Histórias do cara do balcão. escrita por Mestre do Universo dos Vermes


Capítulo 1
Apresentações... Prazer em conhecer.




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Eu estou morrendo de tédio.

Não, não é drama, e não ouse me chamar de dramático antes de passar o dia inteiro atrás de um maldito balcão no meio de "lugar nenhum".

E não é aquele lugar nenhum de “Coragem, o cão covarde”, onde aparecem monstros e patos psicopatas e videntes e gatos com máscaras brancas e caras malas metidos... É um lugar nenhum bem chato mesmo.

Tá bom que de vez em quando podem até aparecer idiotas, malas e psicopatas, mas não de um jeito legal, só de um jeito extraordinariamente chato.

Enfim, acho que já abusei da palavra "chato" por hoje, certo?

Minhas desculpas, é só que eu não tenho mais o que fazer mesmo.

Você pensaria que estar no meio de uma guerra pós-apocalíptica seria mais emocionante... Ledo engano.

Ah, eu comentei que estamos no meio de uma guerra pós-apocalíptica?

Bem, "estamos" é um termo muito forte. Algumas pessoas estão lá, no meio da guerra, fazendo coisas emocionantes. Outras devem estar planejando a guerra de um ponto distante e seguro bolando estratégias mirabolantes sem se preocupar em arriscar a própria vida. Eu? Eu estou atrás do balcão, como sempre.

Eu devia me dar por satisfeito por ter um emprego no meio desses tempos de crise, certo? Ainda mais um emprego num prédio altamente seguro e com baixíssima chance de ataque. Mas, deixe-me te falar, depois que você passa quatro meses definhando de puro tédio, até a possibilidade de ir para o campo de batalha é animadora. Não que eu tenha essa possibilidade, claro...

Na verdade, eu até já tive a chance de sair do prédio e ir para o meio da confusão. Foi muito divertido... Por uns quinze dias, no máximo, depois me proibiram.

Se você tiver a mínima curiosidade, eu trabalho num balcão de informações. Está perdido? Me procure e eu te mando para o lugar certo e até te dou instruções se puder.

O problema? Fica no quarto andar. Isso aí. Quarto. E a maioria das pessoas normais e razoáveis prefere pegar informações direto com a recepcionista lá no térreo em vez de subir até esse fim de mundo.

"Por que colocaram um balcão de informações no quarto andar?" você pergunta, bem, a resposta é simples: só queriam se livrar de mim e me jogar no canto mais escondido, isolado e remoto possível.

Enfim, se você não estiver fazendo nada e quiser ouvir histórias sem importância de um desocupado indesejado, seja bem-vindo!

Vejamos... O que você tem que saber? ... O prédio tem uns 17 andares se você contar tudo. Térreo, 13 andares para cima, uma garagem no subsolo e dois andares subterrâneos. Eu "classifico" as pessoas com base no andar em que elas trabalham ou são chamadas. Se você trabalha entre o térreo e o terceiro, está na base da cadeia alimentar; entre o quinto e o sétimo, está em transição; entre o oitavo e o décimo, já é peixe grande e, do décimo primeiro ao décimo terceiro, é um verdadeiro leão.

Sim, essa é a cadeia alimentar básica do "quartel general", meu nome carinhoso para esse edifício esquisito.

Mas, se você é uma pessoa atenta, deve ter percebido os furos nessa cadeia. E, se não percebeu, bem, devia olhar de novo.

Ou não... Escolha sua.

Enfim, se você vai para os andares subterrâneos, dos dois um: ou eu tenho medo de você ou eu tenho pena de você. E, se você está no quarto andar, você está oficialmente fora da escala e é só um excluído. Um renegado.

Em outras palavras: bem-vindo ao meu mundo!

Mas, ei, sem drama, aqui não é tão ruim. Tem meu balcão de informações, um achados e perdidos, o almoxarifado (que eu acho que é só um nome chique para despensa) e o armário de produtos de limpeza, ou seja, eu vejo bastante os "tios e tias da limpeza", vulgo zeladores, faxineiros ou seja lá qual nome você dê.

Eles são bem legais até, se você souber como se aproximar. Gosto deles, são quase tão excluídos quanto eu... Afinal, nós dois somos desse andar! Claro que eles podem zanzar pelo resto do prédio, eu não... Mas, pelo lado bom, eu não tenho que limpar os banheiros!

Vai por mim, dá o maior trabalho... Quase todos os andares tem banheiros, exceto o décimo terceiro, os subterrâneos e, obviamente, a garagem. E eles são limpos várias vezes ao dia. Mas os banheiros não são nada perto dos laboratórios... São quatro ao todo, também limpos frequentemente e, acredite, não é a tarefa mais fácil do mundo limpá-los...

Como eu sei disso? Fácil: já fui tio da limpeza/zelador/faxineiro/etc.

E essa é uma história emocionante (na verdade não, mas, ei, você vai ouvir mesmo assim, certo?). Aí vem a historinha-flashback:

"Tudo começou quando eu fui demitido pela enésima vez e tiveram que me realocar, que é um termo bonitinho para 'tentar me pôr numa função que eu não estragasse tudo'. Decidiram me pôr de tio da faxina e, francamente, contando a posição que eu estava, eu não sei se isso foi rebaixamento ou piedade.

Até que eu fui bem recebido, afinal, já conhecia boa parte do povo da faxina, nem que só de vista. Acho que eu sou quase um 'tio' no prédio, ou 'sênior', ou 'senpai', sei lá que termo você prefere para 'eu trabalho por aqui há uns cinco anos'. Isso aí, comecei aqui antes mesmo do início da guerra.

A guerra já dura o quê? Uns quatro anos? Mais ou menos? Talvez quatro anos e meio...

Bem, você vai descobrir que eu sou muito ruim com datas, noção de tempo, localização espacial e nomes. Ou seja, não sou o melhor contador de histórias do mundo.

Enfim: faxineiro! Não era tão ruim, tinha um povo para me receber de braços abertos, já que eu era mais ou menos "popular" (ou, no mínimo, conhecido), tinha um povo que não queria nem chegar perto de mim (sabe como é, a fama precede o homem...) e tinha um povo que não dava a mínima para a minha existência. Só como qualquer outro lugar.

E é claro que, como o novato, eu recebi de cara a tarefa de limpar os banheiros! Êêê!

Agora você entende por que eu falei tanto deles?

Foi uma tarefa longa, desagradável e repetitiva, e é claro que eu, como qualquer pessoa irritante, a fiz cantarolando e com um sorriso que, aparentemente, induz as pessoas a quererem me dar um soco.

Por que eles detestam tanto gente feliz? Não se pode mais nem cantarolar 'Splish Splash' enquanto se lava um banheiro (ou uma dúzia deles) ...

Mas não foi a atitude feliz irritante que me fez ser despedido, não, isso seria apenas ridículo...

Eu já tinha acabado de limpar os banheiros quando decidi passar um esfregão no terceiro andar. Aquele lugar estava precisando e, ei, iniciativa é tudo!

Exceto quando você esquece a placa de 'piso molhado' e um segurança escorrega e torce o tornozelo, que azar... Strike um.

E o cara ficou injustamente bravo comigo, por curiosidade.

Mas, ei, isso não me desanimou! É claro que eu parei de limpar o chão dos lugares fora de hora e tentei lembrar da placa... 'Tentei' é a palavra-chave.

Por sorte, tinha essa tiazinha da limpeza que me lembrava desses detalhes como 'põe a placa de aviso', 'põe a máscara e as luvas', 'torce o pano no balde depois de usar'... O que seria de mim sem ela?

Ela é bem legal, ainda nos vemos de vez em quando. Sally, Sandra, Suelly, Simone... Eu tenho certeza que o nome dela começa com S! Pior que ela já me disse umas quatro vezes, mas eu sempre esqueço. Enfim, a S é muito gente boa.

Um belo dia eu estava tranquilo, cuidando da minha vida, limpando os sofás da sala de espera do térreo, quando surgiu um cara do nada.

Ok, não 'do nada', ele entrou normalmente pela porta, mas você me entendeu.

Enfim, a recepcionista estava na pausa para o almoço ou qualquer coisa assim e o cara que deixaram para tomar conta da recepção simplesmente não sabia de nada. Estagiários...

O cara perguntou algo nas linhas de 'bom dia, eu preciso ir para o subsolo, mas não achei o botão no elevador e fiquei meio confuso...'. Se é que isso pode ser chamado de pergunta.

A recepcionista normal, ou qualquer um que soubesse de alguma coisa, diria para o cara falar baixo e, discretamente, daria instruções e/ou o conduziria para lá. Então, obviamente, o estagiário só pediu para ele esperar no sofá até a recepcionista titular voltar porque, é claro, ele também não sabia nada direito sobre o subsolo.

Ele sentou no sofá, que já estava bem limpo, e eu fiquei lá, na minha, terminando meu serviço... Por uns dois minutos, mas, é claro, eu não consigo segurar minha própria língua e sou curioso demais para o meu próprio bem:

'Então... Você vai trabalhar no subsolo?' Perguntei antes que meu pouco bom senso pudesse tomar o controle, dando meu melhor para esconder o leve tom de desprezo que era inevitável a essa pergunta.

'Ah... Não sei, não explicaram muito bem, só me chamaram lá. Mas quem sabe, talvez eu ganhe uma promoção?' Ele sorriu esperançoso.

'É, talvez...' Dessa vez, eu tive que esconder a leve pena. Esse cara com certeza não ia ganhar uma promoção...

Enfim, eu terminei meu trabalho por lá e, pela lógica, eu devia sair e ir limpar outro andar ou guardar os produtos ou qualquer coisa assim. Mas eu sempre fui um fraco sentimental, então puxei conversa com o cara.

'Está precisando de uma promoção?' Indaguei como quem não quer nada.

Ele mordeu a isca!

'Não muito, mas um dinheiro a mais é sempre bem-vindo... Eu tenho certeza que minha princesa adoraria uns mimos a mais'

'Princesa? Você é casado ou algo assim?' Ele parecia meio novo mas, ei, quem sou eu para saber? Eu sou péssimo em adivinhar a idade das pessoas mesmo.

'Não, é minha filhinha, minha princesa' Ele sorriu 'Ela fica na creche enquanto eu tenho que trabalhar, mas, quando acaba meu turno, eu tento compensar. E uns recursos a mais poderiam ajudar...' Brincou.

'E a mãe? Ela deve ajudar, certo?' Como eu disse, tenho curiosidade demais e bom senso de menos, então, sim, eu toquei nesse assunto sem nem conhecer o cara direito.

'Uh... É, ela ajudava, era agente de campo...' Ele ficou triste de repente e, vai por mim, quando as palavras 'agente de campo' e tristeza aparecem na mesma situação, apenas cale a boca e concorde lentamente com a cabeça, sem movimentos bruscos.

Agentes de campo são nossos soldados, mas com um nome suavizado. Eles são 'os melhores'. São eles que travam batalhas de verdade, que se aventuram nas áreas perigosas, que recebem os melhores salários em geral e, é claro, os que mais desaparecem misteriosamente...

Falamos mais um pouco. Desviamos desse assunto tenso, ele me falou mais da 'princesinha' de quatro aninhos dele (nascida durante a guerra, mas, provavelmente, concebida antes... Complicado), falou dos passatempos dele, do que ele fazia antes dessa loucura toda começar... Então a recepcionista de verdade voltou.

E, em resumo, eu sou um fraco.

Antes que ele pudesse ir lá para pedir informação, eu o puxei discretamente pela manga da camisa e sussurrei que, se ele tivesse algum juízo, iria de fininho até o elevador, apertaria o botão da garagem, sairia pela saída dos carros mesmo, tomando cuidado para não ser visto por guardas, e passaria pelo menos um mês escondido no celeiro da fazenda do sudeste.

Obviamente, ele achou que eu tinha uns parafusos a menos (o que eu tenho mesmo) e perguntou o motivo. Eu não expliquei para ele, porque isso seria idiotice demais até para mim, mas disse que, se ele realmente amava a filha dele, devia fazer.

Acho que minha expressão era bem séria porque, pouco depois, ele pegou a garotinha dele da creche e sumiu.

Eu, claro, segui minha vida, limpei mais coisas e fingi que nada tinha acontecido. Mas, bem, se lembra daquele segurança que injustamente pegou raiva de mim? Parece que ele fez questão de me monitorar e relatar as "atividades suspeitas". Ninguém pôde provar nada, claro, mas te garanto que o chefe pegou mais raiva de mim. Strike dois.

 Admito que, depois desse, o próximo detalhe vai ser muito bobo, mas é a verdade: eu não sei varrer.

Não sei, simplesmente não sei. Não tenho coordenação para isso! Não dá! A Soraia/Samantha/Selena já tentou me ensinar um milhão de vezes, mas eu não consigo!

E, bem, acho que dá para perceber que tudo que todo mundo precisava era uma desculpa para me demitir, então:

Tio da limpeza que não sabe nem varrer? Strike três.

Fui demitido."

Eu sei, não é a história mais emocionante do mundo, mas, em minha defesa, limpar não é a tarefa mais legal do mundo. Necessária? Sim! Divertida? Nem tanto, a não ser que você cantarole músicas aleatórias enquanto faz, mas isso irrita muita gente.

Moral da história? Eu devia ter mantido a boca fechada e só limpado.

Mas não precisa ficar triste. Arrumei outra função rapidinho.

A Suriá/Sara/Sofia (um dia eu ainda lembro o nome dela!) ainda aparece bastante por aqui, o que eu acho meio estranho, mas legal. Afinal, é bom ter alguém para bater papo e tudo o mais, e até que faz sentido ela vir muito aqui, já que o armário de material de limpeza e o depósito ficam nesse andar, mas, sei lá, acho esquisito ser quase sempre ela a vir buscar tudo...

Enfim, é isso. Minha vida. Nada muito emocionante, eu sei.

A Sônia/Suzana/Solange/Sandy me contou que contrataram uma moça nova, mas não para a limpeza. Me pergunto em qual setor da cadeia alimentar ela vai se encaixar? Será que vou conhecê-la? Espero que ela não fique muito em cima... Não dá para confiar no povo do topo.

Enfim, chega de fofoca. Meu turno acabou! Yey!

Bem, volte outro dia. Adorei falar com você.

E, quem sabe, se você pedir muito educadamente, posso te contar mais fofocas desse prédio esquisito? Aposto que você curtiu minha história, não?

Espero ainda te ver, mas, se não, eu entendo.

Quem liga para as histórias do cara do balcão, não é mesmo?


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