O Caminho da Andorinha escrita por BadWolf


Capítulo 2
Os Problemas de um Rei


Notas iniciais do capítulo

Bom, vamos nos afastar um pouquinho da Ciri e sua vida de Bruxo para entender melhor como está a situação política na Teméria. Velhos conhecidos irão reaparecer...

Boa leitura!



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Teméria, 1279.

Palácio de Vízima

(Quatro meses atrás)

            Os sinos de Vízima badalaram mais uma vez.

            Maria Louise La Valette suspirou pesadamente. O salão principal do Palácio de Vízima estava abarrotado de pessoas, acotoveladas ali desde cedo. O murmúrio de gente do lado de fora, embora abafado pela distância, dava certeza à Baronesa que os camponeses, embora excluídos daquela Cerimônia, estavam também aglomerados do lado de fora. Era impossível saber, por causa das paredes de mármore nobre e dos esplêndidos vitrais daquele palácio, o horário correto do dia, mas pelo seu cansaço e o leve roncar de seu estômago, já deveria ser quase meio-dia. Meio-dia, e finalmente eis que veio a última da fila.

            A jovem menina, de aparentes quinze anos de idade, cabelos castanhos e semblante ossudo pela fome, deu leves passos, mantendo a cabeça abaixada, decerto envergonhada pelos olhares curiosos daquelas centenas de pessoas. Maria Louise já a descartou naquele exato momento. Sua filha, Anais, criada para ser, no mínimo, uma nobre, jamais andaria com a fronte acurvada, e algo lhe dizia que nem os anos passados em meio a plebeus mudaria isso na menina.

            -Conte-nos sua história.

            A jovem menina ergueu, pela primeira vez, sua fronte. Olhou para a Baronesa. Olhos azuis, notou a nobre. Anais tinha os olhos castanhos. Os olhos de Foltest, assim como Boussy. Ela seria capaz de reconhecer aquele olhar em qualquer lugar, ainda que oculto por trapos e poeira. E aquele olhar não estava naquela jovem.

            -Milorde... Er... Sua Majestade... Eu... – fez a jovem uma referência vulgar,usando todos os títulos de nobreza que vinham à mente, numa tentativa de acertar. Maria franziu o cenho. Estava muito difícil ser paciente. O desespero dos camponeses estava a tal ponto que eles nem mais treinavam minimamente as candidatas com o mínimo de etiqueta. Muito embora a nobre duvidasse que esse conhecimento estivesse ao alcance deles.

            -Comece contando sobre a morte de seu pai.

            Nos últimos tempos, as perguntas iniciais ficaram a cargo de Morvran Voorhis, o Rei Governante de Teméria, representante máximo de Nilfgaard nos Reinos do Norte, e principal organizador da cerimônia intitulada pomposamente como “A Cerimônia de Reconhecimento da Nobreza dos La Valete”, que logo caiu na boca do povo como “A Cerimônia para achar a Princesa de Foltest”, embora Anais jamais tenha sido reconhecida oficialmente como princesa da Teméria, muito menos de Foltest.

            -Meu pai... O finado Foltest... Eu... Eu o vi morrer diante de meus olhos. Nas mãos do bruxo.

            Foi o próprio Morvran Voorhis quem fez questão de não esconder sua impaciência, rolando os olhos para as falas da jovem.

            -Isso todos sabem.

Imediatamente, risadas tomaram o Salão Principal. Um momento breve, que foi logo interrompido pelo erguer soberano da mão de Morvran Voorhis, silenciando o burburinho divertido dos nobres. Embora aquela fosse a décima nona candidata do dia, os nobres não pareciam se cansar de assistir esse tipo de constrangimento.

—Conte-nos um detalhe que só alguém que esteve lá poderia dizer. Um detalhe que considera significante.

—Sim, Sua Majestade. – disse a jovem plebeia, fazendo mais uma reverência torta e desnecessária. – Logo que vi meu pai, agonizando, eu... Eu... – a menina pôs-se em lágrimas. – Eu corri até ele, e... Então, eu... Eu toquei em seu rosto. E ele olhou nos meus olhos e disse... “Minha filha, sangue de meu sangue... Dê continuidade ao meu legado e faça da Teméria um povo forte e unido.”

A jovem começou a soluçar, sem parar. Fechando as pálpebras de cansaço, Morvran fez um último comentário.

—Belas palavras. Creio que teriam sido ditas por Foltest, se ele não estivesse com sua garganta aberta e jorrando sangue como um chafariz.

As risadas tomaram, outra vez, o Salão. O choro da jovem logo se dissipou, ao perceber que não fora emocionante o suficiente para comover aquela mulher. Trêmula, a jovem logo viu Morvran Voorhis estalar os dedos. Ela sabia bem o que lhe aguardava. Dois guardas se aproximaram dela e logo a seguraram pelo braço, com rispidez.

—Baronesa La Valette, esta jovem posta diante de si, clamando ser Anais La Valette, é realmente sua filha?

A jovem olhou para ela, com seus olhos azuis clamando por ajuda. Tentando esconder sua insipidez, a Baronesa sentiu sua garganta estremecer, antes de proferir seu derradeiro veredito.

—Não.

Vaias se seguiram, enquanto a jovem era arrastada até os calabouços, gritando e chamando a Baronesa de “mulher sem coração”, o que só alimentava os risos dos nobres, presentes no Salão Principal.

O sino badalou mais uma vez. A Cerimônia estava encerrada, e mais um enforcamento aconteceria no dia seguinte. O décimo nono enforcamento do dia.

Mas ainda havia o banquete...


§§§§§§§§§§§§§§


            Quer distrair o povo? Faça uma festa. Essa máxima é conhecida por qualquer conselheiro, de qualquer reino do Continente, e o Rei Morvran Voorhis era esperto o bastante para conhecer este artifício. Não só criou a busca pela filha perdida do Rei Foltest, mas também trouxe um pouco de distração a cada vez mais insatisfeita nobreza com um farto banquete, repleto de Música e iguarias exclusivas de Nilfgaard. Em tempos de dificuldades econômicas, como vivia a arrasada Teméria, ter o privilégio de ter participado de um banquete do Rei era digno de fazer inveja.

            A música alegre dos bardos ecoava pelo Salão, preenchido pelas coloridas e estonteantes vestes da nobreza. Maria Louise trazia em seu rosto os lábios encurvados de modo teatral. Seu semblante de naturalidade para alguns era, na verdade, uma grande fachada pelo seu desgosto de estar ali. Alguns se aproximavam dela, faziam leves reverências, quando não demonstravam seu fingido pesar pelo fracasso de sua busca. Com a classe que lhe era proveniente de berço, a Baronesa os tratava com gentileza, muito embora, no mais íntimo de seu ser, ela mandasse todos aqueles nobres hipócritas para a puta que pariu, senão pior.

            Uma leve salva de palmas para o grupo de bardos. Tendo sua taça de ouro cheia de vinho em mãos – a Baronesa não sabia se aquela já era a quarta ou quinta rodada – o Rei Morvran Voorhis sorria e aplaudia o grupo recém-contratado para tocar em Vízima. Alguns nobres disfarçavam bem seu asco, pelo fato dos bardos serem liderados por um elfo. Ele era extremamente talentoso com um alaúde, mas isso não parecia ser o bastante. Em se tratando de inumanos, nunca é o bastante, pensava Maria Louise La Valette.

            Mas, para sorte dos elfos, nilfgaardianos como o Rei Voorhis pouco se importavam com questões raciais. Aliás, há quem diga que nilfgaardianos até se simpatizam por elfos, a ponto de conclamarem ter boa parte de seu sangue élfico e atrelarem sua “civilidade e progresso” a isso.

            -Momento da peça teatral. – disse o elfo Argalad, liderando o grupo. A nobreza aplaudiu. Peças teatrais em Vízima eram um dos pontos altos da noite. Todos olhavam para os atores, curiosos sobre o que eles encenariam. Seria mais uma das histórias de Dandelion a respeito do bruxo de cabelos brancos e sua feiticeira que cheirava a lilás e groselha?

            Silêncio.

            Um ator, usando uma estonteante capa negra, portando uma coroa dourada em sua cabeça, apareceu, com o semblante carrancudo. Seu semblante era fechado, seu nariz, em pé. Os cabelos do ator, negros por uma tinta, estavam vigorosamente penteados para trás. Um grande Sol dourado enfeitava sua capa.

            -É o Imperador Emhyr! – cochichavam alguns nobres.

            Diante do Salão, completamente silencioso pela expectativa da encenação, o ator começou a falar, com a voz grossa e rouca, imitando o sotaque tipicamente nilfgaardiano.

            -Quem teve a coragem de solicitar uma audiência? – ele disse, com uma voz imponente. Os nobres presentes achavam a apresentação caricata, mas não sabiam como reagir. Afinal, aquela era uma troça aos nilfgaardianos. Uma ousada troça. Alguns presentes chegavam a ficar com o semblante avermelhando, segurando qualquer risada com todas as forças. Alguns tentavam olhar para o Rei, numa tentativa de ver sua reação àquele curioso espetáculo. Seu semblante era neutro. Isso nunca era um bom sinal.

            -Eu!

            De repente, dois atores surgiram. O elfo, líder dos bardos, agora estava vestindo um chaperon preto. Usava uma túnica branca com listras azuis, além de uma couraça fajuta no peito e uma espada de madeira nas costas. Nas suas mãos, uma sacola. Ao lado dele, um homem baixinho e careca, usando óculos, parecendo amedrontado com algo.

            Dois nobres observavam a peça e conversava aos cochichos.

            -Acho que agora estão encenando sobre aquele Comandante dos Listras Azuis...

            -Quem?

            -Aquele que é um filho da puta... Esqueci o nome.

            -Ah sim.

            O ator que interpretava Emhyr voltou-se aos dois homens.

            -Espero que tenham cumprido com o combinado. – disse o homem, com grande autoridade na voz. A cada palavra do Imperador, o sujeito de óculos tremia. O elfo de chaperon, de repente, lançou aos pés do Imperador a sacola.

            -Conforme o combinado. – disse o homem de chaperon.

            Ao abrir a sacola, uma melancia rolou pelo Salão. Silêncio – embora fosse possível ouvir algumas risadas suprimidas. Por fim, todo o Salão gargalhou, logo que foi possível ver o Rei rindo. La Valette não viu escolha senão rir, muito embora não estivesse achando qualquer graça daquilo.

            A nobre imediatamente se lembrou daquele dia. Uma grande audiência pública foi anunciada em Vízima. O Imperador Emhyr convidou parte da nobreza não só da Teméria, mas também de Nilfgaard, para esta audiência. Ninguém entendeu absolutamente a razão para isso, mas um convite da Chama Branca não era algo a se recusar, por isso o Salão Principal de Vízima estava abarrotado de nobres quando duas inesperadas pessoas simplesmente apareceram nele.

            Um dos sujeitos era estranho aos olhos da Baronesa, mas um deles... A nobre não teve dúvidas de quem era. Vernon Roche, o ex-comandante dos Listras Azuis. Braço-direito de Foltest, e um de seus mais fiéis soldados – senão o mais fiel. Acusações gravíssimas de que ele havia assassinado o Rei Henselt pesavam sobre ele, fato este que fazia Maria Louise La Valette estranhar a presença dele ali sem que nenhum guarda nilfgaardiano erguesse uma espada. Afinal, aos olhos de todos ali, ele era um Regicida que poderia facilmente incluir um Imperador em sua vasta lista de mortes.

            Sentado ao Trono Temeriano – o Trono que um dia pertenceu a Foltest e que teria pertencido a um de seus filhos, pensava com tristeza Maria Louise – o Imperador olhava o temeriano com asco. O sujeito franzino e de óculos, que Maria Louise ouviu do cochicho de um nobre ao seu lado ser um espião temeriano chamado Bernard Ducat, logo se curvou. Mas Roche nada fizera. Permanecera de pé. Uma leve torção era possível de ser vista no canto do lábio de Emhyr. Quando o Imperador de Nilfgaard fez um pequenino aceno com um dos dedos, um soldado nilfgaardiano pôs-se atrás de Roche e chutou-lhe nas costas dos joelhos, fazendo o soldado temeriano cair sobre o chão.

            -Típico comportamento esperado de um incivilizado temeriano, sem reputação como você. Saiba que ainda há ar em seus pulmões porque eu te dei minha palavra de que nenhum mal lhe aconteceria, contando que você fizesse conforme o combinado. Onde está?

            Quando Vernon Roche lançou sobre os pés de Emhyr a cabeça de um homem retirada de uma sacola, o Salão tomou-se de horror. Presa a testa, uma coroa de ouro. Um sorriso diabólico era facilmente visto no rosto de Emhyr.

            -É o Rei Radovid! – gritou um nobre, horrorizado.

            Todo o Salão Principal de Vízima tomou-se de burburinho. Alguns nilfgaardianos bradavam “Regicida!”, indignados. Outros estavam estarrecidos. Coube a Emhyr silenciar a todos os nobres presentes, com o erguer de um dedo seu.

            -General Lithmont, dê seu parecer.

            -A resistência temeriana se retirou da floresta de Novigrad. As tropas redanianas estão dispersas. Quem assumiu o Trono da Redânia foi a Rainha Adda, que apresentou essa manhã o seguinte comunicado.

            O homem fez sua reverência, antes de ler pomposamente uma carta.

            “Diante do falecimento de meu esposo, o Rei Radovid, o quinto de seu nome, a Redânia declara trégua, bem como a retirada de suas tropas das margens do Rio Pontar. Solicito respeitosamente A Chama Branca Dançante Sobre A Tumba Dos Inimigos, o Imperador Emhyr Var Emreis, que aceite minha comitiva de embaixadores para que os termos de rendição e paz sejam assinados. Rainha Adda, da Redânia.”

            Mais burburinhos. Não havia dúvidas. A Terceira Guerra contra os Reinos do Norte havia terminado. Com a vitória de Nilfgaard. Não foi uma vitória propriamente militar, mas sim estratégica. Derrubaram o único Rei que estava atrapalhando a tomada do Norte.

            Agora, praticamente todo o Continente pertencia – direta e indiretamente – à Nilfgaard. Todos os reinos relevantes, pelo menos. À exceção das sempre neutras Kovir e Poviss.

            A Baronesa voltou seus olhos para Morvran Voorhis, que estava ao seu lado. Ira estampava seu rosto. A Baronesa sabia bem o que significava aquilo. Sua conspiração para tomar o trono de Nilfgaard teria fim, afinal o Imperador conseguiu vencer a guerra que estava deixando o Império em grandes dificuldades financeiras. Emhyr conseguiu mais alguns anos no trono. Quanto à Morvran... Seria bom que ele se cuidasse.

            -Como pode ver, o Rei Radovid está morto. Cumpri com minha parte do combinado. Espero que também cumpra com a sua. Para relembrá-lo de minhas solicitações: quero a Teméria restaurada.

            Emhyr fez um gesto de menosprezo com os dedos.

            -Será restaurada sim, mas sob a condição de um reino vassalo. E em virtude da ausência de uma Família Real para ocupar o Trono, a Teméria será comandada por alguém de minha escolha. E eu escolho Morvran Voorhis.

            Maria Louise não pôde deixar de esconder sua surpresa com a escolha de Emhyr. Por que, afinal, o Imperador escolhera ceder o cetro de Rei da Temeria ao seu mais ferrenho opositor? Na época, a Baronesa estranha muito a escolha do Imperador, mas agora, que assistia Morvran ocupadíssimo com um reino devastado pela guerra, tendo a nobreza dividida e em pé de guerra e tendo que pagar tributos altíssimos, a nobre viu o gesto como um golpe de mestre. Atarefado com um reino em desordem, Morvran Voorhis não tinha mais tempo para conspirações.

            -É impressão minha ou você está pensando em fazer alguma objeção à minha decisão, temeriano? – retrucou o Imperador, furioso.

            A Baronesa voltou seus olhos a Roche. Percebeu que o soldado havia suprimido alguma coisa. Ao percebê-lo engolir a seco, a nobre temeriana teve um pressentimento. Ele estava escondendo alguma coisa. E envolvia o Trono. Diziam que ele foi visto escapando de Loc Moinne com uma menina. Seria ela...? Não. Um homem desses, inescrupuloso e bárbaro, não teria condições de cuidar de uma menina tão delicada como Anais. Minha Anais não sobreviveria estando ao lado de um brutamontes como Vernon Roche, pensava Maria Louise.

            -Nada a declarar, Sua Majestade Imperial.

            -Foi o que pensei. [Guardas!]

            Para surpresa não apenas de Roche e Thaler, mas também dos presentes, guardas se posicionaram, desembainhando espadas e colocando suas lanças em posição de ataque. Thaler percebeu que a hostilidade era completamente voltada ao comandante temeriano, claramente por sua fama. Longe de ser um espadachim habilidoso, o franzino espião aos poucos se afastou do clima de tensão e dos Cavaleiros Negros, prontos para derramar sangue sob um comando. Roche chegou a desembainhar sua espada, apesar de saber que seria tolice tentar escapar de Vízima estando tão cercado assim. Mas ele era resiliente demais para se render, mesmo estando em tão profunda desvantagem.

            -O senhor prometeu. – apenas disse Roche, olhando com profunda ira nos olhos do Imperador Emhyr.

            -Que poderia adentrar ao meu palácio ileso, é verdade. Mas não prometi nada quanto à saída.

            -Seu desgraçado filho da puta...

            -[Matem esse Regicida!]

            O que se seguiu, lembrava a Baronesa La Valette, foi algo próximo de uma carnificina. Os guardas tentaram atacar Roche e acabaram encontrando resistência. Mesmo estando em considerável desvantagem numérica, Roche ainda conseguiu matar alguns deles, lentos em suas pomposas e pesadas armaduras. E teria matado mais, se um nilfgaardiano não tivesse acertado o braço dele com uma flechada, forçando o temeriano a largar sua espada.

            Lançado ao chão, Roche estava prestes a ter sua cabeça decepada pelo montante de um nilfgaardiano quando surgiu uma interrupção.

            -[Sua Majestade Imperial!] – pediu Morvran Voorhis a Emhyr. – [Tenho um pedido a fazer. Um pedido como o futuro Rei da Teméria.]

            Com um aceno de Emhyr, o nilfgaardiano não deu o golpe final em Roche, mas seu montante permaneceu erguido ao ar, apenas aguardando novas ordens.

            -[Que pedido?]

            -[Execuções diante do público não são dignas do povo nilfgaardiano. Gostaria de ver este Assassino de Reis executado de outra forma. Na verdade, eu o quero morto em meu primeiro dia de reinado, como um símbolo. Um símbolo de que a Teméria abandonará seus grilhões de selvageria e indecência. Um marco dos novos tempos, prósperos e civilizados sob as mãos de Nilfgaard.]

            Emhyr parecia ponderar. Por fim, assentiu.

            -[Levem-no para a masmorra mais isolada deste Castelo.]

            Agora, a Baronesa observava mais uma vez o espetáculo de teatro encenado diante de Morvran Voorhis. Era o ato final. A morte do famigerado Regicida, o primeiro ato da “Era Voorhis” na Teméria. Tolos, pensava agora a Baronesa.

Trancafiado a pão e água e preso a uma cela imunda, isolado de tudo e todos, Vernon Roche recebeu uma inusitada visita naquela manhã.

            A Baronesa, em pessoa. Usando uma capa, para ocultar sua identidade.

            -Onde está a minha filha?

            Roche pareceu surpreso ao vê-la. As listras brancas e azuis de seu uniforme já estavam cinzentas, de tanta sujeira. Uma espessa barba parcialmente grisalha ocupava seu rosto. Mas apesar de seu estado deplorável, seu chaperon permanecia na cabeça. O Rei Emhyr realmente não estava brincando quando ordenou que ele ficasse isolado.

            -Morta. – disse categoricamente Roche, depois de se recuperar da surpresa.

            -A quem você quer enganar, Roche? Eu vi sua reação diante do Imperador! Você tinha outro nome para propor ao invés de Morvran...

            Roche riu. – “Morvran”... Vejo que já há intimidade o bastante entre você e aquele nilfgaardiano com cara de leitão. A senhora realmente não perde a oportunidade, Baronesa...

            -Cale-se! – exigiu a mulher. – Não estamos aqui para conversar sobre minha vida pessoal, mas sim sobre minha filha Anais. Você está com ela, não negue isso. Viram você fugindo de Loc Moinne com uma criança. Tudo que você faz é pelo bem da Teméria.

            -Bem da Teméria? Anais é uma bastarda...

            -De um Rei sem herdeiros.

            -Que seja. Um bastardo é um bastardo. Seria tolice minha indicar um bastardo para ocupar o trono. A nobreza não aceitaria, para começo de conversa.

            -Fala como se Foltest tivesse tido um bastardo com uma camponesa. O sangue que circula nas veias de Anais é nobre, de uma maneira ou de outra. Um pouco de conversa e negociação resolveriam o impasse com a nobreza e minha filha seria Rainha.

            -Eu já disse... – insistiu Roche. – Anais está morta.

—Eu sei de toda a devoção que você tinha por Foltest. Se ele te mandasse você andar pelo fogo, você o faria sem hesitar. Você jamais daria as costas para um filho dele. E você não deu as costas para Anais.

Com a cabeça baixa, parcialmente coberta pelo chaperon, Roche parecia assentir com algo.

—Ajude-me a escapar e eu conto o que aconteceu com Anais. Eu prometo.

A Baronesa tomou-se de hesitação. Ela não fazia a menor idéia de como conseguir isto Já havia sido complicado ter acesso às celas dele, mas o que ele pedia...

—Não estou pedindo que me leve pela mão para fora de Vízima. – retrucou Roche, como se adivinhasse os pensamentos dela. – O que peço é que dê um jeito de abrir esta cela. Esse cadeado é muito forte. Arranje uma chave ou algo para que eu possa força-lo. Eu dou um jeito no resto.

Quão tola eu fui, pensava agora a Baronesa, anos depois daquela fuga. Quão tola eu fui por acreditar naquele maldito filho de uma puta. Morvran creditou sua tolice ao seu desespero de mãe, logo que soube que Roche, apesar de estar enfraquecido pela estadia na prisão, deu um soco bastante forte na Baronesa a ponto de fazê-la desmaiar, logo que a cela foi aberta. Desde então, nunca mais se soube dele. Antes que a notícia sobre a fuga de Roche chegasse aos ouvidos de todos, Morvran matou um prisioneiro qualquer e o colocou no lugar de Roche, alegando que o temeriano havia morrido de cólera, como muitos outros presos. A princípio, todos acreditaram, e o mundo pareceu subitamente mais aliviado com a notícia de que o duplo Regicida da Teméria havia morrido.

            Mas ele ainda estava lá, pensava a Baronesa. Ainda estava lá fora. E ele tinha notícias sobre Anais. Notícias que Morvran jamais conseguiria.


§§§§§§


            -Quero que cesse com essas reuniões.

            Morvran suspirou fortemente. Claro. Por isso, Maria Louise ficara todo o banquete em silêncio, não respondendo a nenhum de seus comentários, por mais simples que fossem. O nilfgaardiano também sabia reconhecer quando seus sorrisos eram sinceros, embora ele tivesse que admitir que a nobre era uma excelente atriz na arte de disfarçar suas emoções. Sem dúvida, destinada à realeza, embora sua linhagem não estivesse relacionada diretamente a nenhum trono no Continente. Nada que um bom casamento não resolvesse.

Com a pessoa certa, obviamente.

            -E por que eu faria isso? – perguntou o nilfgaardiano, fazendo-se de desentendido. Com seu rosto escondido por seus cabelos, soltos e penteados por uma escova, a Baronesa voltou seus olhos para o nilfgaardiano.

            -Porque Anais está morta. – decretou, por fim, a Baronesa La Valette.

            Não parecia ser o bastante para Morvran Voorhis, que levemente meneou com a cabeça. A Baronesa já conhecia o bastante as maneiras diplomáticas de Morvran para saber quando ele estava pronto para dar uma resposta evasiva.

            -Os camponeses se aglomeram por Vízima. Nobres igualmente. Todos desejam ver as meninas que se titulam ser a jovem Anais, ouvir sua história de dificuldades e, principalmente, sobre a morte de Foltest. É de consenso geral que Anais foi testemunha ocular daqueles acontecimentos. Todos querem ouvir o que sua filha tem a dizer. Desde o mais rico dos Barões até o cuidador de porcos da cidade. Entende o quanto isso é importante para mim?

            A Baronesa suspirou.

            -Estou cansada.

            -Se quiser, posso fazer uma triagem mais rigorosa, para diminuir as candidatas...

            -Chega, Morvran. Uma vez por mês, você me faz olhar para rostos de camponesas famintas, que largam suas casas e famílias pelos quatro cantos do Norte para baterem a porta deste palácio alegando ser a minha filha Anais.

—Confio em sua tenacidade e persistência, Maria. Sei que você está pronta para enfrentar isso. Também confio em seu instinto materno de reconhecer a menina certa.

            -Você não entende, Morvran. Eu olho para o rosto dessas pobres meninas e vejo fome, cansaço, e acima de tudo, esperança. Esperança de que eu cometa um engano, um erro, e possa retira-las de suas vidas miseráveis ao tomar uma delas como minha filha perdida.

            -Os camponeses – interrompeu Morvran. – crescem ouvindo histórias sobre princesas e príncipes, reis e rainhas. Tudo que eles mais anseiam é ter nascido com o nosso privilégio, e eles são capazes de tudo para alcançar a nobreza, mesmo que tenham que pisar nos sentimentos de uma pobre mãe sem notícias do paradeiro de sua filha há anos. Mas eu sei que você é mais forte do que isso, Maria, e que... Maria?!

            A nobre se levantou, deixando Morvran Voorhis falando sozinho. O nobre nilfgaardiano não gostava quando a Baronesa tinha essas atitudes exacerbadas, mas procurava relevar porque essas cerimônias eram deveras cansativas e até mesmo irritantes. Mas era uma boa forma de manter o povo temeriano ocupado com distrações, ainda que fantasiosas.

            A porta se bateu. Morvran já reconhecia aquele bater ritmado na madeira. Era seu conselheiro, o feiticeiro Dethmold. Adorador do Grande Sol, Morvran Voorhis sempre se mostrou contra a ideia de Magia misturada à Governo, mas como era uma tradição que alguém versado em Magia ocupasse a cadeira de Conselheiro, o nilfgaardiano foi orientado a aceitar um deles. E o único feiticeiro do Norte que não estava escondido em Kovir e ainda disposto a se envolver em política após a perseguição em Novigrad era Dethmold, que aceitou com bastante agrado o cargo.

            -Sua Majestade. – fez uma leve reverência o feiticeiro. – Vejo que a Cerimônia foi infrutífera.

            -Não exatamente. O povo terá o que celebrar amanhã, quando aquelas jovens audaciosas estiverem penduradas sobre uma corda, na Praça Central de Vízima. E os nobres terão assunto por uma semana.

            -Olhando por este ponto de vista... – concordou o feiticeiro. – Ainda assim, entristece-me ver que Sua Majestade ignora meu testemunho sobre a menina Anais e permanece a acreditar que ela está morta.

            -Não ignoro seu relato, Dethmold. Eu realmente acredito que aquele militar temeriano realmente conseguiu escapar de Loc Moinne com a bastarda da Anais, mas e depois? Eu o vi quando ele esteve em Nilfgaard, jogando a cabeça de Radovid sem o menor pudor aos pés do Imperador Emhyr, que aliás, foi a coisa mais bárbara que presenciei em toda a minha vida. Por isso penso que aquele bruto simplesmente é incapaz de cuidar de uma criança, especialmente uma menina. Do contrário, ele teria apresentado Anais como uma alternativa àquela época, já que Foltest não deixou herdeiros legítimos.

            -Não deveria subestimar alguém como Vernon Roche, Sua Majestade.

            -Pois eu não o subestimo, Dethmold. Do contrário, não teria contratado três assassinos devidamente treinados para caçá-lo, ainda que por todo o Norte. Afinal, uma vez Regicida, sempre Regicida. Mas deixemos de lado o passado e foquemos no presente. No momento, não é aquele Regicida nojento que me preocupa, mas Mahakam.

            Dethmold parecia surpreso.

            -Presumo que tenha más notícias, Sua Majestade.

            -Eu não deveria me preocupar com aquelas montanhas pedregosas, eu sei. Afinal, os anões ainda comercializam normalmente conosco, mas meus homens tem relatado uma intensa movimentação de inumanos para aquelas montanhas. As investigações de meus espiões apontam que líderes rebeldes agora governam as montanhas de Mahakam. E líderes rebeldes muito bem conhecidos, por sinal.

            O feiticeiro deixou escapar uma careta.

            -Só pode ser Saskia, a Matadora de Dragões.

            -É o que afirma minha fonte. E ela não tomou Mahakam sozinha. Teve ajuda de um tal líder Scoia’tael, chamado Iorveth, até então dado como morto. Os dois reúnem agora um bom contingente de elfos e humanos, dispostos a darem suas vidas por seus líderes, se preciso for.

            -Algo não muito diferente de Vergen, Sua Majestade. Por isso, na qualidade de seu Conselheiro, recomendo que acabe o quanto antes com essa rebelião.

            Voorhis parecia hesitante.

            -Aquelas montanhas concentram todo o metal de qualidade do Continente, Dethmold. Desde o metal que usamos para forjar nossas espadas, até as pedras preciosas que adornam as jóias da nobreza. Nem em Nilfgaard temos tamanha reserva de minério. E qualquer movimento meu poderá ser retaliado pelos anões e a última coisa que desejo é cortar relações com nossa preciosa fonte de metais.

            -Entendo sua situação delicada, Sua Majestade, mas mais uma vez eu insisto...

            -E mais uma vez, eu retruco. Não posso atacar Mahakam. – respondeu Voorhis, de modo enfático e impaciente com Dethmold.

            -Há formas mais pacíficas de se acabar com uma rebelião, Sua Majestade. Uma delas é fornecendo outro inimigo a esses insurgentes.

            O nilfgaardiano franziu o cenho.

            -Explique-se. – demandou o governante. A curiosidade de Voorhis fez Dethmold sorrir levemente.

            -Creio que não preciso te dizer quem são os Filhos da Teméria...

            O governante bufou.

            -Outro bando de rebeldes desgraçados. Antes, era só uma pequena pedra no meu sapato, mas agora, mais parece um prego penetrado no meu pé, tamanha é a sangria que esses rebeldes têm causado nas contas do meu Reino. Carregamentos surrupiados, soldados mortos em emboscadas, guarnições nilfgaardianas atacadas... Tudo por esses bastardos que se intitulam “Filhos da Teméria”...

            -Exatamente, Sua Majestade. E o que tem de estorvos, tem de escorregadios. Pois bem. Tenho cá um plano que poderá ser de grande ajuda para colocar os seus dois maiores inimigos, no momento, um contra o outro.

            Como Dethmold esperava, sua explicação causou furor a Morvran.

            -Seria uma dádiva do Grande Sol. Pois conte-me logo esse plano.


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Notas finais do capítulo

Ihhhhh... Lá vem uma bomba para nosso casal 20 de rebeldes Iorveth/Saskia
E Roche conseguiu passar a perna na Baronesa e fugir... Que sacana. Alguém imagina onde ele está?

Obrigada por acompanharem!



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