Eu Prometo Contar Tudo Exatamente como Aconteceu escrita por OITO


Capítulo 4
Capítulo 4


Notas iniciais do capítulo

E eis o final. Espero que gostem.



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Tudo ao redor parecia o cenário catastrófico de apocalipse; a água escorria pela rua onde ninguém colocou os pés, pois, naquele dia, não havia motivo para sair que parecesse tão interessante, principalmente quando analisavam as possibilidades frente ao perigo da enxurrada. As mães e as filhas estavam em frente a lareira, enquanto os pais buscavam um jeito de acomodar a todos em casa: as filhas, os maridos das filhas, os filhos das filhas. As visitas se transformaram numa breve estadia, tão logo o primeiro trovão mostrou que seria impossível voltar naquele mesmo dia para a própria casa e, ora essa, que mãe permitiria à filha e sua família voltar sob aquele temporal?

O vento soprava forte e as telhas de duas ou três casas foram jogadas para o chão enlamaçado; algumas carroças passaram apressadas, puxadas por cavalos um pouco assustados e protegidos da chuva forte, enquanto os cascos atiravam água para cima e para os lados; as rodas, pois as carruagens seguiam com grande velocidade, formavam ondas de água suja sobre a calçada e espalhavam sobre vitrines algumas imundícies flutuantes do lamaçal, já aceito pelos proprietários de loja que mandariam, no dia seguinte, um dos empregados esfregar o vidro da entrada com força.

A noite sombria trovejava com suas improbabilidades sinistras e um homem vacilante, em frente à porta de vidro de uma taverna, questionava-se quanto duas possibilidades: entre permanecer ali dentro, e, possivelmente, escutar impropérios ao escancarar a porta da frente lentamente, com a esposa esperando, sentada no corredor, com o rosto contorcido em fúria, ou correr encapado sob a chuva forte, uma possibilidade aparentemente mais agradável. Ele empurrou mais uma vez a porta do estabelecimento e colocou os pés para fora; ah, a confusão do eu que questiona-se quanto a melhor opção. Estendeu a mão sob a chuva e respirou fundo.

O casaco velho e pesado o protegeria durante maior parte do tempo; ao chegar em casa, poderia tomar as providências necessárias, não ficaria doente. Ele correu sob a tempestade, atravessando a rua e sentindo as próprias pernas encharcando-se e a lama pastosa escorrendo sobre as próprias pernas – ou seria mesmo apenas água? –, os dedos escorregavam e os pés faziam o possível para manter a firmeza. Pois não fora naquela mesma manhã quando, quase sorrateiramente, esgueirou-se entre uma população furiosa numa livraria quase inacreditavelmente cheia e conseguiu uma cópia do novo volume de Odenni Lotm? Não foi a primeira vez que comprou um livro, é claro, mas foi a primeira vez que quis, de fato, comprar um livro.

A publicação já estava espalhada entre todos como uma febre; quem soubesse ler, disseram, se dispunha a ler o desenvolvimento e a ideia de que aqueles horrores eram baseados numa história real, desconcertavam completamente qualquer leitor ávido pelos episódios cada vez mais tenebrosos, narrados pela pena afiada de Lotm. As empregadas, pelo que soube, sempre enfiavam em bolsos do avental um recorte da página, durante o processo de publicação serializada, e algumas até mesmo compraram o volume, se puderam. As meninas, em casas elegantes, todas obrigaram seus pais a comprar os volumes para a estante da família.

Ah! Que beleza!, pensou ele, ao correr, descendo a rua – percebeu uma outra pessoa correndo na direção oposta, subindo rapidamente, e quase se chocaram –, que beleza de temporal! Ao chegar ao portão da própria casa, notou-o aberto; empurrou os ferros pesados e entrou lentamente, subindo os degraus – contou um, dois, três,… oito –, pescou a chave como pôde, sob o dilúvio das próprias vestes e os cabelos escorridos sobre o rosto, abriu a porta e entrou. O corredor estava bem iluminado e chamou a esposa e uma das crianças pelo nome duas, três vezes, mas não obteve resposta, portanto, entrou, desfez-se das roupas molhadas e seguiu em busca dos familiares.

Não havia ninguém, qualquer alma viva, na sala de estar ou na cozinha; nem mesmo na pequena sala de visitas os pequenos se escondiam. Mas, ora essa, não era possível não haver ninguém em casa. Um trovão forte sobressaltou-o e, após parar alguns segundos, colocar o coração de volta onde deveria estar, riu para si mesmo e voltou a chamar pela esposa.

Mas não obteve resposta novamente.

Era mesmo algo muito estranho que, naquelas circunstâncias, pensando principalmente o tipo de problema que a tempestade causava – e a iluminação na sala de estar e na cozinha, as velas e lareiras ligadas, lampiões a gás trabalhando e algumas lâmpadas acesas nos corredores e à entrada das salas, enfim, completa iluminação –, percebeu-se solitário na casa, pois ninguém respondia ao chamado.

Na cozinha, nada era preparado. Ele serviu-se de alguns biscoitos secos e um copo de leite, antes de subir para procurá-los. Se não respondiam ao chamado e estavam em casa, o jantar não estava pronto e a figura paterna – recém-saída de um estabelecimento frequentado por pessoas de índole duvidosa – não era atendida, bem, não se importava mesmo com eles. O estômago roncou fundo. O homem tirou algumas notas molhadas dos bolsos e as estendeu sobre a mesa tosca na cozinha, colocou moedas sobre ela e terminou de engolir. Busca, busca; retomar a busca.

Voltou para a sala de estar e subiu as escadas para o segundo andar, onde estavam os quartos e onde, ora essa, mas vejam só, estava uma luz acesa no quarto das crianças. Não era possível escutar muito bem daquele cômodo, no fundo do corredor, se não chamasse da escada; estava explicado, então, mas não justificava a displicência com a figura paterna. Ele poderia mesmo ter ficado durante mais algumas horas no bar, poderia ter engolido mais alguns mililitros e poderia estar, agora, muito mais vacilante – e feliz – do que realmente estava, mas a bebedeira não se concretizou sob a visão reprovadora da esposa. Ah, quantos arrependimentos, quantos arrependimentos!

No quarto, a luz acesa; em sua mente, muito pouco da leveza característica do inebriar selvagem e delicioso. Sentia tanto por si mesmo; já nem podia sentir bem o frio causado pelas roupas molhadas ou o desconforto.

Ele entrou no quarto das crianças. Seus pés paralisaram à porta.

Os olhos arregalados em horror espreitaram a cena ali dentro; o corpo de pé fincou raízes no chão, assim como os pés das crianças e da mãe se fundiam à madeira, confundindo o que era carne e o que era matéria vegetal morta; que outrora fora uma árvore, mas, agora, sustentava o peso de três membros familiares inertes como corpos em decomposição, flutuando em águas, fundindo-se ao chão onde estavam caídos.

As bocas escancaradas e o som, ah, que som mais terrível! O som de engasgos misturados às tentativas suplicantes de emitir mensagens, mesmo gritos, e respirar. Os três formavam um círculo dentro do qual uma figura horrenda permanecia de pé. Os cabelos dançavam no ar como vivos, víboras dançantes, com leve influência sedutora, entrando nas bocas escancaradas da esposa, do filho e da pequena menina que há pouco completara o décimo aniversário. Os cabelos desciam por suas gargantas, os olhos reviravam e os corpos tremiam, mudando as expressões em delírio, enquanto a besta entre eles respirava fundo e deleitava-se cruelmente com a dilaceração dos membros familiares. A besta levantou os olhos para o Homem e gargalhou, estendendo as mãos asquerosas em sua direção, os dedos flexionando convidativamente, enquanto esperava-o decidir-se.

Enquanto corria para fora de casa, ganhava a rua, descia rapidamente sob a torrente sem fim, o dilúvio bíblico apocalíptico, em sua mente, escutava o ressoar do riso desdenhoso da criatura, do som de engasgo acompanhando o som tão cruel e o olhar vibrante, rubro, da besta.

Ele correu sob a chuva. Ele correu sob a chuva. Ele correu sob a chuva.

 

EXCERTO DE NOTÍCIA VINCULADA EM 30 DE DEZEMBRO DE 19–; Condado de H–;

… o homem, de idade desconhecida, afirmou que o ataque fora causado por um ser demoníaco. Ele está detido em custódia, mas segue afirmando não ter qualquer envolvimento com o estranho caso de desaparecimento de membros da própria família. Este é mais um relato que se soma aos outros noticiados em semanas anteriores.

As investigações seguem acontecendo. Qualquer informação… etc, etc, etc.

 

EXCERTO DE NOTÍCIA PUBLICADA EM 30 DE DEZEMBRO DE 19--; em L--;

a mulher foi socorrida pela polícia e foi levada para um sanatório, próximo a M*. Sua pele havia sido maltratada por uma sequência incompreensível de ataques de animais e, após o desaparecimento, suspeitava—se de um caso grave de problema psicológico. Não sabe-se bem de maiores detalhes, mas moradores locais que foram entrevistados por nosso jornal afirmam que a mulher estava gritando e não compreendia qualquer palavra que lhes diziam. Ao aproximarem-se dela, afirmou uma moradora local, R. estava gritando como se estivesse vendo uma criatura medonha. Ela estendia a mão e dizia para afastar-se dela, que não era culpa dela e que não haveria como ajudar mais, ela já fizera o que podia. Colocou a mão na boca e manteve fechada, com os dentes cerrados, o tempo todo. Estava completamente louca, a pobre R. Acredito que estava tendo problemas familiares, pois o pai a detestava e batia em seus irmãos mais jovens, etc, etc, etc.

 

EXCERTO DE NOTÍCIA VINCULADA EM 01 DE JANEIRO DE 19--; em W--;

Em trecho da carta, a vítima contava:

Acredito que alguém está me perseguindo, mas ainda não tenho tanta certeza. Tenho me questionado se não poderia ser fruto de minha imaginação, mas havia uma mulher olhando pela minha janela, ela olhava para minha cama. Por duas vezes, a vi quando voltei-me para trás, enquanto caminhava na rua, mas, sabe, minha mais querida, minha querida, ela estava lá! Ela estava lá! Olhando para mim, esperando por mim, com a boca escancarada e esperando… eu sei que estava esperando, mas não sei o que poderia esperar. Ela queria algo de mim, minha irmã. Ela queria algo de mim! Quando olhei para trás, após alguns passos, tentando escapar, ela não estava mais ali. Ela havia desaparecido! Quem era? Preciso voltar para casa o quanto antes, não quero mais ficar aqui, mas acho que não posso voltar ainda, etc, etc, etc.

Dois dias depois, ela foi encontrada, sufocada, num beco após a tempestade. Todos acreditam que afogou-se na lama densa e empoçada, após cair e desmaiar. Acreditam-se que a morte ocorreu entre duas e três da manhã e ninguém sabe qual poderia ser o motivo de estar na rua a essa hora, etc, etc, etc.

 

Foi num dia ensolarado, após escrever durante cerca de duas horas algumas páginas – e seus óculos estavam terríveis, o que significa que aquele longo exercício de trabalho foi mesmo um milagre –, quando o carteiro entregou autorização dos editores, aprovando a nova série de Odenni. Em meio aos envelopes abertos, encontrou um outro envelope, ainda selado, no qual a assinatura muito elegante de uma mulher lia Miléia O–; era uma carta em papel muito barato e, ainda que tivesse considerável volume, a carta era muito maior do que o imaginado por Odenni, pois o papel fora aproveitado da melhor maneira possível: em quatro folhas largas e compridas, os papéis foram dobrados em quatro e todo o espaço aproveitado. As folhas foram preenchidas frente e verso, depois, o remetente virou a folha de cabeça para baixo e, entre as linhas já escritas, preencheu os espaços possíveis, com mais linhas longas de descrição de eventos. Ao lado das páginas, no entanto, uma marca de margem estava desenhada e, listados entre ela, de cabeça para cima e cabeça para baixo, uma sequência de números, indicando as páginas correspondentes e os volumes aos quais aquelas páginas se referiam. Havia ainda duas fotografias.

Odenni leu cada uma das palavras. Após alguns segundos pensando consigo mesma, atirou tudo nas chamas da lareira e decidiu que, se pudesse, impediria a possibilidade reedição do livro.

Seguem fragmentos mais importantes da carta destruída por Odenni, aqui ofertados pois uma única cópia manuscrita, foi enviada pela própria remetente também aos editores; quanto as fotografias, no entanto, foi impossível recuperar uma cópia das originais e, portanto, imagino que perderam-se para sempre. O perigo reside nas linhas menos prováveis, nas ideias aparentemente mais inofensivas e nas verdades, aparentemente mais verdejantes.

Minha cara,

“Não sei como começar esta carta e, na verdade, questionei-me quanto a enviá-la ou não, pois é um fato comprovado que, após os casos ocorridos e noticiados por todo país, é claro para mim e, imagino, para você, que algumas coisas não deveriam ser jamais tocadas. No entanto, pensando que o inicio do processo já se deu, é mais aconselhável que nós impeçamos que continue a se propagar enquanto ainda há tempo. Esta carta existe apenas para isso: impedir a propagação de um malefício. Não sabia se você acreditaria em mim, mas anexei duas fotografias para comprovar o que escrevo nas linhas a seguir; mesmo assim, não tenho certeza se você irá ou não acreditar no que tenho escrito e imagino que todas as possibilidades residem agora em suas mãos. Minha parte foi feita.

“Eu comecei a ler o seu livro, minha cara. Mas saiba, e preste bastante atenção no que eu digo, nunca eu concluirei esta leitura; meu motivo está nas páginas que seguem e no relato que proponho a você neste momento. Quase todos os fatos centais em seu romance estão corretos, pois eu estava lá e posso assegurar que, com exceção de algumas coisas específicas, como os ataques a Jëz, tudo aconteceu exatamente como ela descreveu. Preciso apenas de algumas ressalvas.

“A melhor maneira de tornar a mentira algo semelhante à realidade, é atendo-se aos fatos quase exatamente como aconteceram; as variações, no entanto, entre o verdadeiro e o falso, entre o fato e a ficção, pode ser sutil de tal maneira que é imperceptível saber onde começa um e termina o outro e eu, eu mesma, agora, com folhas na mão e escrevendo o mais depressa possível, estou cuidando muito bem para que as minhas próprias memórias não se misturem às mentiras e minha confusão não seja muito grande. Não seja tão grande.

“Você nunca se questionou a respeito do aparente amplo conhecimento de Jëz, pouco condizente com uma mulher em sua condição?

“Ela veio até nós, é verdade, após a necessidade de recebermos uma nova governanta de confiança, mas a demissão da anterior não se deu exatamente como ela descreveu. Na verdade, não se deu de maneira alguma, pois a moça que a precedeu não foi despedida ou pediu demissão – e a descrição feita por ela é mesmo muito real, eu mesma a fiz e algumas outras pessoas estavam no momento, quando primeiro ela soube a respeito da antiga governanta. Oh, não, não. Ela não foi demitida.

“Nós sempre nos levantamos bem cedo pela manhã e, naquele dia, uma tempestade estranha estava iniciando ao longe e nos alcançou tão rapidamente que não foi possível solucionar quase tudo o que precisávamos resolver todos os dias; com o cair da noite, nos recolhemos muito cedo, ao som de trovões e quedas de firmamentos. Uma noite muito, muito tenebrosa. Gélida como um defunto. Uma árvore caiu durante a madrugada, uma árvore antiga e muito frondosa, próxima ao lago que você já conhece, e afundou, em parte, e nos despertando com o estrondo e o grande tremor. Uma coisa surpreendente! Nos levantamos rapidamente e corremos para fora dos quartos, subimos escadas e fomos às janelas, apenas para ver a árvore afundando nas águas escuras do lago. Havia uma beleza ali, uma beleza estranha, mas, definitivamente, uma beleza. Foi apenas alguns minutos depois do estrondo, quando percebemos que a governanta não estava entre nós, que subimos para o quarto e, após bater, bater e bater, entramos lentamente, chamando-a pelo nome.

“Qual não foi a surpresa tenebrosa, quando a encontramos sobre a cama, com a boca escancarada e o mais terrível aspecto, como uma carranca, desenhado em sua face? Nos retiramos imediatamente dos aposentos dela e, com a chegada da manhã, chamamos um médico que atestou sua morte devido a um grande susto na madrugada – imediatamente associado à queda da frondosa árvore. Mas havia algo ali que nos inquietava, principalmente quando pensávamos em tudo o que já acontecera na casa, em tudo o que ainda poderia acontecer.

“Suas mãos estavam contorcidas, como se tivesse lutado contra si mesma durante o ataque que a fulminou. A boca escancarada – e disso me lembrei tão rápido, ah, não imagina quão rápido – e o fedor. O quarto fedia. Fedia como nunca em toda minha vida senti um ambiente feder; um odor pestilento e não condizente com o tempo de morte da mulher, mesmo o rigor mortis já espalhado pelo corpo não condizia com o seu tempo de morte. Mas ficou por isso mesmo, como essas coisas costumas ficar. Duas semanas depois, Jëz foi recebida por nós com grande satisfação e alívio…”

“… deixe-me falar um pouco sobre Umpa. Não saberia dizer se algum dia Jëz lhe contou algo sobre isso, mas Umpa, quando desapareceu, estava grávida em seu sexto mês de gestação. Era sua segunda gestação, pois a primeira fora perdida quase um ano antes de descobrir a segunda e Umpa parecia muito contente para todos nós, mas após a chegada de Jëz começou a afirmar que escutava, todas as madrugadas, choros de crianças e tinha certeza de que seu filho natimorto estava chorando. A primeira criança, de fato, chegou vir ao mundo, mas tinha um dos mais desagradáveis aspectos que já vi num bebê. Era magro, muito magro, a pele cinzenta e quando chegou para nós já não respirava. Dizem que ela carregou o bebê morto por algum tempo, mas ninguém contou-lhe nada a respeito; para Umpa, ele morreu após o nascimento.

“Fiquei muito surpresa quando minha amiga – era mesmo minha amiga!, esta é mais uma verdade – tomou grande interesse por Umpa e passou a cuidar-lhe de uma maneira que quase parecia ser ela mesma a mãe daquela criança.

“Com o desaparecimento de Umpa e o desaparecimento de seu marido, e um pouco após o primeiro ataque descrito em seu livro, como também foi descrito por Jëz a nós, as coisas tornaram-se um pouco piores…”

“… a partir daí, tudo o que Jëz descreveu foi verdade e exatamente como aconteceu, mas ela deixou de fora um acontecimento específico que, tão logo eu puder relatá-lo, ficará claro o motivo de ser ignorado. Isso não foi visto por mim, mas por uma menina muito jovem, que, pouco depois, veio a mim e relatou não apenas o que vira, mas as consequências que levaram-na a soltar a língua. Eu saberia dizer o motivo por quê ela veio até mim? Não, não posso afirmar, mas sei que alguma coisa a direcionou a isso.

“Eu, no lugar dela, nunca teria confiado na amiga de Jëz, mas não sei como funcionava a cabeça dessa jovem.

“Pois saiba que ela vei até mim numa manhã, enquanto eu mexia panelas com toda a força que meus braços dispunham e experimentava salgar os pratos. Parou ao meu lado e ficou me olhando durante alguns minutos. Então perguntei-lhe qual era o problema. Ela vacilou, mas falou:

“Algo está acontecendo, vi Jez conversando com a senhora ontem e ela perguntava sobre um bebê. Jez disse que a menina não estava mais lá e não podia ter bebês. Ela não aguentou.

“É óbvio que isso não quis me dizer muita coisa naquele momento, como você pode imaginar, com gotas de suor escorrendo em minha testa, meus braços cansados e ainda bastante arfante. Eu continuei olhando para ela por alguns segundos, esperando que dissesse algo, mas quando percebi que não o faria voltei a perguntar qual era o problema, eu não havia entendido nada e ela precisava ser muito mais clara se quisesse contar o que estava acontecendo ali.

“Ela olhou para os lados, vacilante, e contou-me o seguinte: ela entrou em um pequeno quarto, às escondidas, com um bom bocado de queijo roubado da cozinha e começou a roer o pedacinho como um pequeno rato, quando escutou que alguém estava chegando. Ela correu para uma peça e enfiou-se ali dentro, apertando-se o quanto pôde, fechou a portinha e ficou no escuro, segurando a prova do crime e pedindo que ninguém a encontrasse ali com um bocado de queijo nas mãos. Os passos aproximaram-se e alguém chaveou a porta da sala. Eram duas pessoas. Jëz e a Senhora começaram a conversar baixinho, enquanto a menina, escondida na peça, tremia com os olhos fechados e as orelhas atentas para o momento quando poderia escapulir para fora e terminar de aproveitar os espólios da aventura: um resto de queijo e pernas trêmulas.

“Elas conversavam sobre um bebê. Algum bebê que estava para nascer, mas não sabiam exatamente quando; o problema é que para gerar este bebê, o corpo parecia precisar de uma força descomunal, muito maior que a força imaginada por elas e, ao perceberem com o nascimento falho da criança de Umpa, as coisas começaram a dar muito errado.

“Ela seguiu me contando o que havia escutado, mas, naquela época, nenhuma das palavras tinha muito sentido; a única coisa que me inquietava era a menção à Umpa e à criança. Eu pensei como era impossível que Jëz conhecesse de fato o bebê natimorto, mas as palavras da menina me pareciam precisas demais. Percebi-me, então, bastante inquieta e as palavras da menina continuavam girando em minha mente, em voltas e voltas. Sua existência apenas voltou a me chamar atenção quando percebi o quanto estava chorando. Ela contou-me que, naquela noite, escutara um som estranho quando estava deitada na própria cama e, ao abrir os olhos, viu flutuando sobre si, pendurada do teto por teias escuras como fios de cabelos, a mais horrenda criatura que já vira na vida. ‘Eu senti, bem aqui,’ ela me contou, e colocou a mão na garganta, ‘senti os fios apertando, o ar começou a faltar e eu não podia respirar. Era uma mulher terrível; ela estendeu um dos dedos longos e finos e encostou-o em frente a um único lábio. Miléia, aquilo tinha apenas um dos lábios, apenas um! Ela se afastou devagar, subindo até o teto e desapareceu num mar serpenteante de fios de cabelo, que depois desapareceram, pareciam entrar no teto. Eu permaneci paralisada por tanto tempo que não sei quanto exatamente se passou. Quando consegui me mexer, corri para fora do quarto e encontrei-me com Jëz, sentada com um pequeno caderno de capa de couro e lendo as páginas em voz alta. Eu corri até ela, chorando e joguei-me aos seus pés, tremendo, Miléia! Tremendo! Sabe o que ela fez? Voltou-se em minha direção, completamente impassível, encostou o dedo indicador em frente ao lábio, arregalou os olhos e sorriu por trás do dedo em riste. Ela se levantou e trancou-se no quarto.’ A menina tremia tanto! Não sabia o que poderia dizer e não sabia como acreditar naquelas palavras que, em primeiro momento, pareciam para mim uma torrente de mentiras, mas logo uma leve sombra de compreensão tomou-me e percebi que algumas coisas, talvez, não estivessem acontecendo como imaginávamos.

“Lembrei-me então da noite em que Jëz empurrou a porta do quarto em desespero, lembrei-me da história da criatura no teto e lembrei-me, então, de uma menção a isso feita por ela. Eu nunca tinha escutado nada assim antes, nenhum de nós havia. É claro, a casa era muito estranha, mas nunca contamos a ela qualquer história, como ela fez em seu livro, sobre demônios e espíritos atormentadores. Esta foi a segunda vez que eu escutei tal descrição e a primeira veio da própria Jëz…”

 

A partir daqui até a conclusão, algumas palavras estão ilegíveis ou não acrescentam eventos essenciais para seguir em frente com os trechos escritos por Miléia. Os eventos subsequentes não são tão interessantes quanto o que já foi apresentado, portanto, priva-se de acrescentar novos detalhes.

Quanto às duas fotografias, sabe-se que uma primeira mostrava uma mulher sentada numa cadeira, muito elegante e bem-vestida, com traços de imponência, carregando um pequeno caderno de notas e portando um colar com uma pesada pedra no centro. A segunda fotografia, no entanto, mostrava um grupo de pessoas de pé, em frente a uma mansão. Entre elas, foi muito fácil para Odenni distinguir a mesma mulher, vestindo roupas muito mais simples e sorrindo, mas ainda portando o pequeno caderno, agarrado à palma de sua mão por dedos possessivos. Odenni registrou algo sobre isso em seus diários, mas, como dito antes, destruiu as duas fotografias.

 

EXCERTO DE NOTÍCIA PUBLICADA EM 05 DE MAIO DE 19--; em L--;

 

HOMEM É DETIDO APÓS TENTATIVA DE INVASÃO A CONVENTO

Um homem perceptivelmente perturbado e que não teve sua identidade revelada, invadiu ontem o Convento das * e seguiu furtivamente sem ser visto até a ala de repouso das moças recebidas pelas Irmãs da Caridade para um parto tranquilo. O homem foi visto apenas ao passar pela porta que dá acesso à sala dos recém-nascidos e tentar roubar uma menina nascida havia apenas poucas semanas. Uma das Irmãs da Caridade, percebendo a presença do invasor, tratou de chamar imediatamente as autoridades. Ele foi encontrado, minutos depois, no exato lugar onde estivera antes: sentado no chão e olhando fixamente para o bebê em seus braços.

“Ele disse que ela tinha os cabelos mais lindos, enquanto passava o indicador na nuca pelada da menina,” disse uma das Irmãs, “eu estava extremamente amedrontada. A polícia demorou a chegar.”

As autoridades afirmam que o homem, com claros problemas de percepção sensorial, não ofereceu resistência até perceber-se do lado de fora e sendo colocado no carro que o levaria até a delegacia mais próxima para interrogatório.

Um senhor que passava por perto naquele momento afirmou: “Ele estava muito agitado quando se percebeu do lado de fora e começou a gritar que precisava voltar para dentro da mansão, pois o bebê dele estava ali dentro. A esposa sumiu e a filha era tudo o que ele tinha.”

O homem foi levado e voltaremos a trazer notícias etc. etc. etc.”

 

 

EXCERTO DE NOTÍCIA PUBLICADA EM JORNAL SENSACIONALISTA EM 15 DE ABRIL DE 19--; em P--

 

POSSUÍDA PELO DIABO?! - IDOSA COMETE SUICÍDIO E DEIXA CARTA EM LÍNGUA ESTRANHA

Uma senhora idosa foi encontrada morta, enforcada, dentro da cela onde ficava em asilo. A velhaca havia, há pouco, oferecido entrevistas sigilosas a uma famosa escritora que publica romances de horror e envolveu-se em polêmica recente. Dá pra imaginar?!

“Ela estava agindo estranho e, nos últimos dias, esteve muito afeita a escrever muitos textos em línguas estranhas, que ficaram espalhados em seu quarto. Ela falava muito em línguas que ninguém compreendia e disse por duas ou três vezes ‘Ela está aqui e é o suficiente!’”.

A mulher, provavelmente, estava invocando forças malignas e etc. etc. etc.

 

Cinco meses após ser retirado das lojas, o livro de Odenni Lotm retornou às prateleiras e às vitrines. Após uma breve conversa com seu editor – que se provou infrutífera – e pedidos da autora de que não voltassem a colocar nenhum volume de seu romance nas lojas, o livro voltou a ser vendido, como se nunca tivessem recebido qualquer carta e como se todos os eventos estranhos não passassem de uma situação isolada e que não deveria ser pensada como possibilidade real de problema.

Dois meses após as vendas reiniciarem, nenhum caso terrível, como os narrados na carta e que pareciam muito similares aos narrados nas páginas de Odenni e na história contada por Jëz, voltou a acontecer.

“Com eu havia lhe dito,” afirmou, então, o editor. “Era apenas um caso isolado e tenho certeza de que podemos associá-lo ao puro medo de seus leitores. Você é mesmo uma escritora fenomenal.”

De fato, nada voltou a acontecer e a vida literária de Odenni seguiu em frente como se nada jamais tivesse acontecido.

Odenni nunca soube da morte de Jëz, pois isso não importava para ela. Também nunca ouviu falar sobre o caso do bebê; se algum dia escutou qualquer coisa sobre o assunto, aquilo não lhe disse muito.

Odenni morreu muitos anos após, em meados do século XX, esquecida completamente de que a história jamais partira dela, e sim, de uma mulher desconhecida, sobre quem nunca ouviu falar.


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Notas finais do capítulo

E aí, gostaram? Parece que nem tudo é exatamente como imaginamos, não é mesmo?
Vocês já haviam percebido algo ou, talvez, não estivesse nem um pouco na cara? Me conta e a gente bate um papo, que tal?

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Agradeço muito a todos que me acompanharam até aqui.
Acredito que essa primeira história concluída tem valor experimental muito grande.
Muito obrigado mesmo. E até a próxima...

... talvez. :)



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