DeH; Os Brutos escrita por P B Souza


Capítulo 5
04; O Norte




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O rio Clemente nascia em Barri e desaguava no oeste, em Porto Botero, na costa. Barri, no entanto, era alimentada por outro grande rio, o barro, vindo do Grão-Oásis de Javargh no sul.

Subir o Clemente, do oeste para o leste, era uma tarefa ágil com o vento a seu favor, infelizmente o navio não teve tal sorte. O percurso levou mais tempo que o devido, os escravos não remavam mais forte que a corrente, e duas vezes o navio recuou em vez de avançar.

— A armada de Javargh nos alcança! — Barrou um marujo no topo do mastro. — Vejo a bandeira do inimigo à distância!

Desesperaram-se. Não para menos, a fuga fora um fracasso dado o clima, mas para todos os efeitos, os navios de Javargh enfrentariam as mesmas intempéries que eles. E não para menos, em uma hora os inimigos que surgiram no horizonte do oeste, desapareceram. Enquanto isto, no horizonte a leste, podiam já ver o porto de Awox ao sul nas margens do Clemente.

Foram seis horas navegando até ali, e levariam mais duas agora que os ventos começavam a favorecer o destino, até Barri.

— Alerto-o, se os ventos continuarem a nosso favor, também favorecerá Rei Ellor. E as embarcações deles vem de Porto Grimal, o arranjo de velas é diferente, eles se aproveitam do vento com mais eficiência que este navio. Nos alcançarão mais depressa que nós fugiremos! — Dissera o capitão, um marinheiro contratado para aquela ocasião pelos próprios brutos, pago com o tesouro que estava carregado no navio.

Letrüssio não viu outra escolha. Assim que passaram pelo porto de Awox, na margem sul do rio, aportaram na margem norte, já tendo visão da grande muralha de Barri no Leste.

— Só pode estar louco se espera que deixemos todo este ouro aqui! — Sohrab invadiu os aposentos de Letrüssio enquanto ele e sua esposa guardavam o que tinham de valor e pouco peso.

— Então já sabe. Bom, prepare seus homens…

— Não me ouviu? Não deixarei o ouro depois de quase termos sido extintos para obtê-lo…

— Assinou o contrato…

— Sei o que assinei! E você me pagou pelo serviço que foi feito. Isto é outra coisa completamente! — Sohrab argumentou.

A esposa de Letrüssio foi até o homem e lhe agarrou em um abraço, cochichou em sua orelha.

— Vá, prepare ambos. Nos encontramos no convés. — Disse para ela, então Nadir saiu da cabine lançando um olhar de desaprovação para Sohrab. Assim que ela fechou a porta a expressão de Letrüssio mudou. — Nunca mais invada minha cabine assim, ou devo lhe lembrar…

— Cansei de ser lembrado. — Sohrab avançou contra Letrüssio parando na frente do nobre, seus punhos fechados queriam socar o homem. — Qual seu maldito plano para isso? Ou espera que Oldrich lhe receba com vinho e carne assada?

— Se considerar que Beswor se aliou com Ellor, Oldrich terá Heger em baixa estima, então vinho e carne assada não é tão improvável! — Letrüssio colocou a mão aberta em cima do colete de Sohrab e empurrou o homem para trás. — Mas não vamos para Barri, é imprudente demais. Desembarcamos aqui…

— O ouro…

— Não o tinha antes, não pode ter se apegado a algo assim tão rápido! — Letrüssio encerrava o laço de uma mala. — Pense, por exemplo, no meu título tão rápido adquirido, tão rápido perdido. Não vê chorando por isso, vê?

— Meus homens morreram por você, quase todos eles. Somos menos de vinte, éramos quase trezentos alguns dias atrás!

— Não vejo o problema, continuarei pagando o mesmo valor de antes, vocês ficaram mais ricos, apenas…

— Para onde o tesouro irá? — Sohrab perguntava de olhos fechado, tentando manter-se calmo, mas a voz de Letrüssio lhe conduzia num caminho incerto, como um canto de sereia, mas ao invés de amor, a voz do homem lhe despertava raiva.

— Ignorância não lhe cai bem, Sohrab. O escolhi para matar Ahskym e liderar os Brutos justamente porque é um homem esperto. — Letrüssio arfou. — Sabe essa resposta. Quando partirmos, em Tehwx pretendo pagar boa parte do que lhe devo, e quanto ao resto, terei assim que chegarmos, vivos, em Julfur!

Sohrab entendia bem. O navio seria abandonado. Todo o tesouro saqueado do palácio seria deixado para trás, em prol de uma fuga rápida. E pelo nosso bem, que sejamos rápidos. Os navios inimigos, quando chegassem ali, saqueariam de volta todo o tesouro e nada sobraria do lucro além das promessas. Sohrab rangia os dentes de raiva ao se ver em uma encruzilhada e quando Letrüssio passou na sua frente, ele agarrou-o pelo colarinho.

— Nos pagará em dobro por essa desgraça que causou!

Jogou o nobre contra a cama do navio, e Letrüssio quicou nos lençóis, se levantando e ajeitando seu cabelo.

— Encoste em mim e terá que encontrar…

Sohrab então fechou o punho e assim que Letrüssio investiu contra ele, com palavras, ele investiu contra Letrüssio com um soco na boca do estômago fazendo o homem cair de joelhos na sua frente, ao pé da cama. A mão indo de apoio no colchão, arfando.

— Rico desgraçado, acha que pode me ameaçar? São meus homens aqui! E cada um deles tá cansado de você! De agora em diante quem manda sou eu. E eu quero... vou receber em dobro!

— Você assinou… — Letrüssio argumentou, então dedos grossos agarraram seus cabelos e Sohrab fez o nobre olhar para cima, estando ajoelhado no chão.

Visto dali Letrüssio era patético, mas ainda assim era o detentor das moedas.

— Enfie o contrato no cu! Ou você paga o dobro, ou eu te entrego para o rei que pagar mais.

Soltou com violência a cabeça de Letrüssio, que, ainda engasgado, tossiu retomando o ar. Sohrab deixou a cabine indo para o convés, e Letrüssio se virou, sentando no chão do quarto, arfava.

Perdera a confiança dos mercenários quando deles tirou a única coisa pela qual lutavam; o ouro. Mas sem os Brutos não poderia também continuar. O caminho para Julfur era perigoso, e sua esposa e filha não podiam se defender mais do que com tapas e pontapés desalinhados. E quanto a Görn, era apenas uma criança e ele mesmo já era velho para duelos.

Precisava dos Brutos, por hora, então decidiu aceitar os termos de Sohrab como estes fossem, pois sabia não ser duradouro. Aquela humilhação não seria esquecida. Letrüssio, enquanto se levantava, via como estava dependente dos Brutos, mas também via as ameaças banguelas de Sohrab.

Em fúria, enquanto se punha de pé, pensava; Quando chegar em Julfur, suas cabeças ornamentaram minha janela. O verei apodrecer pelo dia de hoje.

*****

Deixar o navio fora difícil para os mercenários. Para Yanina fora ótimo. Ela passou toda a viagem, por menor que tenha sido, enjoada. E mesmo sem saber de muito, dizia que nunca mais entraria em um navio.

Quando iniciaram a caminhada, doze mercenários se negaram a ir.

Letrüssio então disse para que Sohrab os controlasse, mas como? Os homens não deixariam o ouro.

— Se ficarem, vão morrer! — Sohrab disse. — O rei de Javargh não simpatizará da causa de mercenários, e o tesouro o Lorde de Porto Botero reclamará de volta. Arriscarão suas vidas por isto, ou virão comigo?

O discurso em nada serviu. Os homens determinaram-se a ficar no navio, no fundo, até Sohrab desejava ficar, mas sabia que se o fizesse, estaria tão morto quanto Ertug e Ahskym. Embora quisesse trocar de lado, sabia agora ser tarde demais para essas manobras. Havia causado danos demais com a bandeira dos Yvísimono, nenhuma outra casa aceitaria seus serviços ou o da companhia.

Então houve a separação, os mercenários que restaram se contavam nos dedos. Eram Sohrab, Roau, Hylog, Desaro, Zigor e Cázo.

Pela ausência de comércio na margem norte do Clemente, tiveram que andar o caminho a pé até Tehwx. A terra estava úmida, mas não havia barro para a felicidade de todos. E em fortuna dos desfavorecidos, não encontraram também nenhum bandoleiro. No entanto, caminharam todo o dia e também o começo da noite, sendo que a pequena Yanina reclamara todo o percurso, mais do que reclamara do enjoo. Sohrab pensava como Kenno podia gostar daquelas crianças, elas eram desprezíveis.

Ele, na idade do garoto, já sabia duelar melhor do que muitos soldados. Görn, porém, empunhava a espada de treino feito uma dama de corte que jamais encostara sequer em uma adaga.

Chegaram, por fim, na estrada de Tehwx, e encontraram uma estalagem com camas e comida, onde passaram a noite. As acomodações eram simples, quartos pequenos com camas rígidas que não rangiam e colchões estofados com feno velho pouco confortável, candelabros de parede com velas grossas queimando lentamente e um armário para os pertences.

No alto da madrugada Sohrab ainda bebendo, escutava a conversa do estalajadeiro no balcão do salão principal;

— Sabia que para evitar contaminação da água, o Rio Barro passa por Barri, mas isolado de qualquer contato com a água do Clemente? Nós, porém, temos que beber essa barreira. Demora horas para a terra baixar e a água ficar branca, precisei criar toda uma piscina para filtrar a água.

— E se no cerco Javargh envenenasse o rio? — Sohrab sentia-se zonzo com o mel e rum que bebia. — Tehwx beberia o que?

— Mijo! — O estalajadeiro gargalhou, Sohrab também.

E depois disto abaixou a cabeça no balcão, aonde acabou por dormir.

*****

Apenas pela manhã que despertou com Roau lhe cutucando.

Acordou balançando os braços e acabou derrubando o corno de segurava, espirrando cerveja mentolada contra o próprio colete.

— Acorde, olhe, chegou para o estalajadeiro. — Disse entregando a carta para Sohrab que se levantava e chacoalhava o colete, respingando cerveja no balcão. — O que diz? Sabe que não sei ler.

Sohrab sabia. Olhou o papel focando nos desenhos que formavam letras. Sabia ler, só não muito bem.

— Diz que estamos fodidos e mal pagos. — Reclamou jogando o papel. — Cadê Letrüssio?

— Ainda dorme…

— Acorde o desgraçado. — Resmungou abrindo os cordões do calção e indo até a porta da estalagem para os fundos. — Acorde todos. Estamos saindo daqui!

— O que dizia a carta?

Sohrab urinou enquanto olhava para o céu.

— Dizia que Barri esta cercada. E tem tropas na Vila Yanter.

— Há uma estrada direta de Yanter até aqui…

— E por isso você deveria estar acordando Letrüssio!

*****

Apressaram-se na fuga novamente. O estalajadeiro mesmo fora ameaçado para não dizer nada sobre a visita deles à estalagem. Então partiram dali para o centro comercial de Tehwx. O caminho levou quarenta minutos de caminhada cruzando um pequeno e denso bosque, mas a trilha era bem aberta e não se sentiram ameaçados em momento algum, quanto mais se aproximavam do centro, mais movimento viam, desesperado movimento de um povo apavorado fugindo de Barri.

— Essa é a guerra pelo outro lado. — Letrüssio disse para sua esposa.

Mas para Sohrab, aquilo era simplesmente guerra. O povo desnorteado, sem rumo fugindo para sabe-se lá aonde, alguns tinham familiares no interior, outros deixavam tudo para trás. De qualquer forma, como mercenário ele havia aprendido a lidar com aquilo.

Passavam pela multidão escoltando a família Yvísimono, os Brutos criavam um cordão de isolamento, empurrando aqueles muito ousados que, ao verem uma família escoltada, usando roupas finas e de olhar superior, se aproximavam com más intenções.

Vez ou outra Desaro e Cázo empurravam ou batiam em um ou outro mais abusado que tentava explicitamente furar o bloqueio, se jogando contra a família. Alguns destes gritavam ofensas para eles.

— Eles acham que somos nós quem causamos isso? — Görn perguntou enquanto andavam.

— Mas não fomos nós. — Nadir respondeu para o sobrinho, ela tinha Yanina debaixo de seu braço e Görn do outro lado.

Letrüssio ia à frente dos três, ao lado de Sohrab. Ao ouvir a conversa olhou para trás.

— Não causamos, mas isso importa? — Olhou especialmente para Görn. Yanina aprenderia aquelas coisas com o tempo, mas Görn deveria saber dessas coisas. — Essas pessoas estão desamparadas e procuram alguém para culpar. A culpa sempre é dos ricos. Eles não querem o culpado, querem alguém para culpar!

— Vamos sair logo daqui, Letrüssio. — Nadir pediu ao esposo, empurrando Yanina para frente enquanto as massas convergiam contra eles.

As ruas de Tehwx estavam apinhadas, e às margens do Rio Barro encontraram fervor indizível. Era um porto pequeno para comércio local e pesca, mas naquele instante havia até mesmo uma fragata estacionada ali.

— Ela não vai conseguir passar desse ponto. O rio é muito disforme. — Sohrab disse ao verem a bandeira tremulando no mastro; Javargh.

— Como Barri deixou isso acontecer? — Nadir perguntou para Sohrab e seu esposo.

No porto, porém, não havia desembarcado nenhum soldado do Rei Ellor.

Pararam a segura distancia para assistirem o espetáculo. Havia um bloqueio de guardas de Tehwx, quase sessenta homens impedindo que o povo chegasse até os barcos de pesca. Mas não é pescar que eles querem. O rio era o caminho mais rápido, mas com a fragata inimiga ali era também inviável.

Os guardas de Tehwx vestiam uma cota de malha pintada em azul marinho e verde-musgo, nas cinturas todos tinham uma cimitarra com lâmina prateada e punho verde-escuro. Eles formavam uma linha única, sendo fácil de quebrar o bloqueio, mas a ideia de sofrer um corte daquelas espadas espantava a vontade do povo de furar o bloqueio.

— Eles querem fugir pelo rio, mas temem a fragata. E apenas por isso não passam por cima da guarda! — Desaro disse.

Letrüssio podia acreditar naquilo. Era plausível. O medo de Tehwx cair fazia com que quisessem fugir, mas o inimigo estava na rota de fuga, e isto fazia com que ficassem. Mas se por acaso as muralhas de Barri forem rompidas e o povo de lá fugir em massa, então eles passarão por cima de soldados e da própria fragata! Letrüssio sabia que o poder, o verdadeiro poder, residia no povo unido como um só, em busca de um mesmo objetivo. Precisamos sair daqui de uma vez por todas.

Então tambores ressoaram. Uma marcha surgiu pela esquina de uma avenida lateral à praça aonde estavam.

— Quem vem lá? — Cázo perguntou.

A guarda de elite de Tehwx protegia uma carruagem de madeira negra que avançava lentamente, puxada por dois cavalos de pelos igualmente negros.

— Não são patrulheiros. — Roau disse.

— Não, não são. — Letrüssio olhou para os guardas, sabia quem vinha na carruagem. — Precisamos ir agora. — Disse para Sohrab. — Na carruagem está Shedya, ela me conhece.

— Aquela mulher odiosa? — Nadir perguntou ao marido.

— Quem é Shedya? — Sohrab perguntou para Letrüssio.

— Lady de Tehwx após a morte de Esger, seu esposo. Ela era uma mulher agradável, suportável, estava grávida quando Esger morreu. Precisamos ir!

Sem mais, se viraram e os Brutos foram abrindo caminho para outras vias enquanto a carruagem de Lady Shedya se aproximava do porto.

—... Lorde Esger pescava toda quinzena, mas uma vez caiu do barco, não se sabe como, caiu. Afogou-se e o corpo sumiu por treze dias, nos quais Lady Shedya, grávida, se negou a comer. Sofreu um aborto espontâneo então. Quando o corpo de Lorde Esger foi encontrado, mais para baixo no Rio Barro, estava todo roxo e inchado. Ela então se tornou uma mulher fria e rude, nunca tornou a se casar ou a sorrir! — Nadir explicou para sua filha enquanto andavam agora em uma viela vazia.

Os Brutos conduziram a família Yvísimono para a saída norte de Tehwx aonde encontraram paz. A multidão havia ficado para trás e ali estavam pessoas mais sensatas que preferiam uma viagem mais longa e certa do que o rio. Também havia menos guardas, porém os que patrulhavam as estradas impediam que quase todos deixassem Tehwx em suas carruagens.

— Fiquem ai, vou falar com eles. — Sohrab gesticulou tomando a dianteira, e Letrüssio foi junto dele. — Disse para ficar. — Grunhiu baixinho para Letrüssio.

— Negociaremos juntos.

— Não vou lhe trair.

— Não pensei que fosse — Letrüssio respondeu com um falso sorriso para Sohrab, e então os dois pararam frente a um grupo de sete guardas. — Boa tarde senhores.

— Tarde.

— Tarde! — Responderam dois deles, o resto apenas anuiu com a cabeça.

— A estrada é segura?

— Com esse bando de guardas, deve ser! — Um deles disse apontando para os brutos. — Quer ir ao norte é?

— Fugindo da guerra enquanto dá tempo. — Letrüssio argumentou. — Tenho certeza que se não fossem homens corajosos e juramentados ao dever de proteger o povo, também pensariam nisso. Olhem, vejam, é minha filha, minha esposa. Eu mesmo já sou velho. E aquele menino é o único filho de meu irmão, estava de veraneio comigo. Quero proteger eles!

— Tenho certeza que quer. Caso contrário porque dos mercenários.

— Eles? Bem, um mal necessário! — Letrüssio disse apontando com o dedão para Sohrab. — Antes protegendo mulheres e crianças do que ao lado dos invasores matando elas não?

Os guardas então trocaram olhares.

Sohrab olhou para Letrüssio e pareceu questionar ele sobre a forma que conduziu os negócios ali. Os guardas então cochicharam entre eles, parecendo entrar em consenso.

— Podem deixar Tehwx. Mas não podem levar nada com vocês. São ordens da Lady Shedya.

— Sim, manter o tesouro local é importante! Não desejo levar nada além do essencial...

— Vamos revistar todos! — O guarda interrompeu Letrüssio.

Sohrab olhou torto para ele.

— Naturalmente! — Então sorriu para os guardas, olhou para trás. — Querida, traga as crianças. Vão nos revistar, por pura rotina. Então estaremos livres para prosseguir, correto?

— A pé! — Acrescentou o guarda enquanto os Brutos, a contragosto, eram revistados.

Quando chegou na vez de Nadir e Yanina, Letrüssio pediu que eles olhassem apenas as bolsas.

— São apenas mulheres, respeitem a intimidade de minha esposa e filha!

Disse, pela primeira vez, com a voz que Sohrab conhecia do homem, forte e imponente, irredutível. Os guardas perceberam a valentia na voz de Letrüssio, sorriam e continuaram a apalpar Nadir, mas a pequena Yanina foi poupada.

Sohrab foi ao lado de Letrüssio e cochichou para ele;

— Podemos acabar com isso...

— Não. — Ele pontuou. — Uma ferida na honra é melhor do que uma ferida no peito. Deixe estar. Haverá volta. — Então as revistas foram concluídas.

— Podem ir. Não encontramos nada demais. O que tem podem levar.

— Agradecemos pela bondade, senhor...

— Fenor. Quarto Guarda!

— Agradecemos, Fenor! — Letrüssio sorriu o mais simpático dos sorrisos, então com um gesto chamou sua esposa, sobrinho e filha. Os brutos se juntaram a eles novamente e então retornaram a estrada.

Um caminho, nada mais que isso. Ali acabava o reino de Barri, sendo assim, as estrada daquele ponto para frente levavam ao reino de GuizOr, um reino costeiro que nunca se importou em criar estradas seguras ou de qualidade. A maior prova do descaso por gerações era a floresta densa e intocada em certos pontos. A vida animal era por si só perigo o bastante para afastar curiosos dos caminhos que levavam à GuizOr, mas não bastante, sempre haviam corajosos ou tolos para percorrer o caminho do infortúnio, e, portanto, sempre havia também bandoleiros a espreita, prontos para saquear, estuprar e pilhar o que encontrassem de quem encontrassem.

Desta vez, porém, havia a vantagem da viagem não ser solitária. Dezenas de desafortunados caminhavam todos na mesma direção, ao norte. Muitos sem caminho real, apenas andando para longe da guerra. Almas solitárias sem nada para voltar, sem nada para os prender em Tehwx ou Barri.

Como partiram já pelo entardecer, a primeira noite chegou de forma abrupta, rápida e escura. A estrada tinha árvores dos dois lados, o caminho na frente se perdia num sem-fim de chamas de archotes cada vez mais distantes.

O cansaço Letrüssio podia ignorar. Se dependesse de suas vontades, e das dos Brutos, continuariam todos andando. Mas Yanina chorava de exaustão, e Nadir começava a reclamar também, acostumadas com liteiras, aquilo não agradava-as em nada. E como poderia?

O próprio Letrüssio irritava-se com a situação, mas entendia o imediatismo e o perigo que espreitava. Não era confortante, mas era sobreviver, e isto teria de bastar.

Com uma bronca em Yanina eles voltaram a andar por mais algumas horas noite adentro até ouvirem risos na mata. O cansaço fez pensarem não passar de uma ilusão de cabeças cheias, mas Sohrab fora sensato;

— Continuemos agora. Querendo ou não, vamos continuar. E faça a pequena se calar!

— O que são? — Görn perguntou para Desaro.

— Para nosso azar, não são lobos! — O Bruto respondeu temeroso, ao lado do garoto.

A comitiva se formara com outro aspecto agora. Roau e Hylog iam na frente, quase dez metros distantes do centro do grupo, cada qual com um archote, e entre eles uma distância de três metros. Zigor e Cázo iam na retaguarda, também com archotes e olhando para trás constantemente. No coração da comitiva estavam Yanina, Nadir, Görn e Desaro, e apenas Desaro com archote. Sohrab e Letrüssio iam um de cada lado, sem tochas.

Mantinham os olhos focados no escuro dos cantos da estrada, mas o chão era traiçoeiro e não incomum tropeçavam, deixando o archote despencar.

— Estou bem. Um galho! — Diziam então, para tranquilizar todos.

Foi apenas mais tarde, quando já não escutavam mais risadas na mata, ou uivos, ou pios de corujas ou sequer grilos, que tudo se tornou ainda pior.

O frio do norte começava a surgir em um vento anunciando chuva. A garoa fina começou, fazendo a pele gelar. Com o tempo, as gotículas nas folhas pesavam e fundiam-se nas copas das árvores e gordas gotas pingavam contra eles toda vez que ventava, um vento gelado e uivante. Os archotes já não iluminavam mais tão bem, o vento soprava as labaredas até quase apagar.

— Precisamos parar. — Sohrab disse quando a estrada rateava e algumas pessoas iam para um lado, outras para outro lado. — Se pegarmos o caminho errado podemos acabar no Rio Barro, ou perdidos em um bosque fechado.

— Não vamos dormir no chão. — Nadir disse olhando ao redor, mas sequer viam o entorno.

— Ajuntaremos galhos, faremos uma pequena fogueira mesmo na garoa, dormirão então! — Sohrab disse, então olhou para Zigor e Desaro. — Sabem o que buscar!

Letrüssio não fez oposição. Yanina chorava baixinho de dor nos pés. O descanço seria bom, mesmo que não confortável.

Quando Zigor e Desaro retornaram com galhos e folhas, eles montaram um amontoado e começaram a, com os archotes, fomentar as chamas.

Não demorou para que tivessem conseguido resultado, e uma pequena fogueira surgiu, tão pequena que apagaria em breve, mas àquilo, Sohrab, Hylog e Cázo puseram-se a buscar mais lenha e folhas por debaixo das folhas que já estavam úmidas com a fraca chuva.

Quando retornaram encontraram uma segunda e uma terceira família ali. Todos ao redor da fogueira.

Letrüssio se levantou e foi até Sohrab.

— O que é isso?

— Pessoas tão apavoradas quanto nós.

— Não estou apavorado! — Sohrab disse e apontou para as duas famílias sentadas ali com eles. — Estou cansado e sem ouro.

Letrüssio tornou a se sentar à beirada da fogueira junto das famílias. Nadir tinha Yanina deitada com a cabeça em seu colo após reclamar que não deitaria. Görn deitara no chão mesmo, encolheu-se como um feto, e adormeceu depressa.

Os mais velhos permaneceram acordados por mais tempo, relutantes, conversaram sobre a guerra, sobre suas origens, sobre seus futuros. Mas eventualmente todos dormiram, todos menos Sohrab e Roau, que suportaram a madrugada até os primeiros raios da aurora, então, juntos e contra suas vontades, acabam também adormecendo.

Foi apenas pela manhã, com os pássaros cantando e o orvalho pingando sobre as cinzas da fogueira desfeita, que acordaram.

Hylog fora o primeiro, abriu os olhos e ouviu os estalidos da madeira, pássaros, o vento fraco e gelado, os cavalos... Cavalos?

— De pé. — Hylog chutou a perna de Sohrab. — Olhe. Olhe ali.

Vinham cavalos, muitos cavalos. E carruagens.

— Acordem. — Sohrab cutucou Letrüssio. — Desperte sua família, temos que sumir agora.

— Não adiantará. São cavalos...

— Nos meteremos nas árvores. — Sohrab disse conforme, pela estrada de onde haviam vindo, os cavalos se aproximavam, depressa, com as bandeiras flamulando um dragão azul na frente de uma lua prateada. — Agora!

— Maldição. — Letrüssio se ajeitou no chão ainda e olhou ao redor. As duas famílias ainda estavam ali. Eram esposa e marido com um filho, e a outra família tinha duas meninas sendo uma delas da idade de Yanina.

— Façamos reféns. — Sugeriu Hylog.

Os outros brutos despertavam, assim como Nadir, que acordava Yanina e Görn.

Então uma corneta foi soprada nos cavalos, os cavaleiros se aproximavam depressa.

— Agora ou nunca! — Hylog disse com a mão em sua espada.

Então um dos homens acordou.

Ele olhou ao redor, olhou os cavalos.

— ACORDEM! — Gritou.

Desespero tomou conta do grupo.

Um foi contra o outro, Hylog não esperou ordens, tentou agarrar um refém, a criança, mas o pai não gostou e tentou revidar.

Letrüssio puxou sua família para suas costas e Sohrab ficou na sua frente.

— Deveria fugir.

— Agora? — Letrüssio perguntou enquanto Yanina gritava de pânico e Görn procurava uma arma. — Agora lutamos contra o azar.

— ALTO! — Berrou um dos cavaleiros montados então, próximo o bastante para ser ouvido.

Os cavalos circularam eles.

Hylog teve a mão mordida pelo garoto que escapou-lhe, então, em fúria, desferiu um golpe com sua espada, mas o golpe foi de encontro ao pai do garoto que se jogou na frente da lâmina.

— NÃÃÃÃO. — Berrou a esposa se jogando ao chão, pegando o corpo do marido.

A outra família se distanciou dos Brutos e dos Yvísimono, mas apenas o bastante para não se aproximar demais dos cavaleiros.

A comitiva de Javargh chegara doravante, cercaram eles rapidamente. Estavam sem saída.

— E agora? — Letrüssio perguntou para Sohrab. Sua mão segura a de Nadir atrás de si, e Nadir abraçava, com o outro braço, a pequenina Yanina. Görn estava com uma adaga em punho, ao lado do tio, rosnando aos inimigos.

— Aquele...

— Não pode ser. — Letrüssio viu um cavaleiro esguio e sem armadura de combate descer de seu cavalo por trás do outros cavaleiros.

Muitos desciam dos cavalos agora.

Eles olharam para os cavaleiros, e os cavaleiros retribuíram os olhares. Exceto o esguio, pois este usava um ornamento que o distinguia. A coroa prateada em sua cabeça mostrava quem era, a pele branca e pálida como leite não deixava dúvidas.

— Fechem as feridas do homem como puderem. — Rei Ellor disse apontando para o homem acertado pelo golpe de Hylog. — Mantenham todos os outros sob vigilância. Exceto pelos que tem espadas. Estes quero prontos para julgamento em Androva.

— E o nobre? — Perguntou um dos cavaleiros, este negro e forte.

Letrüssio soube que falavam dele, mesmo naquelas condições, suas roupas, assim como a coroa de Ellor, entregava sua posição social.

Rei Ellor olhou para os Brutos, então olhou para Letrüssio.

Era um garoto embora parecesse homem. Tentava manter sua pose, mas as palavras escorregavam nos lábios, quase que incertas. Letrüssio via futuro para aquele jovem rei, Letrüssio via-se no jovem rei.

— Julgamento, em Androva!

E se for como eu, é este o meu fim! Pensou enquanto agrilhoavam suas mãos.


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