bem compreendido pelos monstros. Qual a desvantagem? Você jamais receberá um daqueles elogios de professores de idiomas do tipo "nossa! Como você fala bem! Não tem sotaque algum!".

Como você pode imaginar e, a essa altura, deve saber bem, eu tenho muito tempo livre! Sempre tive, já que eu tinha muito tempo entre um emprego e outro, quando eu só vadiava por aí e procurava o que fazer, e, mesmo empregado, a maioria dos meus trabalhos não exigia muita ocupação em tempo integral (como ser manobrista, ou porteiro, ou jardineiro...). Como cara do balcão, eu sou praticamente um desocupado profissional!

Por curiosidade, eu levei pouco mais de quatro anos para cair na real e parar de seguir as "instruções" para falar terassá e pouco mais de seis meses para conseguir formular um modo de falar terassá aceitável e, ao mesmo tempo, pronunciável para seres humanos normais. Considerando a reação dos monstros na conferência, diria que mandei bem. Todo mundo me entendeu e não tive problemas com confusões e mal entendidos!

Mas, uau, quando eu começo a falar de terassá, não paro mais!

Foi mal aí, eu sei como isso pode ser irritante...

Vamos falar da conferência, sim? Afinal, é maldade comentar e depois não contar nada! E morte por curiosidade é quase tão ruim quanto morte por tédio! Eu diria que a primeira equivale a uns 7/9 da segunda.

Vamos então:

"A conferência começou às oito e meia da noite. Parece um horário aceitável, certo? Eu concordo, seria muito aceitável se ela durasse, uma, duas ou até três horas, mas ninguém esperava que fosse durar tanto! Essa coisa só acabou às 15h53min (ou era 15h57min? Sei lá, eu tava com sono!) do dia seguinte! Eu não sei como os envolvidos sobreviveram a essa coisa sem cair no sono!

Os únicos felizes com isso devem ter sido os vendedores ambulantes, já que o povo precisava tomar café da manhã, almoçar e lanchar enquanto esperava. Deve ter sido o dia deles com mais lucros! Um dos caras que mais lucrou foi o que teve a brilhante ideia de vender café, afinal, ninguém queria dormir e perder a negociação! Até porque boa parte do povo apostou se a guerra continuaria ou não... Praticamente todos os humanos e até alguns monstros compraram café como loucos. Outros monstros não queriam chegar nem perto porque, no organismo de alguns, café funciona como depressor, não como estimulante.

Eu odeio café, mas admito que tomei dois. Era horrível, mas eu precisava ficar acordado, não? Depois achei uma guria vendendo frutas e comprei quatro maçãs, porque maçã é melhor que café para ficar acordado e, é claro, não deixa um gosto horrível na língua!

Quanto à conferência em si, bem: a Branca de Neve levou uns quatro ou cinco diplomatas ('topo da cadeia alimentar') como apoio, o Anselmo levou o equivalente a isso na cultura monstro como apoio também, eles ficaram um de frente para o outro e começaram a negociar termos. Era mais ou menos como um tribunal, mas sem o juiz no meio. Nessa analogia, o 'júri' era o povo que estava assistindo (eu estava nesse meio!) e funcionando mais ou menos como testemunha ou plateia... Não decidi ainda.

Seja como for, éramos uma plateia bem diversa! Humanos, monstros... Tá bom que não nos misturamos muito, mas só de conseguirmos coexistir num espaço por mais de dezessete horas, considero um avanço. Eu só não consegui me misturar muito porque a Branca de Neve deixou oito agentes de campo como 'minhas babás'. Sim, oito. Eu até diria que é exagero, mas aí me lembro do meu histórico... E a condição dela para me deixar ir era eu ir acompanhado deles!

Me imagine sentado com dois agentes de campo 'à paisana' de cada lado, dois na minha frente e dois atrás de mim. Se eu me senti cercado? Imagina... A pior parte de ter oito babás é precisar pedir permissão para fazer, literalmente, qualquer coisa. Ir ao banheiro? Algum deles me acompanhava. Comprar comida? Algum deles me acompanhava. Conversar com monstros para praticar terassá? Eu tive que implorar muito para conseguir dizer um 'oi'! E, para conseguir testar cumprimentos/despedidas, tive que despistar as oito babás por alguns minutos.

Essa parte da conferência foi muito divertida.

Aliás, se você pretende ter oito babás altamente treinadas um dia (ou, mais provavelmente, se não pretender, mas vai ser obrigado a ter por motivos de força maior), sugiro que você tenha muita criatividade! E prepare uma mochila com alguns disfarces. E vista várias camadas de roupa para ainda poder trocar de disfarce depois que sua mochila for confiscada por uma das babás. Aturar o calor super vale a pena! Eu, por exemplo, me meti em umas quatro camadas de roupa, sem contar o casaco.

Já a negociação, bem... Admito que não prestei tanta atenção quanto devia. Aquela coisa era chata demais! Passei mais tempo tentando puxar conversa com minhas babás ou fugir delas. O segundo foi bem mais fácil que o primeiro, ô povo antipático! Nessas horas eu sinto falta do Agente Chihuahua... Ele era bem mais amigável que a média dos agentes de campo. Pelo menos ele me respondia!

Se tiver que escolher entre alguém que te deixa no vácuo e alguém que responde "Uhum", "Aham", "Tá", "Claro", etc, escolha o que responde com monossílabos ou respostas frias! Pelo menos você ganha a ilusão de uma conversa.

Tudo que eu posso garantir é que o Anselmo era osso duro de roer e a Branca de Neve, teimosa como uma mula. Não, eu jamais direi essas frases em voz alta para eles por motivos de sobrevivência. A negociação foi dura e envolveu quantidades substanciais de dinheiro ofertadas na forma de várias moedas diferentes (dólar, euro, real, libra esterlina, dracma, peso...) e que foram prontamente recusadas pelos monstros, que não dão a mínima para a economia humana. Depois o rumo da negociação mudou de econômico para geoespacial, o que agradou bem mais aos monstros, mas eles tentaram abusar da oferta e a Branca de Neve mostrou que não aceitaria qualquer acordo negando vários pedidos. Quando a discussão se tornou cultural, eu até comprei pipoca de um dos vendedores porque a coisa parecia que ia ficar boa!

Nada como uma discussão cultural no meio de uma guerra!

Enfim, como você pode imaginar, dezenove horas é tempo mais que suficiente para milhares de discussões variando entre os mais diversos temas. No fim, um acordo de paz foi (finalmente!) estabelecido. O que ficou decidido foi mais ou menos isso: as fronteiras entre humanos e monstros vão ser estabelecidas oficialmente, os países monstros serão considerados autônomos, válidos e soberanos, sendo que os humanos não podem ou devem interferir diretamente no 'jeito deles' de fazer as coisas.

Eu só imagino como vai ser a primeira constituição monstruosa/terassá...

Aliás, sabia que podem ser usados como sinônimos? Assuntos que dizem respeito aos monstros podem ser tratados tanto como monstruosos, como bestiais ou como terassá, mas o último tende a soar menos ofensivo.

Além das fronteiras estabelecidas, criaram alguns acordos de manutenção para a coexistência. Vai ser uma aproximação lenta e gradual: primeiro os monstros vão se limitar às próprias fronteiras e vice-versa, mas as escolas monstro vão ensinar um pouco de cultura humana e as escolas humanas vão ensinar um pouco da cultura terassá. Depois, vão implementar sistemas de intercâmbio monitorado e, se isso der certo, vão liberar as fronteiras aos poucos para que monstros e humanos possam (talvez) interagir sem grandes problemas. Ou, se tudo falhar, vão proibir o trânsito entre as fronteiras e ficar naquela coexistência mais instável, tipo Coreia do Norte e Coreia do Sul antes da guerra.

Bem, pelo menos é o que foi pré-estabelecido... Nunca se sabe quando algo vai dar errado e outra guerra acaba sendo declarada. Declarar guerra parece tão mais simples que resolver os problemas... É só olhar o número de guerras que a humanidade teve!"

Enfim, é isso que eu tenho a dizer hoje, eu acho.

Eu sei que não é a melhor das histórias. Aliás, está bem abaixo do nível que eu gostaria também! Eu até poderia falar mais sobre minhas babás ou sobre os vendedores ou sobre a negociação em si (se bem que essa foi bem chata e arrastada), mas, francamente, acho que não estou no clima para isso.

É, eu sei, que egoísta...

Estou meio para baixo, sabe, desde que voltamos para o prédio e a negociação foi bem sucedida, a Branca de Neve tomou a próxima atitude dela: me deixar de aviso prévio.

Ou, em outras palavras, me "pré-demitir".

Se eu ainda durar uma semana aqui, tenho sorte! Já até estou arrumando minhas coisas para cair fora.

Antigamente, aviso prévio devia ter uns 30 dias de antecedência, mas, depois da guerra, acho que ninguém dá a mínima para o cumprimento desses detalhes, principalmente se o demitido é a minha pessoa!

Então, sim, em aproximadamente uma semana eu vou ser mandado embora e, dessa vez, é pra valer! Adeus, prédio. Adeus, balcão. Adeus, todo o resto.

Mas, ei, vamos nos manter no lado bom, certo? A guerra acabar, por exemplo, é bem legal. E eu ainda tenho uns dias antes de me mandar, então não é como se eu não fosse ter tempo de me despedir apropriadamente do povo ou de te contar uma última história.

Uma que eu estava guardando para o final mesmo.

Mas essa fica para depois... Ainda não estou no clima.

Ah, e, antes que eu me esqueça, existe uma palavra em terassá que você super devia saber!

Ela até tem uma explicação "certa", aquela esquisita dos livros que te permite falar sem sotaque algum, mas eu vou te explicar do meu jeito porque essa é importante demais para ser perdida na tradução errada:

Eu não sei bem a pronúncia sem sotaque dela, mas, falando do meu jeito, você fala algo como "Trár-iiiiiin-amulq". É uma simplificação meio tosca e o sotaque humano fica bem forte, mas é compreensível e isso é o que importa.

Você pronuncia o "Trár" Como uma mistura do "Tra" de Tratado e do "Tár" de Tártaro. Acho que essa parte é mais fácil para quem é francês, mas qualquer um pode pronunciar, como eu disse, é só uma variação de sotaques.

O "iiiiiin" é bem simples até. Você só precisa afinar a voz (finge que vai imitar um morcego se quiser, me ajuda pelo menos) como se fosse guinchar e faz o som do N no final. A parte mais importante é a duração, são exatamente seis "i's", nem mais, nem menos. Cada I dura mais ou menos meio segundo, então guinche por três segundos (conta devagar, tá?) e não esqueça o "in" do final. Há uma grande diferença entre falar "iiiiii" e falar "iiiiiin"! Eu gosto dessa parte porque guinchar como um morcego é divertido.

O "amulq" provavelmente é a parte mais enjoada de pegar. O "a" é fechado, então você fala como se fosse o "a" de âmago, não com o "a" de amor. Só não acentuei porque não é a sílaba tônica. O "mul" é como o "mu" da vaca (só que curto, nada de fazer muuuu) com um "li" no final, mas tenta não pronunciar o i, encosta a língua nos dentes da frente e faz o som de L. E o "q" do final, bem... Não é como o "que" de queijo, é mais como um "ki" abafado (não o "ki" de kiwi). Tente deixar os lábios entreabertos, dentes separados e fazer um som de Q no fundo da garganta. Vai por mim, é mais fácil do que parece e não dói, diferente de engolir gelo picado ou um peixe vivo.

"Trár-iiiiiin-amulq", por mais tosca que seja a simplificação, significa "eu sinto muito" ou "minhas sinceras desculpas" em terassá.

Ah, e, antes que eu esqueça, detalhe importante: o "trár" e o "iiiiiin" não se misturam, então nada de falar "tráriiiiiin". É "trár-iiiiiin". Já o "iiiiiin" com o "amulq" é mais livre, então, se achar "iiiiiinamulq" mais fácil de falar que "iiiiiin-amulq", fique à vontade, só não esquece de falar o "iiiiiin" num tom mais agudo.

Por que eu acho importante ressaltar bem esses detalhes? Bem... Eu ainda me envergonho um pouquinho desse fato, mas, se eu soubesse dizer essa palavra há cinco anos, a guerra nem teria começado!

Mas agora acho que vou dar uma volta e, sei lá, começar a me despedir do prédio? Por mais doido, chato e esquisito que esse lugar seja, vou sentir falta.

E obrigado por passar aqui! Significa muito pra mim!

Vou sentir sua falta também. Tanto quanto do prédio.

Mas, ei, alegria! A guerra acabou! Oficialmente!

Até a próxima!


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