Quem matou quem? escrita por Edgar Varenberg


Capítulo 1
Espantalhos


Notas iniciais do capítulo

Esta one-shot é uma releitura do episódio "Quem matou quem?", do desenho "As Terríveis Aventuras de Billy & Mandy".



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Nos resguardos da infância e de uma temporalidade que futuramente se intitularia como algo próprio, notava-se ali o empenho de uma construção social baseada nos erros de nossos ancestrais. Num ambiente onde correr era o único ato inocente, ouvia-se os gritos mais insuportáveis da juventude; existia ali um destino.

Os clássicos brincavam de bola; os que queriam parecer adultos — e, futuramente, eram os que mais demoravam para chegar em tal fase — jogavam cartas. Outros ostentavam figurinhas ou qualquer outra coisa brilhante que passasse na televisão mais de uma vez. Breno rodava pião com Igor.

A situação era até que simples: começava ali mesmo, na preparação, os olhares e estratégias inexistentes que circundavam pedaços imundos de barbante; as mãos suadas e a respiração ofegante porque já era pôr-do-sol, e a alegria que não se via em ter roupas sujas como anunciava a propaganda, tudo para que dois pedaços de madeira industrialmente modelados competissem entre si em busca do inútil reconhecimento pessoal; a mesma inutilidade de uma piada interna.

— Posso jogar também? — disse uma voz feminina e infantil que, diferente do esperado, não estava nem um pouco envergonhada.

— Sério? — Breno começou a rir como se nem tivesse pensado para dizer aquilo — Claro que não, você é garota!

— É! — Igor, que não tinha personalidade alguma, acrescentou.

— Não pode — Breno pegou seu pião como se tentasse o proteger de algum tipo de ameaça sexual — Pião é coisa de menino. Não de menina.

— Você tá falando isso ou tá com medo de perder para uma garota? — Mary era bastante sagaz para a idade.

— Pode falar o que quiser! Garotas não podem.

Era evidente que nem a mais fácil das informações entraria na cabeça do teimoso Breno; era como entregar caixas vazias por aí, só era formidável para quem fosse algum tipo de admirador de caixas. Entretanto, Breno não era uma caixa, ele era ainda menos útil do que isso. Ele aprendeu a dizer o que quiser porque nunca o ensinaram que ele não poderia dizer.

A rejeição ou a desistência não acompanhavam nenhum espírito naquele trio tão peculiar. Um ignorante, um servo e uma metida a inteligente, como aquele desenho que sempre escapa da memória e sempre serve de inspiração para alguém hora ou outra. Breno e Igor fizeram aquilo que lhes era especialidade: covardemente correram, gritando pelos cantos.

“Garotas não podem!”

A cena amadora sobre discussão de gênero teve por consequência a pausa de um critério mais importante: egos masculinos brigando para ver qual brinquedo de madeira duraria mais tempo no concreto velho e curiosamente úmido. Novamente, aquele clima de que alguma decisão permanente seria tomada reinou, os barbantes esfarrapados pareciam grandes armas de influência, enquanto aquele lugar mais afastado do quarteirão dava um ar de morte súbita, ou simplesmente privacidade não declarada.

Como um método de revolução pouco ortodoxo, ou simplesmente as consequências mais agradáveis de ver um indivíduo sem voz de maturidade passar, Mary apareceu num súbito de raiva com vingança, tomou o pião da mão de Breno e o jogou além da cerca alta mais próxima.

— Tá vendo, Igor, é por isso que garotas devem ficar em casa! — exclamou Breno, bufando como se todo o seu sucesso tivesse sido roubado por alguém — E olha só o que você fez, Mary, jogou o meu pião no quintal da Sra. Frigarlic!

— Isso é para você aprender a deixar de ser tão babaca! — respondeu Mary, não com tanta imposição como costumava ser — E é só um quintal, não tem nada de mais!

— Só um quintal?! — Breno retrucou com um ódio que se dá a coisas óbvias.

— Não é só um quintal — completou o desmiolado do Igor — Você é nova na vizinhança, nunca deve ter ouvido a lenda da Sra. Frigarlic!

— Lenda?

Ah... A Lenda da Sra. Frigarlic... Os boatos começaram na época que esse trio usava fraldas. Os Frigarlics eram o casal que vivia na casa mais afastada do quarteirão, conhecida por ter um muro alto, de difícil visualização do perímetro, a não ser se a pessoa já estivesse lá dentro. Ninguém sabia como era lá; aparentemente não tinham familiares nem recebiam visitas — nem eram de visitar —, mas era até que um casal bastante conhecido.

O Sr. Antônio Frigarlic era muito presente nos bares da cidade, outros até diziam que o via em lugares mais privados, daqueles que não valem a pena citar num conto infantil, não seria didático. Mantinha uma rotina estranha e até que diversificada, embora todos os seus passos envolvessem chegar a casa extremamente bêbado; todos os passos davam sempre na casa final do tabuleiro.

Já a respeito da Sra. Paola Frigarlic, muito pouco se sabia sobre ela. Ela saía pouco de casa, raramente era vista conversando com um homem que se disfarçava com um manto preto, uns diziam que ela era ocultista, outros que era traficante de drogas, mas nunca a chamaram de prostituta. Um dos poucos aspectos de sua personalidade envolvia sua falta de paciência com crianças, então sempre que algum brinquedo caía no seu quintal, ele sumia misteriosamente e ela nunca fazia questão de devolvê-lo.

Algumas crianças, então, traçavam o jeito difícil. A cerca — que mais parecia um muro — dos Frigarlics era ‘castelar’ — principalmente nas cabeças infantis —, daquelas que todo esforço deveria contar para se ter apenas uma pequena vista do que se escondia diante de tanto blá blá blá; afinal, a verdade é transparente, por isso ninguém gosta de se esconder nela. Claro que não era pelo valor material — crianças não têm valor, muito menos material —, era pelo simples fato de evitar a bronca no fim da tarde, porque ninguém merecia ficar sem TV ou sem jantar, mas dignidade sempre foi algo que deu para viver sem. Prioridades.

Pulavam a cerca.

Entretanto, como vias de mão única, engarrafamentos acidentais e discussões com mulheres raivosas, aquilo não tinha volta. As crianças não voltavam e as investigações nunca levavam a nada, chegara a ter uma época em que a polícia impedia qualquer aproximação daquele território; lá não havia nada do que eles procuravam. Eram sumiços mais eficazes que os de canetas escolares.

As coisas começaram a piorar quando a polícia parou de dar atenção a este caso e aquela casa foi esquecida socialmente.

As pessoas começavam a inventar histórias.

“Meu cãozinho Lucky foi parar lá dentro e foi usado como sacrifício.”.

“A Sra. Frigarlic transforma meninos levados em espantalhos para o seu jardim.”.

“Ouvi falar que aquele cara que ela se encontra contrabandeia órgãos infantis.”.

“Eu já vi uma mão humana na bolsa dela!”.

Independentemente das interpretações, também há relatos de que tudo isso aconteceu por causa do incidente com o seu marido. Ele chegava bêbado todos os dias, numa presença quase que etérea e inconformada. Num dia em que os limites já não tinham mais lugar para estabelecer novos limites, ele tentou matá-la, falava alguma coisa sobre “Ela é invencível”, mas todos sabiam que ele também já estava à beira da loucura há uns tempos. A partir daí, não se sabe mais ao certo, a polícia nunca foi chamada, ninguém sabe o que realmente aconteceu, além da morte de Antônio.

Vieram os boatos.

“Ele estava louco achando que a mulher dele a traía com outra. Vivia gritando “invencível” no bar que sempre frequentava. Ele queria matá-la e depois se matar, como se quisesse selar algum tipo de destino.”.

“Meu primo disse que conversou com ele momentos antes do incidente; pelas circunstâncias, parece que os dois tinham grande ligação com essa parada de ‘morte’, acho que um queria matar o outro, tipo um Sr. e Sra. Smith. Mas parece que ela venceu, né?”.

“Eu acho que aquele cara que ela vivia contratando era algum tipo de assassino de aluguel. Ela tá usando o alcoolismo dele para se safar.”.

“Eu vi uma bola vermelha no vestido de bolinhas dela. Todas eram azuis, só aquela era vermelha. Com certeza aquilo era sangue.”.

Afinal, quem matou quem?

Breno contou uma versão resumida muito mais infantil e pouco detalhada. Tinha até fantasmas no meio.

— Vocês acreditam numa baboseira dessas? — riu Mary; a fragilidade masculina é uma piada pronta — Fantasmas não existem. É só a porcaria de uma casa abandonada que ninguém visita mais por causa de gente que fica inventando historinha.

— Existindo ou não, você nos deve um pião, sua chata! — Breno retrucou com toda a maturidade do mundo.

— Que seja então...

Como se tivessem sido mirados por algum tipo de magia mitológica, petrificados estavam Breno e Igor ao ver Mary procurando brechas para escalar aquela cerca — que agora era mais como uma fronteira — sem nenhum auxílio. Ela ia mesmo, porém isso não era dúvida para ninguém, só para eles. Estavam mais preocupados em se borrarem de medo do que em perceber que ela realmente tinha conseguido e, no momento, encontrava-se do outro lado. E, possivelmente, não teria volta.

— Hahahaha — Rir foi a reação gratificante de Igor — Vai virar comida de aranha!

Na versão de Breno também tinha uma parte sobre aranhas comedoras de gente.

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Socialmente falando, notava-se que o termo “abandonado” se encaixava muito bem ao território dos Frigarlic, mas a realidade trazia novos conceitos de abandono, possivelmente provenientes da preguiça ou da irresponsabilidade — ou até mesmo da indisposição por condenação social. A grama estava extremamente alta, na altura dos ombros de Mary; via-se a casa ao longe, um longe possível, embora não preciso, e tudo tinha uma aparência um tanto seca e desesperadora, como seres segundos antes de morrerem de sede.

O caminho era fácil e causava coceiras e vermelhidões. Havia três bastões de madeira envergados num formato de cruz em pontos aleatórios do território, alguns trapos caíam e os bastões pareciam extremamente úmidos, quase como uma madeira mofada. Mary concluiu que os espantalhos não tinham sido repostos há um bom tempo, pois não tinha sobrado nada além de restos insignificantes de trapos e manchas do tempo.

Não havia aves.

Não havia plantações.

Por que a necessidade de espantar então?

As possíveis relações de que algo foi tomado de forma certa se interromperam quando Mary chegou lá e teve contato com o tipo de madeira mais natural para estes momentos: aquelas que rangiam tanto que, se assim não fossem, não acrescentariam ao enredo. Olhou para os lados, a casa estava em perfeitas condições — até o ranger tinha certa melodia —, parecia que tinha sido pintada recentemente, a porta era convidativa, dava um ar de importância. Mary então deu duas batidas sutis, não esperadas de uma criança comum.

Como quem temporizasse, uma brisa a lembrou de que os dias têm fim e que quando o sol descansa, a temperatura tende a nos abraçar com a sua frieza cautelosa; o caminho de volta não era mais tão fácil, era a vez da luz ser secundária sob a sombra, e aquele misto de ansiedade — um tanto de medo daquela história ser verdade — tornava a espera antiquada.

Um ranger nada convidativo surgiu.

— Pois não? — Paola se manifestou ao abrir a porta.

Os tempos diriam que não existiam tempos ao ver aquela figura tão bem conservada durante esses penosos anos de condenação social. Os estereótipos se aplicavam a uma metade do seu ser, mas a outra metade era repleta de surpresas, dúvidas e até mesmo paradoxos. Mary tinha dúvidas se levaria aquilo adiante, embora ter sido atendida contribuiu para que essa decisão fosse tomada mais rapidamente do que o esperado, porém mais que o suficiente.

Paola a fitou denotando sua impaciência em demora, principalmente advindas de uma criança.

— Um pião do meu amigo — Por incrível que pareça, esta palavra foi dita por Mary com toda a naturalidade e sinceridade que ela poderia fornecer — caiu no seu quintal. Eu não cheguei a procurar lá, estava escurecendo e eu fiquei um pouco confusa, mas decidi fazer uma visita; nunca tinha visto a sua casa antes.

Paola continuou intacta por algum tempo.

— Estou sendo inconveniente, senhora?

— Está sim. — respondeu Paola, ainda sem mudar muito seu semblante — Mas você me parece bastante comportada e inteligente. Não veio me encher com comentários... Entre, o café já esfriou, mas posso esquentá-lo de novo.

Mary preferiu não reforçar a ideia de que era uma criança e, portanto, não bebia café. Ao entrar, pôde perceber que a casa era ainda mais impecável por dentro, não fazia ideia de como toda aquela decoração e aqueles objetos — que facilmente passariam como ultrapassados já no século passado — pudessem ter uma aparência tão nova e esquisitamente moderna; seria alguma linha de coleção clássica? A moda retrô tem essas manias de ir e vir como mágoas e problemas de peso.

— Sabe, eu não sou de receber visitas — A Sra. Frigarlic começou a falar — Mas acho que sei onde está o pião que você procura. Siga-me, por favor.

A pausa para o café foi pausada para uma visita ao quarto de Paola, que exalava um cheiro de segredo, que era muito parecido com capim-limão. A cama tinha um quê de solidão, como aquelas camas de contos de princesa, enquanto que a penteadeira ilustrava o nascimento de uma grande estrela, ao mesmo tempo em que parecia protagonizar um terrível desastre de alguém que sonhou muito e não teve a oportunidade nem de tentar.

Entretanto, o objeto mais chamativo do quarto era um grande autorretrato emoldurado de Paola. Com toda a postura e elegância, ela segurava um florete, e todo o conjunto da obra a deixava com uma grande impressão de respeito e disciplina; a pintura estava um pouco garranchada no canto superior direito, porém em tons mais escuros do que os usados na obra no geral, provavelmente indicando que aquela arte tinha sofrido algum tipo de acidente. Algo que Mary não pôde deixar de notar era que quanto mais ela prestava atenção na casa, menos ela encontrava evidências da existência de Antônio.

Era como se a Sra. Frigarlic ter um marido fosse mais um dos boatos.

— Aqui está o pião, querida.

Mary o observou naquela mão que parecia querer agarrar objetivos muito maiores do que brinquedos infantis.

— Pensando bem... Aqueles panacas nem merecem isso, pode ficar com ele. — respondeu Mary — Estou curiosa para saber por que eu nunca te vi na cidade.

— Sabe, querida, as pessoas são muito ruins... Todo ser humano carrega um pedaço de ódio em si e simplesmente é muito perigoso que eles descontem isso numa pessoa aleatória, seria um caos descontrolado. O mais pacífico a se fazer é que, em sociedade, se decida uma única pessoa para receber esse ódio; dessa forma, com o ódio todo direcionado, não há motivos para acreditarem que o lado odiado tenha pontos positivos, que seja digno de ser ouvido. A paz nada mais é do que o massacre geral se transformando num massacre individual.

— Eu sei que não dá para todos serem amigos. — disse Mary, distraindo-se levemente como uma caixinha de música prateada que se encontrava na penteadeira — Ainda mais quando algumas dessas pessoas são tão idiotas que amar ou odiar afeta elas de qualquer jeito.

Paola abriu um sorriso que parecia cínico, porém era muito sincero.

— Assim que te vi eu já sabia que você era uma garota muito inteligente. — O sorriso logo se fechou em algo mais profundo — Deixe-me lhe perguntar: você gosta de melão?

— G-gosto... — A gaguejada de Mary foi mais pela surpresa da pergunta repentina não ter qualquer sentido com a ocasião.

— Venha para a cozinha comigo, eu tenho certeza de que tenho melões fresquinhos.

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Longe de culpa ou qualquer sentimento de corrosão, porém muito próximo de ser culpado e acabar interrogado, Breno cercava-se do ambiente familiar evitado por muitos e desejado por mais que muitos. Fartura, ódio e tradição tornavam aquela mesa de jantar a mais apropriada de todas, enquanto todos ali competiam internamente para ver quem teve o melhor dia, ou para disfarçar os pecados.

— Então, Breno, você brincou com a Mary hoje? — perguntou sua mãe — O pai dela ligou para cá dizendo que ela tinha ido brincar com você, mas até então ela não voltou para casa e eles estão preocupados.

— Ih, sei não, mãe — A mentira passou como uma luva, não dele para a mãe; mas da consciência para ele mesmo. — Só escutei ela falando sobre comida de aranha.

Igor teria entrado em desespero, pois perguntas assim são um gatilho para suas emoções explodirem. Sorte de Breno não ter seu amigo inútil por perto para não fazer com que ele tivesse trabalho de se explicar. Na verdade, tinha preocupações maiores: panquecas de frango ou de camarão? Era tão difícil escolher...

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Mary segurava um florete e analisava os detalhes da decoração com a mesma admiração que crianças da idade dela olham para embalagens coloridas de chiclete. Paola parecia bem mais aberta, tinha contado sua história de vida, adolescência, sobre ter sido campeã nacional de esgrima quando era mais jovem; tudo ali lhe cabia tamanhas informações que traziam à tona um coração aconchegado com o verdadeiro significado de lar, de conversa, de se ter uma história.

— Eu posso te perguntar uma coisa? — Mary de repente a perguntou, gerando um pequeno silêncio que, a princípio, a fez sentir um grande arrependimento.

— Mas é claro, minha jovem. Qualquer coisa.

— É que eu tenho uns... amigos... — Dessa vez a palavra já não parecia tão certa. — Eles me contaram histórias terríveis sobre você, mas eu não consigo imaginar que elas podem ser verdade. A senhora é muito gentil. Mas... Eu sempre ouvia falar no Sr. Antônio Frigarlic?

— Você é parente do Antônio? — Paola a interrompeu imediatamente como se isso fosse uma informação crucial.

— Não... Mas... Ele existe mesmo?

A senhora riu de uma forma muito espontânea e estranhamente vívida, teve até que respirar fundo algumas vezes e dar umas pausas. Era encantador ver que aquilo era obra de um comentário que gerou sensações de aproximação, e não como os risos costumam ser: oriundos de ironias destrutivas e situações desconfortáveis.

— Sim, eu tive um marido chamado Antônio Frigarlic. — começou ela — Ele gostava muito de ir ao bar para ler e escrever livros, era um lugar que ele achava adequado para isso. Um pouco antes de ele me conhecer, ele tinha sofrido um sério acidente por causa do alcoolismo. Ele sobreviveu por um milagre, ninguém tinha mais esperanças... Então desde aquele acidente, ele nunca mais bebeu uma gota de álcool; na verdade, ele levava seus amigos até em casa em segurança e se fingia de bêbado por diversão. Mas é aquilo, os tais amigos não tinham coragem de assumir para as famílias as porcarias que eles faziam, então diziam que foi meu marido quem fez; então, por ele ter um histórico de problemas com bebidas, inventaram que ele nunca os superou.

Ela pausou momentaneamente para admirar a janela da sua cozinha, via a grama alta se perder na escuridão e ouvia barulhos estranhos e confusos após o vidro, como insetos em acasalamento. Voltou a olhar para Mary e, de repente, percebeu que elas se pareciam na época da infância. Era como um encontro do destino.

— Apesar de ele ter sobrevivido ao alcoolismo — ela então continuou — ele sempre soube que algum dia a morte chegaria até ele. Sempre me dizia para ser realista, que a morte era invencível. Pena que essa traição dos amigos fez com que cada um deles fosse se afastando, um por um. Tivemos diversas discussões de ideologia durante esse tempo, ele não tinha mais fé em mim.

Ela pausou novamente, mas dessa vez como se estivesse retendo seus sentimentos mais profundos; como se nada mais estivesse valendo a pena. Todos os significados não tinham valor algum porque um significado em específico não estava ao seu alcance; toda aquela barreira de conforto foi quebrada para algo bem mais real, porém não visível.

— De repente... — Paola tentava encontrar palavras para expressar algo simples — Ele simplesmente queria morrer.

— Suicídio? — questionou Mary, terminando de comer sua fatia de melão.

— Não. Ele queria morrer, não arrancar a própria vida. Ele acreditava fortemente que tinha um momento adequado para isso acontecer e simplesmente não esperava a hora disso chegar. Toda essa situação o afetou demais. Começou a agir de forma estranha, não saía mais de casa... Foi quando eu decidi procurar ajuda.

— Que tipo de ajuda?

— Eu consegui um cãozinho. Ele sempre me contou que tinha uma paixão imensa por cães, sempre tentava me convencer de termos um, mas eu não tinha muita paciência, confesso. Então decidi ceder para ver se isso ajudava, consegui um e o batizei de Lucky. O tempo foi passando e tudo que eu tentava se tornava cada vez mais inútil, então precisei procurar novas formas de ajuda.

— Seria o senhor com o manto que você costuma se encontrar? — Mary, com rapidez, pensou duas vezes se deveria ou não encaixas essas informações, porém foi sem medo.

— Você é mais esperta do que eu pensei. — indagou a senhora.

===

Com o escurecer dos corações, dos ritmos, dos brilhos da famigerada esperança — a última vítima — e dos céus, a noite caía mais forte do que nunca, recolhendo todas as jovens almas para uma noite forçada de sono. Breno revirava-se na cama como se as trevas estivessem invadindo seu quarto. Nunca se preocupou com seus pertences, então nada que comprar outro pião não resolvesse. Mas era outra coisa... remorso infantil trazendo holofotes mentais da imagem de Mary.

— Era a edição limitada dos peões do Capitão Forte... — Breno levantou-se da cama, procurando uma brecha para sair sem ser visto — Essa menina me paga.

A noite ainda é mais traiçoeira quando as crianças não estão obedecendo seus pais.

Aquele jardim seco já conseguia sentir os passos que receberia em breve.

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— Eu tentei de tudo, querida. — afirmou Paola, enquanto entregava um copo de água que Mary tinha pedido anteriormente — O rapaz em questão então me disse que havia uma forma de eu me comunicar com a Morte. Também me avisou que era arriscado, que eu teria que ser forte e não me esquecer de meu objetivo.

Mary era mentalmente multitarefal, conseguia prestar plena atenção na conversa, enquanto buscava vários detalhes da casa; era incrível, tinha tanta coisa que sempre quando ela olhava para um mesmo lugar, só que em outro momento, parecia que novas coisas surgiam. Não pôde deixar de notar, ao longe, na área de serviço, que havia várias roupas de policial penduradas. Pensou em interrompê-la e perguntar se Antônio era policial, mas a conversa estava chegando a níveis que era melhor não; níveis que até para a precocidade de Mary, já estavam circundando uma área obscura de conhecimento, a qual a maioria das mensagens não poderiam se compreender.

— Acabei envolvendo muito dinheiro com isso também... Eu precisava de órgãos para a execução desse plano — Paola tinha zero contato com crianças, que ia muito mais do que só saber que elas não bebem café — E a Morte não é do tipo que concede favores, ela é capaz até de quebrar destinos pelo simples fato de ela ter vontade. Mas estávamos acostumados com ódio, aquilo tudo não era novidade... Eu sempre mantive discrição nisso, Antônio faria de tudo para me impedir se soubesse. Acontece que um dia ele soube... E, imediatamente, quando ele soube que havia, sim, uma forma de conceder o desejo dele de morrer mais cedo, ele me confrontou. Mas o meu objetivo era exatamente o contrário, eu queria estender esse dia o mais longe que eu pudesse, eu queria mostrar a ele que era possível ele retornar à vida, sem ser ressuscitando.

A jovem permanecia atenta, conseguia ligar alguns fatos com as histórias que ouvia, mas a maioria das informações entravam numa confusão interna muito grande na sua cabeça; era muita fantasia para o seu projeto de ceticismo questionar e tentar argumentar. Nem conseguia mais prestar atenção aos detalhes da casa, pois precisava se focar ao máximo.

— A morte nos colocou um contra o outro, querida. E, a partir dali, eu sabia que Antônio não teria mais nenhum dia de vida além daquele. Minhas chances tinham se esgotado e eu não queria perdê-lo.

Paola pausou rapidamente por ter ouvido um movimento forte no gramado do seu jardim. Abriu a janela por alguns instantes para checar, porém fechou logo em seguida e concluiu que deveria ser algum animalzinho perdido por aí; a noite é preferível quando o assunto é se perder.

— Enfim... — continuou — Se ele não queria algo que eu queria tanto, eu convenci a Morte de que realizasse o desejo dele conforme o meu desejo. Decidi transformar toda a existência dele em energia vital, me garantindo muito mais vitalidade e anos de vida, cerca de pelo menos uns 120; a Morte me garantiu.

Um terrível destino para uma campeã nacional de esgrima. Por fim, estavam na sala de estar. Imediatamente, Mary foi ansiosíssima em direção ao piano, ela era muito apaixonada por pianos e música clássica. Olhou todos os detalhes com atenção, até tocou indevidamente no instrumento sem permissão. Tinha uma coloração muito vívida de preto para um objeto que datava, segundo gravação, o ano de 1741.

— Ah, é o Mors — comentou Paola, tão orgulhosa de ver uma menina tão jovem realmente fascinada com aquele objeto. — Um piano que eu ganhei de um grande amigo meu, ele me garantiu que me desse um dos primeiros, assim que foi lançado.

De repente, as contas não batiam mais. Mary percebeu, Paola percebeu a percepção de Mary, mas nenhuma das duas ousaram se questionar. Estava tarde, crianças deveriam estar em suas respectivas casas a essa hora. Paola comentou sobre o horário e encaminhou a menina até a porta de entrada. Ao sair da casa, Mary notou que as paredes não pareciam mais tão recém pintadas assim e que o ranger das madeiras soava mais a deterioração. Mas estava tudo tão escuro que aquilo era muito incerto também.

— Consegue ir sozinha até em casa? — Paola perguntou, numa preocupação muito sincera para quem não levava jeito com crianças.

— Sim. Muito obrigada pela recepção, Sra. Frigarlic.

— Não há de quê, querida...

E a porta se fechou com um silêncio, quase como se as coisas não tivessem se fechado. Mary andou muito cautelosamente até a saída, estava muito escuro para ela não tomar cuidado. Estava pensativa, tentando encaixar informações, pedindo ao seu organismo para usar os neurônios que ela ainda produziria, tudo em busca de todo aquele momento que, com certeza, mudaria a sua vida.

Subitamente, ela acabou esbarrando em algo, de uma estrutura dura e estranha, como se fosse outra pessoa; inegável que a situação arrancou um grito de pavor da menina, mas ela acabou por perceber que só se tratava de um espantalho. Não dava para ver direito, mas ela se lembrava das madeiras envergadas e de como os trapos se pareciam. Havia uma aranha em cima do espantalho, parecia que estava o comendo ou algo parecido.

Ela decidiu correr, precisava voltar para casa, começou a perceber que seus pais estariam preocupados, na desculpa que daria e, muito provavelmente, no castigo que receberia; logo ela, que foi muito bem disciplinada a vida inteira. Pulou a cerca de volta com sucesso, a rua estava escura, porém com luzes urbanas, realmente de volta àquilo que ela costumava a presenciar. Durante sua volta para casa, deparou-se com um cartaz anunciando uma luta de boxe, cujo codinome de um dos caras era “Invencível”; foi então que, magicamente, parece que foi a última peça do quebra-cabeças.

— A Sra. Frigarlic... — Mary disse para si — Ela venceu a morte...

No fim das contas, tornou-se mais um dos boatos.


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Notas finais do capítulo

Os personagens não foram descritos fisicamente de propósito, assim como a idade das crianças.



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