WSU's: Zenith escrita por Lucas, WSU


Capítulo 1
Capítulo I - Um Recomeço


Notas iniciais do capítulo

''Encaneceram minhas têmporas,
Tenho a cabeça calva e branca;
Deixou de estar comigo
A amável juventude,
E já meus dentes são de velho.
Resta-me breve prazo
De doce vida; e assim
Eu ergo meu lamento,
Com pavor do outro mundo.
Terrível é a mansão da morte,
Árduo, o caminho para lá;
E certo é que uma vez lá embaixo
Não haverá retorno.''



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/741847/chapter/1

 Corvos pairavam por todo o ambiente, escuro e azulado.

— É aqui? — perguntou a criança.

— Dizem que o lugar é um grande castelo... e isso é um grande castelo. — respondeu a recém-exorcizada.

Alguns metros à direita havia uma placa, amarela, enferrujada e granizada, junto aos dizeres 'Vajdahunyad Castle'

— Sabe ler em húngaro, Zagan? — questionou.

— Não... mas 'Castle' em frente a uma construção que se assemelha a de qualquer outro castelo... — soltou a mão de Mia e olhou nos olhos dela, irônico, igualmente como Thyra fazia tempos atrás — Deve significar que isso aqui é... um castelo, certo?  

Dedos entrelaçados, olhar vazio na janela embaçada, seu campo de visão observava as duas silhuetas humanas que caminhavam, inconsequentemente, terras sombrias e frias.

— Chegaram, Senhorita Kertész. — virou-se, tão branco quanto o fundo dos olhos.

Olhos por todas as partes.

— Receba-os, Mihai. — ordenou a Rainha, após beber um gole de leite.

Cobria os pálidos lábios de roxo, todo homem na terra queria ser aquele batom.

Deslizava a mão esquerda sobre a pele de seu pescoço.

— Prepararam a Palinca? — pegou uma velha escova e começou a pentear os cabelos negros - Seria enorme falta de respeito não servir à nossos convidados... 

— Sim, Senhora, preparamos. — replicou Mihai, que tinha metade de sua face coberta pelas mechas descoloridas. 

***

Deram mais uns passos no solo concretado, cada movimento resultava no quebrar de algum galho.

Mia e Zagan andaram mais um pouco pelos blocos acinzentados que encaixavam-se perfeitamente, salvo raras exceções.

Quase dois mil quilômetros separam Noruega e Hungria, o casal Humano-Diabólico levou 21 dias para cumprir o trajeto, uma carona aqui, outra ali, seduz alguns homens e toma o dinheiro deles, compra passagens de ônibus... O começo por si só já foi uma enorme aventura. 

Eles chegaram e Mia tocou o negro Sino Frade pendurado à porta.

— Imagino se não tiver ninguém, vinte dias desperdiçados. — controverso Zagan.

Contrastando com o clima hostil que os cercava, as infinitas fechaduras por trás da porta começaram a se abrir suavemente.

Abram-se as portas, o detestável Vlad. Cabelos pretos médios-longos jogados sobre o olho esquerdo, maquiagem branca e forte, ajudando a esconder as cicatrizes.

— Marcaram horário? — de expressões nulas Vlad se constituía.

— Convidaram, eu e ele... 

— Quem convidou? — somente a boca se mexia, nunca piscou os olhos.

Mia procurou nos dois únicos bolsos de sua fina blusa preta.

— Eu deixei com você? — preocupada.

Zagan tirou um papel amarelado e rasgado em partes que se assemelhava a um pergaminho. Abriu-o com as duas mãos e leu com sua infantil voz. 

— 'Convido, extraordinariamente, Miandrya Vikernes Quorthon e seu enteado espiritual Zagan Krzaroghoumerothut para uma reunião de possíveis interesses. Atenciosamente, Rainha Erzsébet Kertész. Datilografia por: Petrov Beleteneszkysz.' — recitou Zagan.

Vlad manteve seu corpo posicionado para os dois e virou sua cabeça para trás.

— PETROV! - chamou gritando.

Voltou ao normal, Mia e Zagan indiferentes.

— Não se assustaram? — indispôs-se Vlad.

— Já passamos por coisas muito piores... — ironizou Zagan.

Ouvia-se o bater de pés ao chão de madeira. Petrov, do alto dos seus dois metros e dezoito, além de um terno azul ridículo, apareceu.  

— Digam seus nomes. — pediu Vlad. 

— Miandrya Vikernes Quorthon. — respondeu Mia. 

— Zagan Krzaroghoumerothut, de Goetia. — respondeu Zagan.

Petrov puxou a manga esquerda de seu terno, e com o dedo indicador da mão direita foi verificando as anotações.

— É, estão aqui... Entrem. 

Os dois adentraram ao recinto que cheirava a incenso vencido. Vlad tomou seu caminho e virou num longo corredor de luzes falhas.

— Vlad... ele tentou assustar vocês? — disse Petrov, sorrindo.

— Só tentou mesmo... — respondeu Mia.

Os dois seguiam Petrov, tudo era antigo ali. 

Desde os estofados, os quadros, as luminárias, os múltiplos relógios... toda a estrutura.

Mia e Zagan quase nunca soltavam a mão um do outro. Ele com a esquerda, ela com a direita.

Do lado de fora o frio congelava as mãos e estremecia os dentes. Do lado de dentro causaria hipotermia em qualquer que não tivesse contas em dia com o sobrenatural. 

O maior desperdício eram os grandes cômodos vazios. Bonitos e polidos, somente a luz da Lua iluminava as tábuas deixando a marca de um círculo branco e borrado em meio a vasta negritude.

— Quantos residem aqui? — indagou Mia.

— Vivos ou mortos? — devolveu Petrov.

— Vivos. — subconscientemente queria saber dos mortos, mas seguiu o código ético e moral.

— Quatro mais ela. — homem dominado.

— Porque 'mais ela'?  

— Existem pessoas estão a par de qualquer grupo, ainda que façam parte um seleto grupo... Garanto que é o caso dela, A Rainha. — explicou orgulhosamente.

O Castelo era a junção de Van Gogh e  Da Vinci.

A colação entre Godard e Kubrick.

O duo Ionesco e Brecht.

Um feat entre Elvis e Michael.

Uma Cleópatra duplicada. 

— Quem são os outros dois? — quis saber Zagan.

Passaram por uma porta de vidro e chegaram sala de visitas. 187m², artesanatos antigos, feitos manualmente pelas mãos calejadas de escravos bósnios. Ambiente vermelho como o Inferno, uma residência de múltiplas personalidades, ouvia-se o estralar da madeira queimando à lareira.

— Mihai irá atendê-los. — disse Petrov, dando as costas logo em seguida. 

Os dois sentaram-se num acolchoado de lã de carneiro, pobres animais que foram abatidos por Vlad.

— São três agora... — proferiu Mia.

— Vlad, Petrov, Mihai... Nada muito criativo. — Zagan, um imperceptível provocador do caos.

— Permitir variações nominais não é característica da língua deles. — completou Mia.

— No Inferno nossos nomes são definidos de acordo com a função que ocuparemos.

— E isso é criativo, Zagan? 

— Criatividade? É relativa.

Mihai veio lentamente transpassando  os espaços do castelo desprovido de humildade.

— Külföldi nyomorultakat, külföldi nyomorultakat... — repetia — Boa noite. — assim que passou por Petrov — Külföldi nyomorultakat. — continuou.

***

Não fosse a arrogância exagerada, Mihai seria um homem nato.

Não fosse a humildade exagerada, Petrov seria um homem nato.

Não fosse a melancolia exagerada, Vlad seria um homem.

Não fosse o fato de estar empalado no quarto da Rainha Kertész, Maxim seria um homem.

Existe o equilíbrio único entre a prepotência e a simplicidade, chama-se 'Inteligência'.

Entre melancolia e morte? Nenhuma.

Qual o meio-termo de viver em profunda tristeza e estar num caixão? 

Um coração vazio e um coração que bate 80 vezes por minuto?

— Eu realmente te amo, Maxim. Me sinto mal por amar algo imóvel e insentimental... Mas é assim que agimos, não é? Eu não sei... O amor me deixa confusa. Um dia... Um dia encontrarei um modo de lhe trazer novamente a vida... podem demorar 50, 100 anos... Eu prometo. — marcou a pele seca e dura do rosto de Maxim com seu batom — Eu prometo. 

***

— Desejo boas vindas ao Castelo de Vajdahunyad. — Mihai colocou uma bandeja de prata rústica sob a mesa de vidro que estava a frente de Zagan e Mia — A Rainha já está descendo as escadas. 

— Qual deles você é? — Mia encarou Mihai da cabeça aos pés. 

— Petrov deveria ter avisado quem sou... 

— Ele avisou. — convicta.

— Então porque questiona minha identidade? 

— A pergunta não refere-se ao seu nome, Mihai... Eu aprendi que tenho de conhecer melhor as pessoas... O nome é apenas um código de programação... — Mia filosofou sem motivo algum.

— Cabe a você descobrir... — abotoou seu colete. — Não tenho a obrigação de provar a você quem sou. — Mihai filosofou sem motivo algum. 

A Rainha percorre degraus magistralmente, a simétrica sombra demarca se corpo escuridão e beleza separam-se como água e óleo. 

Ela surge devagar, o atrito do salto alto com o piso dissipava ondas de superioridade pelo castelo. E quando  chegou a sala onde os três estavam, não se fizera a necessidade de palavras.

Mihai sentia a presença, a autoridade. Ele saiu.

Abriram-se os espaços para a soberana, que andou mais um pouco e sentou-se no sofá confortável e velho, porém conservado, assim como ela. 

Toda essa poesia aconteceu diante dos olhares cobiçáveis de Mia; Zagan pouco se importava, era tão incrível quanto. 

(Aqui só se ouve o som do líquido atravessando a garganta de cada um) 

(Aqui eles apreciam o gosto, estranho para Zagan e Mia, previsível para a eterna Majestade)

(Aqui eles colocam as taças de volta a bandeja prateada)

(Aqui o inaudível barulho do contato entre os dois) 

(Aqui os três respirando sincronizadamente juntos)

— É direta dos Cárpatos, mesma terra que eu. Século 16, queridos... Usavam-na para fins terapêuticos, não que fosse o principal objetivo, muitos bebiam já pelo delírio lírico que ela causa... Temos a Limpa, a Envelhecida e a Aditivada, cada qual com sua peculiaridade — lecionou.

— Qual é essa? — Zagan interrogou.

— Por estarmos em reunião, a Limpa, mais fresca, mais leve... E crianças não deveriam beber. 

— Quantos anos a Senhora tem? — interpelou de novo.

— A regra universal de não perguntar a uma dama qual a idade dela foi quebrada ao que podemos ver...

— A Rainha quem disse 'Estamos em reunião'. Reuniões se constituem de conhecimentos, referências... Informações. — a criança que deixaria qualquer pai orgulhoso.

— Qual a idade da garota ao seu lado? — na réplica, a Rainha questionou.

— 20. — a própria respondeu — E você, Zagan? — em tom de confronto a Kertész. 

— Um, ponto, zero, zero, oito. — ele disse. — Rainha? 

Admirou a face dos dois por instantes, balançava a cabeça positivamente

— Calaram-me, 504... Tem o dobro da minha existência, Zagan...

— Refaça-se a pergunta, quem é que não deveria beber aqui? — O caos imperceptível ataca novamente.

— Caímos em redundância. — a Rainha pontuou.

— Recebi sua carta ao vento, tão mística... Não faço ideia de onde ela surgiu, só sei que li... Atravessamos longas jornadas que fraturaram meus pés, Dinamarca, divisa Alemanha-Polônia, Áustria... — Mia tomou as palavras — Eu estava destruída pelo meu amor próprio, Senhora Kertész... As marcas daquilo não vão se cicatrizar nunca. No meio de toda aquela tragédia, ele veio junto comigo... — passou a mão pelos lisos cabelo de Zagan — Primeiro ele me disse que eu havia conhecido-o numa fase muito estranha de sua vida, depois garantiu que nunca supriria a ausência dela, assumo que foi difícil aceitar... E na terceira frase ele se tornou meu melhor amigo: Abrace todas as oportunidades que te derem. No verso da carta tinha o endereço... Cá estou.  

***

Temos uma regressão.

A beira do precipício da Ilha de Moskenesoya, os dois seguram as mãos em companhia.

Lindos raios luminosos ao fundo, iluminando os mares cristalizados pela discrepância que a mortífera noite traz.  

— Você me conheceu numa fase muito estranha da minha vida — disse Zagan, se lembra?

Ela não podia falar, sua mente estava como o estrondo dos trovões.

— Nunca serei o que ela foi. Mas você vai se entregar para o que der  e vier, vivemos para isso... O mundo será todo seu. — uma promessa do provento de Goetia.

Fim da regressão.

***

— Admirável, impressionante... — a Rainha bateu palmas. 

Não eram irônicas.

— Ionesco teria orgulho de tanta dramaticidade e teatralidade! — prosseguiu. 

— Infelizmente é a realidade, o tato me faz saber... Adoraria que minha vida fosse uma peça de teatro, mas... ela não é. — triste e poética, como sempre. 

— O passado é a consequência de um anterior presente mal explicado... — a Rainha cruzou as belas pernas cobertas por um longo vestido — Os sentimentos que nos atrelam ao pretérito podem ferir com a mesma intensidade que podem ser superados... 

— Tem certeza que 'Superados' é a palavra certa? — Zagan interrompeu.

A Rainha pensou

— Eles podem... podem... ser momentaneamente tratados como realidades paralelas e utópicas. 

— De acordo. 

— Quer dizer então que fui basicamente chamada para esquecer as desgraças que aconteceram comigo? — uma forte lambida no beiço; Sobrancelhas envergadas.

— Temos grandiosos anseios por aqui, valiosas recompensas... Possuo algo extremamente importante perdido em solo mundano... E vocês podem ser a minha ajuda. — Kertész problematizou o diálogo — Aceitam?

— Não posso aceitar sem saber o que é... — Mia enfatizou.

— Um infame espermatozoide entraria em processo de fecundação se soubesse que tempos depois teria de sofrer décadas neste maldito mundo? Junto a essas malditas pessoas? — os dois surpreenderam-se — Tem algum questionamento, Zagan?

— Espermas não raciocinam. — ele sempre tinha.

— Exato. Raciocine, Miandrya: Se o ser sobrenatural que habita teu corpo lhe disse para aceitar as oportunidades que lhe oferecerem, por qual motivo negar este? — gesticulou as mãos acintosamente. 

— A dúvida é único motivo. — refutou Mia.

— A dúvida é sua Situação. Eu proponho-lhe uma Condição. — a pomposa Erszébet Kertész se sobressaiu. 

Tão crédulos que seriam os negociadores, Mia e Zagan ficaram inexpressivos quando perceberam com quem estavam tratando. Com a 'Deusa' da lábia e da dialética.

O 'Nada' formou-se nos rostos diabolizados dos dois. 

Diante daquilo, Mia engasgou-se com os pensamentos, não sabia o que fazer. Zagan muito menos.

— É... — faltaram palavras — Eu aceito, Rainha. — Zagan conseguiu falar.

— Miandrya... Necessitamos de um consenso. — a Rainha pressionou.

Mia olhou ao redor, o Castelo a intimidou, um profundo e impotente medo nasceu da escuridão.

— Nós aceitamos, Rainha. — fez-se a vontade de Kertész. 

***

A noite cai à dentro.

Os corvos batem asas.

Os lobos uivam.

Os galhos úmidos chocam-se.

Um sino aleatório toca.

Fecham-se as cortinas vermelhas, termina o espetáculo.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!




Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "WSU's: Zenith" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.