Destinada escrita por Benihime


Capítulo 2
Capítulo I




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Querido diário,

Amanhã de manhã estarei novamente na Estíria. As passagens estão reservadas, as malas prontas e o voo sai daqui uma hora. Não há mais como mudar o rumo dos acontecimentos.

Tantos anos se passaram. Vai ser estranho voltar para casa. Mudei tanto e, mesmo assim, parece que nada mudou. É curioso como o tempo pode passar de formas diferentes dentro e fora de nós.

Não quero ir, mas prometi que voltaria quando fosse seguro e, mesmo depois de tanto tempo, preciso cumprir minha promessa. Talvez seja o que me falta para encontrar a paz.

Olhei as palavras que escrevera e fiz uma careta ao ver o quão terrivelmente sentimental aquilo parecia. Não era daquele jeito que eu pretendia encarar os fatos. Aborrecida, joguei a caneta no estojo e guardei o diário na bolsa. Suspirei pesadamente, respirando fundo para me acalmar.

Peguei a grande mala vermelha que deixara em cima da cama e desci lentamente as escadas. O percurso de táxi foi silencioso e mais rápido do que o esperado. No avião, graças a alguns comprimidos de calmante, logo caí no sono.

Um garoto está à minha frente. O sol impede que eu veja seu rosto, mas sinto que o conheço. Ele ri, gira nos calcanhares e sai correndo. É rápido, e quase não consigo segui-lo.

— Pare! — Peço— Por favor, espere!

Mas ele não se vira, apenas faz um sinal para que eu o siga. Tento, mas minhas pernas parecem feitas de chumbo. Logo fico para trás e o perco de vista, porém continuo tentando. Sei que preciso alcançá-lo.

Acordei sobressaltada, minha mente ainda confusa por causa do efeito do remédio.

— Só um sonho — Sussurrei para mim mesma — Foi só um sonho, Lydia.

Mas um sonho nunca pareceu tão real.

Uma dor no pulso esquerdo me distraiu. Não era uma dor comum, era bem pior do que qualquer corte ou queimadura, agonizante de uma forma que eu jamais havia sentido.

Afastei a pulseira de miçangas que colocara e arquejei de surpresa: a área ao redor de meu pulso estava vermelha e irritada. Logo abaixo da palma da mão havia um desenho que parecia ter sido feito a fogo em minha pele. Era o símbolo do infinito.

Dois dias depois

A saia comprida, em tons de azul e verde que complementavam o branco de minha blusa, roçava em meus tornozelos com a brisa. Eu a ergui um pouco para ter mais liberdade de movimentos e continuei caminhando, apressando um pouco o passo. Estava ansiosa para chegar lá, para ver novamente aquele lugar.

Enfim alcancei a já familiar passagem guardada por um enorme carvalho cujos galhos formavam um arco acima de minha cabeça, tão cheio de trepadeiras que elas formavam uma cortina verde, fechando a passagem como se fosse uma espécie de portal.

Afastei os galhos e entrei numa pequena clareira circular. Ao longe um riacho brotava das rochas e era possível ouvir o murmúrio da água. O chão da campina fulgurava com pendões de lavanda, que ondulavam ao sabor da brisa.

Não consegui avançar mais. O barulho do riacho, o cheiro de lavanda, as flores ... Suspirei ao lembrar as incontáveis tardes preguiçosas passadas deitada entre as flores de lavanda, observando as nuvens correrem no céu. O lugar continuava exatamente igual. Era como voltar no tempo. Meu paraíso permanecia intocado.

Ouvi alguém rindo, mas o som era tão distante que parecia estar sendo trazido pelo vento. Momentos depois, uma garota com longos cabelos loiro-dourados apareceu dançando entre os ramos, seu vestido branco destacando-se contra o verde da paisagem.

Cada passo que ela dava era gracioso, fazendo sua saia ondular, e mesmo de longe eu podia ver o sorriso satisfeito em seus lábios, tão radiante quanto o próprio sol. Ela fez uma pirueta e parou, olhando diretamente para mim.

— Lydia! — A loira riu. — Vai ficar parada aí ou vai vir me ajudar?

A surpresa foi tão forte que precisei me segurar em uma árvore para ficar de pé. Eu já ouvira aquelas palavras antes, muitos anos atrás.

Não é real, meu lado racional declarou. Uma parte de mim, porém, desejava demais que fosse real para sequer contestar.

No instante em que pisquei a imagem desapareceu e adentrei a clareira, lembrando de quando estivera lá pela última vez, uma menina ainda.

Elena vê os pendões de lavanda balançando com o vento e seus olhos luzem de expectativa. Conheço muito bem esse olhar. Ela está planejando alguma coisa.

— Lydia, vamos parar aqui por um momento. — Minha irmã pede — Quero levar algumas flores para a mamãe.

Mordo meu lábio inferior, indecisa. Sei que é começo da primavera, época em que os animais saem da hibernação e estão mais ferozes. Digo isso a Elena mas ela não se acovarda. Pensando bem, minha irmãzinha nunca se acovarda com nada.

— Só por alguns minutos! Por favor, Lidy! Que mal pode acontecer?

Seus olhos castanhos me encaram com uma expressão suplicante quase irresistível e me vejo não sendo capaz de manter minha decisão.

— Está bem, garota. — Meu tom é firme — Mas só por alguns minutos.

Elena assente para indicar que compreendeu e se inclina para colher alguns pendões de lavanda.

Eu amarro meu cavalo e me sento em uma raiz protuberante do salgueiro, observando minha irmã mais nova dançar por entre os ramos de flor. Seu vestido branco adeja na brisa, brilhando no sol e lhe dando uma aparência quase etérea, como uma fada ou algo assim.

— Lydia! — Ela ri — Vai ficar parada aí ou vai vir me ajudar?

— Sem chance. — Respondo, rindo também — A ideia foi sua, você age sozinha.

— Está é com preguiça de vir até aqui.

— Engraçadinha.

Vou até ela, que está agachada entre os ramos de lavanda observando alguma coisa na terra. O buquê que colheu repousa ao seu lado. Assim que me aproximo Elena me acerta com uma mão cheia de grama.

— Ah, sua peste! — Exclamo, enquanto tento tirar os pedacinhos verdes de meu cabelo — Você vai ser só.

— Precisa me pegar primeiro, irmã.

Nós duas brincamos de pega-pega por entre os ramos de lavanda por um bom tempo e paramos na margem do riacho para beber água quando nos cansamos. De onde estou posso ver a nascente brotando de entre as pedras. A água aqui é cristalina e pura como a chuva.

Num gesto automático, olho para o horizonte. É quando vejo o sol, muito mais baixo do que estava quando entramos na clareira. As nuvens já se tingiram de laranja e rosado, indicando a proximidade da noite.

— Elena, vamos. Precisamos sair daqui antes que anoiteça.

— Ainda temos muito tempo — Ela responde, ainda deitada com os pés dentro da água. — Só faz uma ou duas horas que chegamos aqui.

— Olhe para o horizonte, Lena. O sol já está quase se pondo.

Ela pragueja baixinho e se levanta. Nós duas sabemos o motivo de aquela floresta ser perigosa à noite: lobos. Assim que o sol se põe eles espreitam em caçada. Como se invocado por meus pensamentos, noto o par de olhos brilhantes entre as sombras das árvores.

Meu arco, embora eu o tenha trazido, está pendurado na cela de meu cavalo, longe demais para que eu o alcance. Tudo o que posso fazer é dar um passo à frente, protegendo Elena com meu próprio corpo.

— A alcateia deve estar por perto. — Sussurro — Se fugirmos, irão nos perseguir. Espere o lobo me atacar e saia daqui. É sua única chance.

Elena parece prestes a protestar, mas nessa hora o lobo salta.

Da bainha em minha cintura saco minha adaga, disposta a dar a ela o maior tempo de fuga que puder. Uma energia desconhecida toma conta de meu corpo, algo tão forte que é como perder a consciência. Minha visão escurece.

A próxima coisa que percebo, ainda com a visão turva, são minhas mãos cheias de sangue e a adaga que seguro pingando com o líquido vermelho. Olho para o chão, onde repousa o lobo. Morto.

Olho em volta procurando por Elena, mas estou sozinha. É quase noite e posso ouvir os lobos uivando não muito longe. Corro, monto em meu cavalo e parto o mais rápido que posso para longe dali.

Colhi um ramo de lavanda e o girei entre meus dedos, minha mente ainda divagando no passado.

Desde aquele dia eu soubera que era diferente, que podia fazer coisas que as outras pessoas não podiam. Fiquei tão assustada com minha própria força que passei anos tentando ser quem eu não era, negando meus poderes. Uma tentativa que quase me destruiu, até que fui obrigada a parar de me esconder.

Balançando a cabeça para despertar daquele devaneio, saí correndo da clareira.

Naquela noite

O vento uivava pela casa e não me deixava dormir. Eu tinha me esquecido o quão terrível era aquele som, lembrando o gemer das almas atormentadas sobre as quais meu pai costumava falar nas noites de inverno.

Sentei-me na cama, incapaz de dormir, atormentada pelas memórias. Aquela noite me lembrava muito a última noite que passei naquele quarto, memórias de um pesadelo que eu jamais conseguiria esquecer.

Ouço um grito em meio ao rugido da tempestade. Apesar de estar assustada, nunca fui covarde e, depois de pegar a adaga escondida na gaveta do criado-mudo, vou verificar.

O som veio do quarto de meus pais. Parada diante da porta, tudo em mim grita para que eu me vire e corra para longe. Ao invés disso empurro levemente a porta, abrindo-a. A cena que vejo é dantesca.

Há algo escuro manchando as paredes, algo que meu olfato e os clarões dos raios revelam ser sangue. Há mais sangue em cima da cama. O corpo de meu pai jaz ali com um enorme corte no peito e o pescoço em ângulo estranho. Sua faca com cabo de osso está caída no chão não muito longe, prova de que ele tentou se defender.

Há uma outra pessoa no quarto mas não posso ver seu rosto porque usa um manto escuro com capuz. Essa pessoa segura minha mãe contra si, apertando um punhal de aparência antiga contra seu pescoço.

Eu não havia feito nenhum som que pudesse denunciar minha presença, e os poucos ruídos abafados que não pudera evitar foram encobertos pela tempestade. Minha mãe, porém, nota que estou ali e tenta me avisar de alguma coisa. A figura percebe isso e a próxima coisa que vejo é um pequeno filete de sangue, quase como um colar, manchando o pescoço de minha mãe.

Apavorada, giro nos calcanhares e corro até o quarto de Elena. Entro sem fazer muito barulho.

— Elena, acorda. — Chamo, minha voz mal um sussurro. — Anda Lena, temos que sair daqui agora.

Ela continua dormindo e toco seu ombro para acordá-la. Sua pele está muito fria. Não consigo impedir o grito que sobe pela minha garganta e a próxima coisa que sei é que estou em meu quarto, jogando o máximo de roupas e coisas úteis que posso em uma mochila grande.

Pulo a janela e corro para a floresta, mas não consigo evitar de parar e me virar para olhar a casa em que cresci. Só consigo pensar no que vi recentemente, em minha família morta. Não, definitivamente eu não posso mais ficar ali.

Giro nos calcanhares e entro na floresta escura sem parar novamente. Algo dentro de mim mudou nessa hora, eu pude sentir. Algo sombrio, poderoso.

Rolei na cama, atormentada. Me sentia agitada, quase febril. Girei, estremecendo quando meus pés descalços tocaram o chão frio, e saí da cama.

Peguei a manta dobrada aos pés da cama e me envolvi no tecido macio, massageando levemente minhas têmporas para tentar fazer a dor de cabeça passar. Não funcionou. As imagens continuavam vindo. Lembranças do que eu fizera, do quanto a dor me afundara nas trevas.

Me esgueiro por uma saída na lateral do teatro, que dá em um beco escuro. Como eu esperava, o rapaz me segue.

— Olá — Abro-lhe meu melhor sorriso — Não esperava que viesse.

Ele retribuiu meu sorriso, parecendo um pouco embasbacado. Culpa de meu vestido, talvez. Veludo negro e cetim azul-escuro. Decote profundo. Curtíssimo. Costas nuas ... Pensando bem, é um milagre que esse rapaz ainda esteja minimamente coerente.

— Você me deixou curioso. — Ele diz enfim — Uma mulher tão bonita num lugar como esse …

— Com certeza tem um objetivo. — Completo, me inclinando levemente em sua direção — E o meu, esta noite, é você.

— Mas por que eu?

Lanço-lhe meu olhar mais sedutor, brincando com alguns cachos de meu cabelo de modo a expor parte do pescoço. Noto seu olhar faminto acompanhando meus gestos.

— Vai mesmo questionar a sorte, baby? — Provoco.

Ele abre um sorriso sacana, enfim avançando, suas mãos envolvendo minha cintura. Colo nossos corpos, beijando-o com vontade e, sem que ele perceba, saco minha adaga. O rapaz nem vê o que o atingiu.

Essa não foi a primeira, nem a última, muito menos a pior coisa que eu já fizera. Houve uma época em que as trevas sugaram cada gota de humanidade em mim. Eu sinceramente não tinha certeza se conseguiria me livrar daquilo.

Um mês depois

Depois de estar vivendo novamente na casa em que cresci por pouco mais de um mês, os pesadelos e flashbacks começaram gradualmente a desaparecer. Com minha vida e meu raciocínio de volta a seu ritmo quase normal, finalmente me senti bem o bastante para voltar a trabalhar.

Ser restauradora definitivamente tem suas vantagens, pensei ao ver a enorme pilha de documentos antigos que esperava por mim. 

Procurei em meio aos papéis, esperando que algum despertasse minha atenção, até que meus olhos se prenderam ao último item da pilha, um antigo pergaminho escrito no que sem dúvida era grego.

Inclinei-me para tentar ler, surpresa por seu relativo estado de boa conservação, quase sem manchas ou partes deterioradas. De onde quer que o pergaminho tivesse vindo, tinha sido bem conservado, e a carta que continha ainda era perfeitamente legível.

Minha doce Angeline,

Como poderei algum dia agradecê-la pelo que está fazendo por mim? Sempre terei uma dívida de gratidão para com você.

Não quero que pense que faço isso por não amá-la. Amo-a mais do que tudo, e é por isso que preciso abrir mão dela. Aqui, minha menina jamais estará segura. Por esse mesmo motivo meu marido achou melhor que ela esquecesse tudo sobre sua verdadeira origem — e sobre nós.

Você, minha amiga, deve manter este segredo. Se Lydia souber a verdade sobre quem ela é estará em grande perigo e todos os nossos esforços para protegê-la terão sido em vão.

Correndo o risco de parecer completamente contraditória, devo pedir a você que a prepare, na medida do possível. Lydia terá um caminho muito árduo a trilhar, e sofrerá mais se não tiver uma ideia do que a aguarda.

Pelo bem de minha filha e de nossa amizade, faço votos de que o infortúnio nunca a alcance.

Sua,

H.O

A carta me surpreendeu tanto que foi preciso lê-la quatro vezes para assimilar completamente o seu conteúdo e mesmo depois disso, já convencida do que lera, uma parte de mim se perguntava se eu não estava sonhando.

Incapaz de parar de pensar naquelas estranhas palavras, decidi que seria melhor deixar o trabalho para depois e saí para caminhar.

Lembranças de minha infância, de minha mãe dizendo que eu estava destinada a algo grande, que eu tinha algo especial dentro de mim, não paravam de ecoar em minha memória.

À noite, quanto mais eu pensava na carta, mais meus pensamentos pareciam se embolar, como um novelo de lã com o qual um gato tivesse brincado horas a fio. Aquelas palavras tiveram o poder de alterar o modo como eu via muitas coisas que aconteceram em minha vida.

Meu celular vibrou, indicando uma mensagem. Era de Lilly, uma amiga minha:

Encontre-me amanhã à noite no lago, por volta da meia noite. Precisamos conversar em particular. É importante.

Com mais uma preocupação em minha lista, senti que dormir seria simplesmente impossível. Fiquei sentada num dos grossos galhos do abeto junto à minha janela, olhando a lua cheia, pensando em tudo o que me atormentava.

Fiquei dizendo a mim mesma que não havia motivo para estar tão inquieta, que meus sentimentos eram originados por nada mais do que antigas lembranças, fantasmas de um passado distante que já não podiam me machucar … Mas sem sucesso. Vencida pelo cansaço, finalmente adormeci.


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