O Caminho da Andorinha escrita por BadWolf


Capítulo 12
Do Reino dos Mortos




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Dortmund tentou mais uma vez apressar o passo de sua égua, mas outra vez o animal respondeu com um relincho desanimado, exausto. O mercenário soltou um suspiro exasperado. Tudo que mais desejava era chegar à Dorian antes do anoitecer, mas sua égua Majestosa parecia ter outros planos. Pudera. Ele a levara ao limite, por cavalgar dias e dias, sem um descanso adequado. Agora, teria que deixar sua chegada à cidade de Dorian para o amanhecer e arrumar um lugar improvisado para pernoitar, já que as estradas da Teméria estavam agora cheia de bandidos autointitulados “Filhos da Teméria”. Apesar de não ser nilfgaardiano, Dortmund já havia trabalhado para muitos deles e não queria correr o risco de ser reconhecido e acabar fincado em uma estaca por aqueles rebeldes.

Saindo da estrada, Dortmund conduziu sua égua Majestosa colina adentro. Subitamente, a égua até parecia mais animada. Talvez porque soubesse que um descanso estava muito perto de lhe acontecer.

—Uma clareira. Bem o que eu precisava. – tranquilizou-se o mercenário, desmontando do animal. Havia sinais de fogo. Ao tocá-los, Dortmund percebeu que estava morno. Alguém estivera ali, e recentemente. Dane-se, pensou o mercenário. A bunda estava dolorida demais e o cavalo muito exausto para que ele agisse como um paranoico, fazendo o guerreiro sem pátria simplesmente sentar-se à grama, esticando as pernas.

Estava alimentando o fogo quando ouviu o som de pisar na grama. Sua experiência de quase trinta anos de comabte lhe dizia que era alguém se aproximando, a passos lentos. Possivelmente alguém querendo disputar a clareira. Se fosse esta sua intenção, o bastardo teria uma bela surpresa desenhada em sua garganta, ele pensou.

Sua mão já estava prestes a desembainhar sua adaga quando o mercenário percebeu que estava diante de ninguém menos que um monge. Embora estivesse longe de ser um religioso, Dortmund achava má sorte matar um clérigo. Claro, tudo era perdoado com um saco de moedas, mas matar um sacerdote à toa nunca era bom para os deuses. Se é que eles existiam, mas quem era Dortmund para determinar?

O monge, vestindo sua pesada e gasta batina marrom escura e com o capuz lhe cobrindo totalmente a face, logo fez um leve aceno de saudação, típico dos religiosos.

—Que os deuses estejam contigo, meu jovem. – ele disse, calmamente.

—Que assim seja. – disse Dortmund, disfarçando a mão sobre a adaga. Um monge, é claro. Inofensivo, numa clareira longe da civilização. Embora tenha fé, não é idiota de enfrentar as estradas da Teméria à noite. Posso ter meus princípios, mas outros não o tem, pensou o mercenário.

—Espero que minha presença aqui não o incomode. – disse o monge, com o rosto coberto pela batina. – Resolvi fazer uma última oração a Veyopatis, antes de preparar a minha refeição, e gosto de fazer minhas orações debaixo das árvores. Quer se juntar a mim para uma refeição? Acredito ter o bastante para duas pessoas.

—Seria ótimo. – disse o mercenário. Dortmund apertava seus olhos, mas não conseguia ver bem o rosto do monge. Pelo movimentar de sua mandíbula, durante seu falar, o mercenário percebeu que ele tinha uma espessa, mas não comprida barba negra, porém com uma boa parcela de fios grisalhos.

O monge se aproximou do fogo, estendendo a ele três espetos com esquilos. Dortmund imediatamente arregalou seus olhos. Esquilos? Como um mísero monge poderia ter conseguido caçar animais tão rápidos como esquilos?

—Espero que minha pergunta não te ofende, senhor sacerdote, mas como conseguiu caçar esquilos? – disse o mercenário, desconfiado.

O monge riu.

—Veyopatis me concedeu o alimento, estando comigo quando eu mirei com meu arco e acertei esses esquilos. Todo o mérito é dela.

—Mas eu não vejo nenhum arco contigo...

O monge riu mais uma vez, secamente. – Eu o deixei na mata.

—Por que não carrega consigo? Seria bom, pois estas florestas estão repletas de marginais, prontos para atacar viajantes desavisados...

—Os deuses hão de me proteger de toda transgressão e perigo, rapaz. – disse o monge. Pouco convicto disso, Dortmund apenas se sentou, olhando com apetite para os saborosos esquilos, espetados e sendo assados pelo calor da fogueira.

Os dois permaneceram em silêncio por bons minutos. Todo o movimento que se viu foi do monge virando os espetos, com cuidado. Por fim, quando a carne dos esquilos já estava dourada e assada o bastante para ser comida, o monge abriu mais uma vez à boca.

—Creio que já pode se servir. – disse o monge. Ao notar o monge estender seu braço para a fogueira, Dortmund se apercebeu de um detalhe.

O monge carregava uma espada. Era possível perceber a ponta da bainha a escapulir de sua batina. Observando o fato com estranheza, o mercenário decidiu fazer uma ligeira observação.

—Não vai fazer ao menos uma oração, monge?

O monge já estava com o espeto de esquilo a centímetros da boca. Com um pigarreio, o monge retrucou.

—Como disse, eu já fiz a minha oração à Veyopatis...

—Ora, mas eu pensei que um homem de fé como o senhor tentaria trazer um pouco de luz a um homem de vida tão errante e pecadora como eu.

Diante do silêncio do monge, o mercenário riu.

—A razão de não fazer uma oração seria a mesma que o faz carregar uma espada por baixo da batina?

Foram dois segundos. Dois segundos, que mais pareciam horas, até que o monge e o mercenário se levantaram ao mesmo tempo. Desembainhando suas duas adagas com agilidade, o mercenário pôde aparar os sucessivos e ágeis golpes de espada vindo do monge, que era tão clérigo quanto o seu pai bêbado da Redânia. Por fim, foi a vez do mercenário atacar, também sendo aparado com habilidade. A luta estava equilibrada, até o “monge” simplesmente chutar a fogueira e fazer faíscas caírem sobre as pernas de Dortmund. O ardor do fogo sobre suas vestes, já alcançando a pele de sua perna, fez o mercenário não conseguir se desvencilhar do derradeiro golpe em seu peito, fazendo a lâmina muito bem afiada do monge atravessar seu tórax. Bastaram outros segundos para o sangue vir aos seus lábios e nunca antes Dortmund teve certeza de que seu fim chegara. E ironicamente, pelas mãos de um impostor e sem receber moeda alguma por aquela briga estúpida e imprevisível.

—Deveria ter ocupado a sua boca com comida, ao invés de usá-la para falar merda. – disse o homem, retirando sua espada do tórax de Dortmund e dando um chute no já morto mercenário.

Tirando o pesado capuz de sua cabeça, Vernon Roche suspirou pesadamente. Era a segunda vez que ele tivera seu disfarce descoberto. Na outra ocasião, deixara escapar um palavrão para uma caravana de anões comerciantes, e por pouco não saiu vivo, pois os anões bastardos eram bem armados com machados e logo o reconheceram como o “Vernon Roche, o Regicida da Teméria”, quando um deles conseguiu puxar seu capuz. Desde o fatídico episódio, Roche precisou deixar a barba crescer, para tentar se disfarçar e andar mais incógnito. Isso lhe deu mais segurança, mas ainda assim, situações como as daquele mercenário, agora estendido morto diante de si, aconteciam e iriam acontecer mais e mais.

Definitivamente, passar-se por monge não foi uma boa escolha.

Os últimos meses foram complicados. Com três assassinos bem treinados contratados por Morvran Voorhis em sua cola, Roche só conseguiu se esconder em segurança em uma mancha terrível de seu passado: a Puta Dormente, o bordel onde passou boa parte de sua infância. Não foi fácil para o temeriano buscar abrigo lá, pois revisitar as lembranças daquele tempo era algo doloroso demais, mas estar lá ainda era melhor do que acabar com a garganta cortada no dobrar de uma esquina, ou das incontáveis emboscadas que sofria na floresta. Foi uma sorte descobrir que uma antiga amiga de sua mãe havia se tornado a cafetina do lugar e que ela não se importou em abriga-lo no porão do recinto.

Passar semanas e semanas a fio sem ver a luz do dia e ouvindo as agitações do prostíbulo o teria enlouquecido, se a cafetina Margareth não tivesse sido tão atenciosa em lhe contar o que se passara com as outras crianças que cresceram com Roche naquele bordel, e de quem o temeriano jamais procurara saber por notícias.

Sem dúvidas, o único que não seguiu um caminho de crime ou prostituição foi ele. Metade dos meninos já havia morrido após uma curta carreira criminosa, e a outra metade não estava livre disso, roubando, estuprando e se drogando por aí.

Quantos às meninas... Todas se tornaram prostitutas. Sem exceção. Seguiram os passos das mães e agora trabalhavam como prostitutas. As mais “bem apessoadas” puderam seguir para bordéis mais afamados e ter acesso a clientes mais abastados, mas aquelas que tinham uma aparência comum ou feia permaneceram se prostituindo por ali mesmo.

Uma das meninas “feinhas” era Joss. Gordinha e sarnenta. Não havia mudado nada desde os tempos de criança, sendo agora só uma versão adulta com um vestido decotado para mostrar os generosos seios, que quase saltavam para fora de tão grandes. Permanecia faladeira e fofoqueira também, percebeu Roche. Foi ideia de Joss usar a batina para ir incógnito até Lathlake. Agora o temeriano se amaldiçoava por ter dado ouvidos à ela, pois bancar o monge lhe dava muito trabalho. Afinal, o disfarce tinha que transmitir paz, serenidade e mansidão – tudo que ele não tinha em seu espírito.

            Agora, era necessário se livrar do corpo.

            Roche vasculhou o mercenário, à procura de algo proveitoso. Encontrou um saco com moedas de todas as procedências. Florins Nilfgaardianos, Coroas de Novigrad, Orens temerianos... Só mercenários e comerciantes carregavam uma variedade de moedas tão extensa assim, e a julgar pelas adagas e armadura de boa qualidade do sujeito, ele era um mercenário. Como nunca teve simpatias por guerreiros sem pátria, Roche estava agora mais feliz por tê-lo matado, agora que sabia o que ele era.

            -Um filho da puta sem honra a menos. – balbuciou Roche, enquanto mexia nos pertences do mercenário. Distraído pela procura de objetos de valor, mal pôde ouvir os passos silenciosos atrás de si. O aviso coube à uma lâmina gélida de uma espada a tocar sua garganta, deixando bem claro que era tarde demais para qualquer escapatória.

            Roche sabia reconhecer quando estava em clara desvantagem. Erguer as mãos era o melhor que uma pessoa que prezasse minimamente sua vida poderia fazer naquelas situações, e foi o que ele fez. Não foi o suficiente, entretanto, para evitar um chute nas costas, que por pouco lhe fez beijar o chão. Ele grunhiu. Foi-se o tempo em que bandidos de estrada respeitavam rendições, murmurou. Tentou se levantar, mas foi detido por um pé, a pressionar suas costas no chão.

            -Coloco a isca para um peixe pequeno e um peixe bem grande é que acaba abocanhado... Esse deve ser o meu dia de sorte, não? – disse uma voz masculina, enquanto Roche ouviu o tilintar de sua espada sendo chutada para bem longe de si.

            Roche ouviu mais passos. Havia pelo menos mais três homens, além do desaforado que lhe jogou no chão como um saco de batatas. Ainda caído no chão, não dava para ver nada além de suas botas. Poderiam ser qualquer coisa. Homens a mando de Nilfgaard, algum rebelde dos Filhos da Teméria, bandidos de estrada, espiões, mercenários... Qualquer coisa. Aqueles eram dias de merda e sua cabeça era valiosa. Nunca antes Roche poderia se tornar tão rico pela quantidade de inimigos que tinha.

            -O famoso Regicida do Norte. Mais vivo do que nunca. Parece que os nilfgaardianos não completaram o serviço. – reconheceu um deles, deixando Roche certo de que sua situação não tinha mais no quê piorar.

            -Tem certeza de que é mesmo ele? Dizem que ele está morto... – perguntou um, indeciso.

            -Tenho, sim. Servi na época da guerra e cheguei a vê-lo em campo. Até o chaperon que ele usa é o mesmo.

            -Verdade. – concordou um deles.

            Roche sentiu-se pego bruscamente pelos dois braços. Pondo-se de pé outra vez, o temeriano pôde observar melhor aqueles sujeitos. Jovens, na faixa dos vinte anos. Sujos e magros, eles usavam antigos uniformes temerianos – alguns estavam remendados, denunciando que pertenciam a soldados mortos ou feridos da Teméria. Dois deles tinham seus rostos ocultos por capuzes do uniforme da Unidade de Arquearia Temeriana, Roche reconhecia pelos desenhos do uniforme. Mas a julgar pela idade e a falta de arcos ou bestas, o temeriano duvidava mito que aqueles meninos alguma vez pertenceram ao Exército da Teméria.

            Sem dúvida, eram rebeldes dos Filhos da Teméria.

            -O chefe ficará muito feliz em receber o Regicida que vendeu a Teméria para Nilfgaard. – disse o sujeito, dando uma boa risada. Prestes a protestar, Roche foi silenciado por um forte golpe em sua cabeça, que o fez perder sua consciência e mergulhando em um vazio negro e silencioso.

 

§§§§§§§§

 

 

Cheiro de merda de cavalo. Sol forte. Umas palavras rimadas, vagantes, iam e voltavam. Seus olhos abriam e fechavam, como se obedecessem ao sacolejar que conduzia seu corpo. Atrás de sua cabeça, uma dor não muito forte, mas chata como a de uma ressaca de vinho barato. Por instinto, seus dedos levaram ao chaperon, o que fez Roche imediatamente perceber que suas mãos estavam amarradas. Seu chaperon ainda estava lá, ele se aliviou. Levando os dedos por baixo do chaperon e alcançando o galo que estava quase no centro de sua cabeça, Roche sibilou de dor. Ficaria dolorido por dias.

Seus olhos finalmente se abriram por completo, e logo o temeriano percebeu que estava em uma carroça. Suas pernas e braços estavam amarrados, firmemente amarrados. A razão das tais palavras rimadas que dançavam sua cabeça logo puderam ser encontradas.

Praticamente ao seu lado, estava um elfo com um alaúde, dedilhando algumas notas, com o olhar perdido. Balbuciava palavras com rimas em sequência. “Flor”, “amor”, “calor”... Sem dúvida, estava compondo alguma coisa.

Um elfo bardo... A última coisa que eu precisava...

—Será que falta muito para chegarmos? – perguntou subitamente o elfo. – Queria esticar um pouco as minhas pernas...

O rebelde que conduzia a carroça riu.

—O que não vai faltar no caixão é espaço para suas pernas ficarem esticadas.

—Isso significa “falta muito” ou “falta pouco”?

—Elfo chato da porra! – resmungou o rebelde, um tanto impaciente. – Estamos pertos, sim. Nem sei porquê da pressa, já que vai morrer.

—Bom, até agora eu não morri, então deve haver algum propósito na minha captura. – disse o elfo, dando de ombros. – E você, rabugento?

Roche arregalou os olhos. – Rabugento?!

—Olha só, ele não fala só dormindo... – riu o elfo, deixando Roche surpreso. Ele falava dormindo, afinal? Ninguém jamais comentara sobre isso com ele. Diante de seu olhar surpreendido, o elfo explicou. – Te chamei de “rabugento” porque tudo que fez dormindo foi reclamar. Sabe, há estudiosos de sonho em Oxenfurt que dizem que nos sonhos se concretizam nossos maiores desejos. Agora, se o seu “maior desejo” é ficar gritando com as pessoas... Deveria ser um caso a ser estudado.

Claro. Roche deve ter sonhado com os Listras Azuis. Estranhamente, ele estava sonhando nos últimos tempos com seus homens, mortos pelas ordens de Henselt e Dethmold. Mas não com seus rostos, ou com as noites que passavam ao redor da fogueira, contando piadas infames e histórias de bebedeiras, mas sim, com sua rotina de treinamento. Roche nunca pensou que poderia sentir falta das horas que passava supervisionando seus homens no manejo da espada, mas ele sentia. Sentia falta dos palavrões, das provocações, dos resmungos de alguns indisciplinados... Pelos deuses, ele sentia muita falta. De ser um líder de verdade, não um foragido.

—Uma vez eu conheci uma pessoa que também falava dormindo. Ele era um elfo e...

—Cale-se. – exigiu Roche, sentindo a cabeça doer com as palavras do bardo.

—É impressionante como as pessoas estão ranzinzas hoje em dia. Já não há mais espaço para compartilhar histórias.

Foi a vez do carroceiro intervir.

—Ah já sei. Vai contar aquela história nojenta de você dividindo uma cela com outros dois elfos e comendo ratos para sobreviver...

—Na verdade, eu iria cantar. É uma balada que fez muito sucesso em minha apresentação em Mythlimian. Chama-se...

—Ninguém quer saber dessas merdas, bardo. E eu nunca ouvi falar dessa porra de lugar. Deve ser mais uma mentira sua. Como aquela história de que você fugiu de uma prisão temeriana usando apenas o osso de um rato como arma...

Roche rolou os olhos. A última coisa que desejava ouvir era histórias de elfos. Ainda sentindo a cabeça doer, o temeriano fechou os olhos. Não estava com sono, mas queria descansar e também ser deixado em paz. E sua tática deu certo, pois o elfo bardo se calou em alguns minutos, ao perceber que ninguém estava mais lhe dando ouvidos.

Horas depois, os primeiros resquícios do acampamento dos Filhos da Teméria apareceram. Sem dúvida, o acampamento era bastante escondido na floresta, bem-equipado e vigiado, com alguns arqueiros nas copas das árvores. Não à toa os Cavaleiros Negros estavam travando tamanha dificuldade para combater os rebeldes. Nilfgaard poderia ter um exército de qualidade, mas sempre foi extremamente vulnerável quando o assunto era guerrilha.

A carroça parou, e tanto Roche quanto o bardo foram escoltados acampamento adentro.

—Eu me chamo Argalad. – disse o elfo, estendendo sua mão. Roche grunhiu, irritado. Afinal, suas mãos estavam presas e ele não poderia retribuir o aperto, mesmo se quisesse. Curiosamente, uma situação que ele já passara, mas em situação inversa. A julgar pela irritação que sentira no momento, Roche não teve dúvidas de que conseguia ser muito escroto quando queria ser.

Ainda confuso pela pancada que recebera na cabeça, Roche demorou a perceber que o elfo não estava com as mãos e pés amarrados, como ele. Caminhava normalmente entre os outros. Chegou até mesmo a acenar para alguns guerrilheiros. Parecia conhece-los. Seria ele um Filho da Temeria? Não. Ele não tinha qualquer perfil de guerrilha. Deveria ser um espião.

Um dos rebeldes cochichou com um guarda, que fazia a vizinhança de uma tenda. Decerto a tenda do líder, concluiu o Roche, por ser a mais bem vigiada dali. Embora estivesse claramente em maus lençóis, Roche não conseguia se impedir de ser tomado pela curiosidade sobre o grupo rebelde que tanto estrago estava causando, graças aos seus ataques que incisivamente causavam prejuízos a Nilfgaard e seu cada vez menos lucrativo reino vassalo chamado Teméria.

—Não se preocupe, ela vai te tratar bem. Claro, depois de umas boas porradas. – disse o elfo. Roche se aturdiu outra vez. Ela?! Eles eram liderados por uma mulher?!

—Entre logo, Regicida. – disse o sujeito, estando de volta outra vez. Como se Roche pudesse desobedecê-lo, sendo arrastado daquele jeito.

Roche deu alguns passos, com dificuldade por causa das amarras em seus pés. Se tentasse correr dali, certamente cairia pateticamente, e a última coisa que o temeriano desejava era acabar morto desta forma. Para completar, um rebelde ainda lhe deu um empurrão leve para “encorajá-lo” a adentrar ainda mais à tenda, o que quase o fez tropeçar.

Roche percebeu mapas da Teméria dispostos sobre a mesa. Havia alguns bonecos de madeira representando as forças rebeldes. Até, então tudo o que o temeriano ouvira foram rumores, mas a julgar pela estratégia traçada no mapa, os Filhos da Teméria já estavam espalhados por praticamente toda a Teméria. Diante de um território desses, os rebeldes sem dúvida teriam lá seus milhares de membros para abranger o reino com tamanha eficácia.

            Um pigarreio feminino retirou o temeriano de sua análise. Ao retirar seus olhos do mapa, Roche foi surpreendido. Esperava encontrar uma líder rebelde raivosa, com uma adaga na mão e centenas de acusações para proferir antes de mata-lo lentamente, mas não um rosto amigo.

            -Ves!

            A jovem guerreira de cabelos loiros riu, dando passos para perto de seu antigo líder. Embora não fosse o mais cordial dos homens, Roche estendeu seus braços contidos pelas amarras a ela, recebendo em troca um abraço apertado da temeriana. Talvez fosse a emoção de reencontrar um amigo verdadeiro depois de tanto tempo embarcado em fugas e mais fugas.

            -Então, você é a Líder dos Filhos da Teméria? – surpreendeu-se o temeriano, após terminado o abraço. A guerreira assentiu.

            -Não fui a fundadora, mas ajudei a organizá-los. Quando os encontrei, eram dezenas de camponeses e moleques que mal sabiam pegar em uma espada, mas que estavam revoltados em ver a Teméria nas mãos de Nilfgaard. Eu coloquei em prática tudo que aprendi com os Listras Azuis, ou melhor, com você, e os ensinei táticas de guerrilha e combate. O Líder deles morreu em um ataque e fui eleita para o Comando, isso já faz alguns meses.

            -Impressionante. – admitiu Roche, satisfeito por ver que Ves não estava mais à sua sombra. – E os treinou bem, pois é do conhecimento de todos que as ações de vocês tem deixado Nilfgaard irritado.

            Havia um quê triunfante no rosto de Ves.

            -Sim, é verdade. Pouco a pouco, temos provocado a fúria dos Cavaleiros Negros. Eles não são bons com guerrilha e perdem facilmente quando emboscados. As estradas se tornaram perigosas. Temos recebido apoio dos camponeses, inclusive. Mas estamos enfrentando um problema, nos últimos tempos.

            -Que problema? – perguntou Roche, sentando-se com dificuldade por causa das amarras. Ao ver seu antigo chefe atrapalhado com as cordas, Ves desembainhou a adaga atada à sua cinta e cortou as amarras das mãos e dos pés de Roche, recebendo um agradecimento do temeriano, que agora dava atenção a massagear os punhos levemente ardidos pelo atrito da corda.

            - Roche, eu tenho quase certeza de que estamos sendo atacados por um dragão. Não um dragão qualquer, se é que dá para chamar assim, mas o mesmo dragão que atacou Foltest no cerco aos La Valette. Lembra-se?

            Roche ficou catatônico.

            -Como me esqueceria daquele dia? Nem se quisesse com todas as forças do meu ser. – balbuciou o temeriano, desgostoso com a lembrança.

—O dia em que nossas vidas rolaram ladeira abaixo, é verdade. Por causa daquele Bruxo filho da puta. Aliás, estou surpreso em ver que adotara justamente esse tipo de... Disfarce.

Roche examinou a si mesmo. Ainda vestia a batina de monge.

—Não tive muitas alternativas, dadas as minhas... Limitações físicas. – disse, referindo-se às orelhas. A temeriana assentiu. Sabia do segredo de Roche e não era o tipo de coisa que precisava ser dita em voz alta. Pondo-se de pé, Ves caminhou até uma mesa, onde preencheu uma caneca com água e retirou de um pequeno cesto de frutas uma pêra.

—Obrigado. – disse o temeriano, ao recebê-la. Quando prestes a morder a fruta, o temeriano foi surpreendido pela entrada de outra pessoa conhecida. Mas um rosto que ele já não tinha mais tanta certeza de que era amigável.

A pêra caiu no chão, rolando até os pés de John Natalis, o herói de guerra temeriano dado por morto por unanimidade. Não ostentava mais a cabeça completamente areca. Alguns fios brancos timidamente haviam crescido e sua barba estava por fazer. Seu porte já não era tão avantajado quanto antes, pois lhe faltava a armadura metálica, digna de um general de guerra de sua estirpe. Seu rosto, entretanto, trazia uma profunda marca de queimadura, que não acertou seu olho direito por milímetros, mas atingiu a extensão de toda sua bochecha direita e também parte do pescoço. Roche estava sem palavras. Foi subordinado a Natalis por muito tempo e saberia reconhece-lo até mesmo se ele estivesse vestido de mulher. Mesmo estando mais magro e com parte do rosto deformada, sem dúvida, era ele mesmo.

—Roche. – disse Natalis, deixando escapar sua conhecida voz. O temeriano se levantou, sobressaltado diante de seu antigo superior. Não conseguia disfarçar seu estado abobado.

—Natalis.

Temor atravessou a espinha de Roche. Natalis sempre odiou os nilfgaardianos, e sua opinião dificilmente teria mudado com o passar dos anos. E agora, ele provavelmente estava sabendo do que o antigo Listra Azul andou aprontando. Se não tivesse sua garganta cortada ali mesmo, seria um milagre.

Para alívio de Roche, foi o general quem tomou a iniciativa, dando dois passos para frente. Apesar de não vestir uma armadura, seus passos eram firmes, como se estivesse soterrado de quilos de metal. Decerto, velhos hábitos.

—O que você fez, Roche? – ele indagou num tom decepcionado. Ao ver sua reação, o temeriano sentiu-se tão envergonhado quanto uma criança que acabara de xingar a própria mãe.

—Natalis... – começou Roche, tentando encontrar as palavras. – Acredite em mim, não é o que parece...

—Você entregou a Teméria aos nilfgaardianos. Vendeu metade do Norte...

Roche suspirou.

—Pensei que estava fazendo a coisa certa.

O tom envergonhado de Roche logo converteu-se em pavor, quando sentiu o impacto da mão pesada de Natalis em seu maxilar. Um soco tão forte que fez o temeriano cambalear.

—Coisa certa?! – esbravejou o general. – Nos entregar para aqueles vermes desgraçados? É desta maneira que você jurou honrar o seu Rei? Hein? Nos entregando para aqueles putos? Foltest deve estar se contorcendo no túmulo com o que você fez!

Roche sabia que estava em uma situação onde, por mais certo que se esteja, retrucar era sempre pior. Por isso, deixou que apenas os assentimentos de sua cabeça fossem o bastante para responder as perguntas retóricas do general ensandecido.

—O que fez foi vergonhoso! Muito vergonhoso! Deveria te matar por isso!

Antes que pudesse evitar, Roche foi tomado pelo colarinho pelas fortes mãos de Natalis. O antigo General temeriano ergueu Roche do chão sem esforço, forçando o militar a ficar na ponta dos pés. Ves aproximou-se de Natalis, decerto porque sentia que era hora de intervir.

—John... Pare. O que está feito, está feito. – disse Ves, tocando no braço do general. E, estranhamente, em um tom de voz carinhoso demais para os ouvidos de Roche. Será que eles estavam juntos?!

Roche duvidava muito de que teria resposta naquela noite sobre isso, mas ao menos o tom de voz carinhoso de Ves pareceu ser o bastante para conter a fúria do general, que soltou um esbaforido Roche, lançando-o brucamente ao chão. Aturdido pelo rompante de raiva do temeriano, Roche observou de soslaio a interação de Ves com Natalis. Percebeu que o general estava se desculpando por sua “falta de compostura”. Ah, o sempre educadinho Natalis...

—Eu vou te dar um voto de confiança. – disse, com desdém, enquanto se retirava daquela tenda. Seu olhar furioso chegou a assustar até mesmo o rebelde que fazia a vigilância da porta da tenda, pois o rapaz logo se recolheu para longe de Natalis.

Sozinho outra vez com Ves, Roche sentou-se, massageando o maxilar dolorido pelo soco.

—Puta merda, aquele foi um esquerdo poderoso. – disse o temeriano, aos poucos retomando a compostura.

—Perdoe-o, Roche. Muita coisa aconteceu com ele, graças à derrota do Monte Carboun e ele não conseguiu digerir muito bem ver um Nilfgaardiano no Trono. Sem ter em quem descontar, você se tornou um prato cheio.

—Mas o quê, afinal, houve com ele desde aquela batalha? Lembro que ele desapareceu...

—Ele não fugiu, se é o que está pensando. Pelo contrário, ele quase foi atingido em cheio por uma bola de fogo daqueles Escorpiões da Zerrikânia. O fogo não chegou a queimar sua armadura, como aconteceu a muitos de seus soldados, mas a proximidade com as chamas fez sua armadura de metal queimar sua pele.

—Pelos deuses... – balbuciou Roche, horrizado.

—Sentindo a pele queimar, Natalis retirou algumas peças de sua armadura, e também o elmo. Mesmo com as queimaduras, ele continuou a lutar, mas acabou rendido. Como não havia nada que pudesse identifica-lo como sendo John Natalis, ele decidiu não contar sobre sua verdadeira identidade, se passando por um soldado temeriano comum. Apesar das queimaduras, os nilfgaardianos achavam que ele daria um bom... Escravo.

—Puta merda. – balbuciou Roche.

—Natalis trabalhou durante o resto da guerra como lenhador, ajudando Nilfgaard a derrubar árvores para a passagem do Exército. Percebeu que a guerra estava vencida, mas decidiu que queria ajudar, de um jeito ou de outro. Passou a ajudar que outros temerianos cativos fugissem, sem causar desconfiança nos nilfgaardianos de que ele estava por trás das fugas de escravos. Quando Vízima foi tomada pelos nilfgaardianos e a Teméria caiu, Natalis foi trancafiado em um presídio, junto a outros soldados. Passou anos trabalhando como um escravo em uma pedreira, até que, no ano passado, ele conseguiu armar uma rebelião e libertou todos os presos. Muitos deles se uniram aos Filhos da Teméria. 

Roche ouviu a história com atenção.

—Então, por que eu não ouvi nenhuma história de “John Natalis libertou todos os temerianos cativos pelos nilfgaardianos”? Um feito desses se espalharia por toda a Teméria, com certeza.

Ves deu de ombros.

—Ele não revelou a ninguém sobre sua identidade. Apenas se disse se chamar John, e nada mais. Aliás, até mês passado todos o conheciam apenas por John. Foi graças à minha insistência que ele aceitou confessar a todos quem verdadeiramente era.

Roche assentiu, satisfeito. O bom e velho John Natalis, tão modesto quanto heróico. Como disse em seu discurso em Vízima, ao ser homenageado nomeando uma praça por seus feitos na Batalha de Brenna, “aquela praça deveria ter o nome de todos os meus soldados mortos em batalha, não o meu”.

—Posso imaginar a surpresa no rosto de todos os Filhos da Teméria, ao perceber que foram salvos por um famoso herói de guerra. Então, parece que Natalis está mais vivo do que nunca. Ou melhor dizendo, John.

Ves riu da insinuação de Roche.

—Está tão evidente assim? – ela disse, corando-se e rindo levemente.

—Caralho, então é verdade... Você e ele...?

—Sim. – assumiu Ves. – Há pelo menos duas semanas. Foi um pouco difícil para ele, você deve imaginar. Demorou até que eu conseguisse convencê-lo de que estava pouco me fodendo com a queimadura no rosto dele, mas com certa persistência, eu consegui.

Após beber um pouco de água, Roche riu.

—Espero que essa fúria dele não seja nenhum ataque de ciúmes, pois ele deve ter escutado os boatos que circulavam ao nosso respeito na época dos Listras Azuis... Enfim, besteira minha falar disso. Natalis é sério demais para dar atenção a boatos. Mas mudando de assunto... Pelo que ouvi de seus rebeldes, você estava atrás de mim. É isto?

Ves concordou.

—Não exatamente. Assim como todos, presumi que você havia sido morto pelos nilfgaardianos. É que a maioria deles pensa que eu odeio você, pelo que fez com a Teméria, mas como deve imaginar, isso não é verdade. Eu não concordei com seu plano no início, mas entendo suas motivações. Se todos soubessem que você pretendia colocar Anais no trono, ao invés de um nilfgaardiano...

—Não. – interrompeu Roche, ainda mastigando a pêra. – Ainda não era a hora da Teméria saber da existência de Anais. Ela ainda seria muito jovem para assumir o Trono. As Leis Temerianas só consideram apto para governar a idade mínima de dezesseis anos. Anais poderia assumir, mas tendo um regente, e certamente um regente nilfgaardiano, pronto para “acidentá-la” antes que ela chegasse à maioridade.

—Entendi. Você queria preservar Anais para a hora certa, mas não podia revelar a ninguém publicamente. Por isso, pagou um preço caro.

—Sim. O ódio de meus compatriotas e velhos inimigos. Todos me odeiam. Nunca me importei muito com isso, porque sempre me senti capaz de gerenciar muitos inimigos. Mas angustia-me o sentimento de que o meu país tem vergonha de mim.

Ves afagou o seu ombro.

—Eles saberão a verdade, um dia.

—Mesmo que saibam, não sei se mudará alguma coisa. Não importam o que digam, um Regicida é sempre um Regicida. Poderia haver dúvidas e incertezas sobre a morte de Henselt, mas Radovid... Eu assumi publicamente que matei aquele filho da puta, quando na verdade, foi uma feiticeira quem o matou. Este foi um caminho sem volta na minha reputação, mas eu não me arrependo. A Teméria pode estar na merda por estar nas mãos de Emhyr, mas está muito melhor do que estava antes, sem Rei e na condição de país invadido e subjugado. Mas afinal, acredito que seus homens esperam que eu tenha, no mínimo, uma morte dolorosa e exemplar. O que fará a respeito?

Ves inalou profundamente.

—Até um tempo atrás, você nem mesmo estaria respirando agora, se tivesse sido pego por um dos nossos. Mas agora, boa parte dos Filhos da Teméria são soldados temerianos que lutaram conosco. Eles conhecem você, Roche, e já concordaram que não aceitarão mata-lo sem antes ouvir o que tem a dizer. Eles querem entender o que você fez.

—Melhor dizendo, a grande merda que eu fiz. – acrescentou Roche. Ves deu de ombros. – Tudo bem. Ao menos, estão me dando uma chance para que eu me defenda.

—Não só uma chance, Roche. – incluiu Ves. – Eles foram seus soldados. Poderiam te seguir até o inferno, mas no fundo, sentiram-se traídos quando perceberam o resultado da morte de Radovid. Honestamente? Tente fazer mais do que explicar o passado. Conte a eles sobre o futuro que os aguarda, se eles estiverem do seu lado.

Roche arregalou os olhos.

—Está sugerindo que...?

—Sim. – assentiu Ves. – Está na hora de revelar Anais ao mundo.


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Notas finais do capítulo

Ihh, Roche... Segura esse forninho kkkk

FINALMENTE O ROCHE APARECEU!!

Essa fanfic tava muito certinha, com pouco palavrão... Agora esse negócio vai ficar F@#$
Cara, eu devo confessar uma coisa: quando eu escrevo o Roche, desperto em mim meu lado mais tenebroso e boca suja possível. kkkk

Próximo cap: nuvens negras pairão em Mahakam... Tem frente fria indo para o lado do Iorveth...



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