O Caminho da Andorinha escrita por BadWolf


Capítulo 10
Uma Festa Merecida




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Ciri era apenas uma adolescente quando Eskel chegou para passar o inverno em Kaer Morhen, com o braço enfaixado. À beira da lareira da Fortaleza, a menina de cabelos cinzentos esperava ouvir mais uma heroica história do Bruxo matador de monstros que, embora não tivesse o mesmo renome que Geralt, era igualmente eficiente em combate. Mas a jovem frustrou-se ao saber que o ferimento de Eskel não era proveniente de um arquigrifo ou wyvern, mas sim, de uma confusão envolvendo os habitantes de um vilarejo, que decidiram promover um grande banquete em homenagem a Eskel para comemorar a morte de um lobisomem. Mas graças aos seus sentidos apurados de Bruxo, Eskel percebeu que haviam tentado envenenar sua bebida, numa tola tentativa dos camponeses de matar o Bruxo e não pagar sua recompensa. “Pagaram com sangue”, disse Eskel. Não eram necessários maiores detalhes.

            Nas últimas semanas em seu treinamento com Geralt sobre o Caminho, o Bruxo também insistiu no assunto. “Seja profissional, pegue sua recompensa e vá embora. Um Bruxo não comemora com aldeões. Um contrato é um contrato”. Geralt chegou a ver um assentimento de Ciri, mas sabia que suas palavras eram em vão. “Por que estou com a sensação de que a vida te ensinará isso?”, disse sarcasticamente o Bruxo, para logo em seguida receber uma risadinha dela.

            Se a vida estava prestes a lhe ensinar uma lição sobre profissionalismo, bem... Não seria nesta noite, pensava Ciri.

A iniciativa de preparar uma festa partiu do Magistrado Godfrey, bastante satisfeito com o serviço da Bruxa. Claro, depois dele ter quase vomitado aos pés de Ciri quando recebeu a cabeça do “fantasma” como prova – que, na verdade, nada mais era do que a cabeça de uma bruxa aquática assombrosamente dissecada por Turiel. O “fantasma do cemitério de Lathlake” estava morto. Oficialmente morto, embora ele ainda vivesse, escondido em uma choupana na floresta, a maquinar a sobrevivência da raça élfica por meio de experimentos e estudos. Mas isso já não estava mais na alçada de Ciri.

Lucius recebeu do Magistrado dinheiro o bastante para montar um banquete farto e beirando ao inesquecível em Lathlake. Dois porcos foram abatidos e naquela noite, assavam a ponto de o cheiro subir até o quarto de Ciri, incomodando o descanso merecido da Bruxa, que desfrutava de um cochilo – o último cochilo naquela cama de estalagem – até ser despertada pelo cheiro de carne de porco assada.

Já desperta e perto de colocar suas espadas nas costas, Ciri deteve seus olhos na vazia tina de banho. Até que um banho não faria mal algum, ela pensava. Só os deuses sabiam quando ela teria outra oportunidade de uma tina com sabão pelo Caminho.

O banho poderia ter durado mais alguns minutos, mas logo que ouviu vozes animadas oriundas do térreo da estalagem, Ciri sentiu que deveria se apressar. Secou-se e vestiu-se rapidamente, colocando uma camisa limpa.

—Ciri! – chamou Dora na porta. – Estão perguntando por você!

—Já vou! – disse Ciri, esbaforida, terminando de arrumar seu cabelo. Enquanto arrumava sua couraça leve no braço, Ciri acabou por deixar cair ao chão a pequena bolsa que pertencia a Lucius Júnior. Em sua pressa, a Bruxa não percebeu que a bolsa estava aberta, e logo as folhas em branco se espalharam pelo quarto.

—Droga! – exclamou a Bruxa, correndo para catá-las. Porém, logo que tocou suas mãos no papel, Ciri percebeu que uma das folhas não estava totalmente em branco, como ela pensava. Palavras haviam surgido. Cerrando seus olhos, Ciri percebeu que aquelas palavras estavam em nilfgaardiano, o que contribuiu para deixa-la ainda mais confusa. Afinal, como um camponês pobre como Lucius Jr. poderia dominar o idioma do Sul?

Logo veio a explicação. Os dedos de Ciri, molhados, entraram em contato com o papel, fazendo o conteúdo da carta – o verdadeiro conteúdo da carta – surgir. Aquela carta foi escrita com uma tinta contendo propriedades mágicas, concluiu.

Ciri havia aprendido nilfgaardiano, como boa parte dos nobres que nasciam com alguma possibilidade de ascender a algum trono no Norte, mas seu conhecimento agora estava há muito esquecido, e pela falta de prática, relegado a palavras dispersas e frases de construção pobre. Por sorte, ou aquela carta estava muito longe de ser uma obra literária, ou o autor dela dominava o idioma nilfgaardiano tão mal quanto Ciri, pois a Bruxa pode entender seu conteúdo sem grandes dificuldades.

 

 

D,

 

Minha participação no grupo tem sido elogiada. Estou chamando a atenção das lideranças. Fui destacado para Armamentos, o que tem me feito ser bastante itinerante. Já conheci sete acampamentos dos Filhos da Teméria. Destaquei todos eles em um mapa.

 

L

 

 

A Bruxo de cabelos cinzentos continuou a abrir as páginas. Entendia um pouco do idioma e percebera que a escrita era rudimentar, ruim. Típico de alguém pouco alfabetizado no idioma do Sul.

Desenhos. Mapas. Áreas circuladas. Algumas marcações.

Tudo escrito em nilfgaardiano.

—Então... Lucius Júnior era algum tipo de... Espião nilfgaardiano?

 

D,

 

Mais uma vez insisto para que me ouça.

Tenho certeza de que encontrei a perdida Anais La Valette.

Ela vive em Lathlake, em meio aos camponeses. Leva uma vida normal. Conversa com todos e tem boas amizades.

Essa menina apareceu em Lathlake meses depois do Conclave de Loc Moinne.

Ela diz que o pai dela é um militar temeriano, mas tenho minhas suspeitas de que ele seja o infame Vernon Roche. Por isso ela é tão boa com espadas.

Estive traçando sua rotina. Já sei como sequestrá-la e leva-la até o senhor sem levantar suspeitas.

 

No aguardo por ordens.

 

L

 

Mais batidas à porta interromperam Ciri e seus pensamentos conclusivos. Sem dúvida, pelo som de conversas e música oriundos da estalagem, a festa já estava começando. A descoberta de Lucius Júnior era inusitada, mas nada havia a ser feito quanto a isso. Um espião morreu. Um espião, como muitos existentes em uma guerra, especialmente uma travada contra Nilfgaard.

“Não se meta com política”, ela se lembrava das palavras de Geralt e Vesemir. “Não se meta com política”... Num último ímpeto, Ciri chegou a aproximar as páginas do fogo. Bastava queimar, ela pensou. Queimar, e tudo estaria resolvido.

—Ciri, o Magistrado está perguntando por você! – outra vez, a insistente Dora.

“Não aja por impulso”, também dizia Vesemir. Com hesitação, a Bruxa afastou os papéis do fogo, enfiando-os de volta à bolsa de Lucius Júnior. Mais tarde ela resolveria o que fazer quanto aos papéis. Agora, ela tinha um banquete para participar.

 

 

§§§§§§§§§§§§§§

 

 

Quando Ciri pôs de volta a caneca vazia sobre a mesa, diante de pelo menos quinze pessoas assombradas, a Bruxa riu. Havia acabado de beber em um só gole uma caneca cheia de licor de Mahakam. A bebida, considerada uma das mais fortes do repertório nortenho, capazes de derrubar muitos marmanjos com poucos goles, fizera Ciri formar apenas uma careta em seu rosto. Uma simples, mísera careta.

Alguns Orens foram lançados à mesa. Ciri os recolheu, sobre risadas bêbadas dos demais camponeses.

—Nunca subestime uma Bruxa. – ela disse.

Turiel a observava com notória surpresa.

—Creio que Ernest jamais se esquecerá desse seu estimado ensinamento. Aposto que a esposa dele o fará dormir ao relento essa noite, por ter apostado o ordenado da semana nisso. – disse a elfa, puxando uma cadeira sentando-se à mesa de Ciri.

—Então? Disposta a testar seus limites? – perguntou Ciri, estendendo à elfa a garrafa quase vazia de Licor de Mahakam. A herbalista riu.

—Tenho muito amor ao meu fígado. O meu suco de maçã está de bom tamanho. Aliás, é surpreendente ver uma mulher com tamanha resistência a álcool. Conheço homens que beberam tanto quanto você e acabaram embriagados com Licor de Mahakam.

—O organismo se acostuma. – meneou Ciri. – Aliás, e quanto à Anya?

—O que tem Anya? – perguntou Turiel, não compreendendo a curiosidade de Ciri. Ou, pensou a Bruxa, fingindo não compreender.

—Pensei que ela estaria aqui, neste banquete.

—Oh, sim. Anya está com uma indisposição, infelizmente. Ela lamentou bastante não poder estar presente aqui.

—Uma pena. – lamentou Ciri. – Anya lembra muito a mim mesma quando mais jovem.

Turiel riu. – Falastes agora como se tivesse um século de vida.

—Eu vivi, presenciei e senti tantas coisas que, às vezes, tenho a impressão de ter vivido por séculos. Mas de qualquer forma, estar perto de alguém como Anya é sempre bom para mim. Mulheres boas com espada são raridades em nossos tempos.

—São mesmo. – disse Turiel, assentindo e dando mais um gole em seu inofensivo suco de maçã.

—Quem ensinou Anya a lutar? Foi o pai dela?

—Em parte, sim. Ele começou a treiná-la quando ela tinha apenas oito anos. Quando ele partiu para a guerra, Anya buscou pelos demais meninos do vilarejo. Até os treze anos, ela já havia derrotado todos eles.

—Nossa! – exclamou Ciri, rindo um pouco.

—Isso me causou algumas encrencas, mas nada que não pudesse ser contornado. Você sabe, perder para mulheres é algo inadmissível para homens, especialmente em algo considerado masculino, como espadas. O orgulho deles fica ferido com isso. O único que não tinha inimizade com ela foi Roderick, o filho do ferreiro. Os dois treinam juntos até hoje, inclusive.

Ciri lembrou-se do conteúdo da carta encontrada nos pertences de Lucius Jr. “Por isso ela é tão boa com a espada”. Uma jovem vivendo em Lathlake em meio aos camponeses e boa com espada... Quantas meninas como Anya haveriam por ali? O mais provável é que ela fosse a única.

Agora, tudo faz sentido. Lucius Júnior estava aqui para descobrir a identidade de Anais La Valette. E não seria algo difícil de concluir. Tudo apontava para Anya.

—Parece preocupada com algo.

Era Turiel, alisando levemente o queixo, como se analisasse alguma coisa. Absorta em suas conclusões, Ciri sequer percebeu o tempo passar. Quanto tempo deixara aquela conversa vazia?

—Nada demais. – disse Ciri, dando um último gole em seu Licor de Mahakam. Sua visão começava a se tornar turva, um sinal de que era hora de parar.

—Tem certeza?

—Por que tanto me pergunta, se consegue ler os meus pensamentos? Afinal, você é uma feitic...

Turiel pigarreou forte, interrompendo Ciri.

—Adoraria que não tocasse neste assunto, apesar de meia Lathlake estar bêbada demais para prestar atenção na conversa de uma elfa com uma Bruxa. E se quer saber, não. Odeio ler pensamentos. Sempre descubro coisas desagradáveis quando faço isso. Simplesmente não tenho estômago. Mas se prefere não ser honesta...

Ciri rolou os olhos.

—Não tenho que prestar contas de minhas preocupações a você.

—Tem razão. Não tem. – disse Turiel, dando mais um gole em seu copo.

Se Lambert estivesse ali, exclamaria algum palavrão ou piadinha a respeito da personalidade difícil das feiticeiras. Embora aparentasse ser menos soberba ou extravagante que as feiticeiras que Ciri já topou na vida, Turiel carregava a leve empáfia e superioridade de alguém que se sentia ser capaz de vencer qualquer argumento. Soberba deveria ser um requisito para se tornar uma arcana, pensava Ciri.

—Na verdade, só há dois requisitos: ter inclinação natural à Magia e, o principal deles, uma conta bancária bem recheada para custear os estudos. – disse, repentinamente, Turiel. Embora a elfa fosse sempre séria, havia um quê de diversão em seus olhos, ao pegar Ciri desprevenida em seus pensamentos. Furiosa, a Bruxa cerrou seus olhos.

—E você me disse que não gosta de ler pensamentos...

—Não resisti à oportunidade. Mas pode ficar aliviada, não sou uma alcoviteira, como boa parte das mulheres de Lathlake. Fiz isto agora apenas para me divertir um pouco. Falando em diversão...

Ciri voltou seus olhos para o lado. Era o Magistrado, aproximando-se da mesa.

—Tenho certeza de que a derrota de Hank na queda de braço para a senhorita Ciri será lembrada por Lathlake pelas próximas três gerações.

Ciri riu do comentário do Magistrado.

—Espero que o orgulho dele não esteja ferido.

—Não se preocupe, ele está bêbado demais para pensar em orgulho. Creio que terá amanhã uma leve dor no braço, além da ressaca.

Antes que a conversa continuasse, a música repentinamente parou, chamado a atenção de Ciri, de Turiel e do Magistrado, bem como boa parte dos presentes, até então ocupados com bebida, conversa fiada e Gwent. Subitamente, uma espécie de burburinho se instalou na estalagem. No mesmo instante, Ciri pôde compreender que o clima estava agitado pela inesperada chegada de um estranho.

—Aberração... – murmurou um dos frequentadores.

Ao ouvir o xingamento, Ciri esgueirou-se para ver melhor, assim como Turiel e o Magistrado Godfrey. Tudo que pôde ver foram dois homens. Um camponês e um homem ao seu lado consideravelmente alto e forte, a usar não duas espadas nas costas, tais como ela, mas dois machados. Ele era ruivo e usava uma armadura negra, de couro e já gasta. Uma pequena besta estava pendurada ao lado dos machados. Mas o que mais chamou sua atenção foram seus olhos que cintilavam naquele ambiente pouco iluminado. Olhos de gato.

—Boa noite. Estou aqui pelo Dragão. Poderiam me dizer onde eu posso encontrar o Magistrado?


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Notas finais do capítulo

AGORA A TRETA VAI COMEÇAR, SENHORAS E SENHORES!!!

Bom, já descobrimos o que Lucius Júnior estava fazendo em Lathlake.
E agora, Ciri tem um bruxo como concorrente... Como será que ela lidará com isso?
Com certeza, vai dar merda!

Até o próximo cap!



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