Eu Prometo Contar Tudo Exatamente como Aconteceu escrita por OITO


Capítulo 3
CAPÍTulo 3


Notas iniciais do capítulo

Aqui está o capítulo três. Tão atrasado que tá vindo acompanhado!
Espero que gostem! :DDD



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Era um grupo de quinze pessoas e todos estavam muito bem acomodados em quartos próprios quando eu parti da mansão; era uma manhã cinzenta, o começo de um domingo de igreja. Deixei-os para trás, deixei tudo para trás, quando o mundo derreteu e eu era apenas uma sombra, os dias se multiplicavam a minha volta enquanto eu perdia minha leitura de mim mesma e refazia numa nova perspectiva, uma nova percepção do eu, mediada por pílulas, imersão em água escaldante e prisão em celas solitárias. Minha mente fugiu de mim e eu fugi do mundo; tudo se desfez e eu enlouqueci. Fui levada por quase cinco anos para uma clínica, onde sofri os mais terríveis casos de ataque ao corpo e à integridade humana, mas nenhum desses problemas foi terrível como o que eu sofri na semana que seguiu a chegada dos patrões e do que eu vi naquela casa, o que me levou a fugir como se minha vida dependesse apenas da fuga e de me manter afastada. A antiga governanta tinha razão. Era terrível.

Não sei se aquilo me seguiu; poderia ser uma reprodução de minha mente aterrorizada, mas poderia ser uma tentativa constante de me fazer voltar; creio que aquilo me queria de volta. Não daria chances de me arrastar de volta para aquele lugar; sabe, minha filha, eu sempre escutei histórias de pessoas que enfrentaram seus medos e curaram-se do horror contido na mente e que se entremeia para fora, invadindo o mundo e dissolvendo ao redor, como uma doença consumindo a alma. Mas eu nunca, não importa o que possa vir disso, eu nunca voltaria àquela casa. Não importa o que seja aquilo, ainda me espera lá. Quando escapei, ah, nada foi como antes, o mundo perdeu as cores de outrora e eu estava, aos poucos, percebendo algumas impossibilidades da vida. Eu havia me transformado, eu precisava mudar e me salvar de uma danação futura.

Quer saber então o que aconteceu? Eu direi. Vamos aos poucos. Os últimos dias costumam se misturar aos primeiros dias no hospício; eu olhava para os cantos e lá estava aquela criatura, tremendo, rindo, gemendo, uivando para a noite como uma fera demoníaca. Certa vez, abri meus olhos à noite e, como na salinha, quando fui perseguida por Umpa – a desaparecida Umpa, pois ninguém voltou a vê-la –, ela estava agarrada ao teto, mas as ramificações, os cabelos, não estavam lá. Apenas ela. Sempre pensei que era ela; tremendo e gritando, voltada em minha direção e insinuando-se em lascívia. Comecei a gritar e, rapidamente, em pouquíssimos segundos, os homens entraram no quarto e me prenderam contra a cama. Todo o corredor gritava, todos os loucos, todas as celas, um pandemônio. Era o eco dos corredores do inferno, fervendo em seu deserto vermelho de fumaça e chamas.

E a coisa no teto.

Quando os convidados chegaram, eram, todos, pessoas com mais de quarenta anos; alguns idosos. Acredito que nenhum deles tinha menos de quarenta e cinco anos e o mais velho tinha seus setenta anos. Ricos, riquíssimos. Todos eles. Não tinham parentesco; parecia um grupo de amigos e conhecidos. As mulheres e os homens conversavam com sobriedade, com imponência e elegância; cumprimentando cada um de nós, os empregados.

O porte refinado me trazia lembranças de personagens em romances antigos, sobre pessoas muito ricas, mais ricas que eu jamais imaginaria. Reis e rainhas de contos de fadas. Se me esforçasse um pouco, acreditaria facilmente que eles transformavam palha em ouro.

Vi, mais uma vez, os contratantes, os donos da mansão. Eles se misturavam aos outros e não havia diferença nenhuma entre os donos e os novos inquilinos. Poderiam ser parte do mesmo grupo de amigos, familiares, esposas e maridos. Eles entraram na mansão e foram apresentados aos aposentos, aos pares. Apenas alguns homens e mulheres dividiram os quartos. A casa estava lotada; a comitiva parecia ser formada por vinte ou trinta pessoas, o que aumentou nosso trabalho consideravelmente e ninguém esperava que fossem tantos, tantos pratos a servir e tantos quartos para cuidar. Nunca tiveram tantos inquilinos. Mas demos um jeito; arrumamos os quartos e arrumamos as mesas.

Apenas dois dias após a chegada, minha Senhora veio até mim e disse:

“Jëz, venha, venha comigo. Não diga nada; chame duas meninas a sua escolha e venham comigo. Precisamos limpar a Sala de Conferências.”

O caminho para a sala era o mesmo que levava até meu quarto. A Sala de Conferência, no entanto, estava a algumas portas de distância; era preciso abrir uma porta a chave e descer algumas escadarias para um lugar que muito se assemelhava ao porão de uma casa, mas sabíamos haver uma segunda estrutura usada como porão. Na verdade, se pensar bem, o lugar parecia muito mais um tipo de calabouço oculto, atrás de uma portinha quase imperceptível para os olhos de visitantes.

A sala lá embaixo, conhecida como Sala de Conferências – por duas vezes, vi um dos convidados chamar de Sala dos Espíritos –, estava sempre trancada à chave e era terminantemente proibido a nós entrar lá; nenhum dos outros empregados tinham vontade de entrar na pequena sala onde aconteciam as sessões, de todo modo. Nós fomos; levamos baldes de madeira, sabão e vassouras. Minha senhora nos acompanhou; girou a chave e empurrou a porta pesada. Lá dentro havia apenas uma grande mesa redonda, com diversas cadeiras dispostas em redor. Algumas peças mobiliavam a sala, mas era muito pequena e abarrotada. Não me parecia habitável; apenas uma salinha onde conversavam. As meninas estavam acuadas.

“Limpem tudo, sim?” pediu ela, puxando uma das cadeiras e sentando-se. O vestido pesado ao redor do corpo lembrava uma fortaleza. “Limpem tudo, enquanto eu espero. Lerei. Acredito que cerca de uma hora será o suficiente. Obrigada.” Ela inspecionou rapidamente um relógio de bolso.

Começamos a trabalhar e eu mesma auxiliei na limpeza, o que dificilmente fazia. Polimos as peças e limpamos a poeira; tiramos alguns viscos translúcidos de sobre as cômodas e retiramos o pó da estante de livros, onde se guardava uma grande coleção de capas escuras. A estante foi polida com óleos para hidratar a madeira, assim como os volumes em couro passaram por uma cuidadosa limpeza e hidratação. Eu não sabia, até minha ida a essa casa, que o couro usado nas capas de livros precisava ser hidratado. Nenhum dos volumes era titulado e nós não abrimos um único deles; não sentia vontade, qualquer vontade. Coloquei-os de volta tão logo os peguei.

Assim que terminamos o trabalho, saímos pela porta da frente e a mulher, saindo por último, passou a chave na porta e encaminhou-se instruindo-nos a segui-la. Eu não pensei muito na sala; era apenas um domínio além de minha zona de alcance e, para falar a verdade, nunca dei muita atenção às portas chaveadas. Todos os cômodos fora de meu alcance nunca me inspiraram grande curiosidade; como eu disse antes, minha querida, eram muitos, muitos quartos. A tentativa de conhecer cada um deles minimamente seria uma loucura e um excesso com o qual não estava muito desejosa de me envolver. Eu aceitei a restrição, assim como aceitei muitas outras coisas em minha vida.

A vida é complexa demais para insistir em bobagens como essa; apenas nos fazemos transpor barreiras assim quando se mostra algo estritamente necessário e foi, no final das contas, exatamente o que aconteceu a mim. Não precisava dizer isso; a sala já dizia muito por si mesma e se eu tentasse lhe incutir um mistério inexistente nesse momento, bem, eu seria estúpida e estaria me enganando, pensando enganar a você. Sou velha, não estúpida; na verdade, minha idade traz algumas experiências que ajudam-me a ser consideravelmente mais sábia que você; quando chegar à minha idade aprenderá este pequeno segredo. O erro sempre revolve dentro de nós e por isso, apenas por isso, aprendemos com eles. É lembrando-os sempre e a todo momento que o erro se torna uma riqueza. Não sei se já te disse isso, mas é sempre bom insistir nessa ideia.

Naquela noite, servimos o jantar e, se bem me recordo, tudo correu muito bem. Algumas das pessoas eram mais sérias; tinham humor mais autocentrado e não costumavam conversar. Acredito que dois ou três daqueles homens ficaram em silêncio durante todo o jantar, enquanto os outros conversavam. Uma mulher apenas permaneceu em silêncio. A dona da casa.

Havia mais homens que mulheres; quase todos eles conversavam entre si. Não posso afirmar quanto tempo este breve jantar durou, mas ao finalmente me retirar, quando a cozinha já estava arrumada e todos os empregados finalmente dispensados, caminhei pelo corredor até o meu quarto acompanhada de Miléia, uma das últimas a se retirar. Desde o incidente noturno que me causou tanto horror, minha amiga passou a acompanhar-me para cima e para baixo, sempre que eu pedia – e isso acontecia com frequência.

Conversei mais uma ou duas vezes sobre aquela noite.

Uma delas, poucos dias depois, aconteceu com a cozinheira, que encontrou-me caminhando em direção à cozinha e interceptou-me para a dispensa. Nós duas nos entreolhamos, enquanto eu descia até lá, e, com um gesto muito exagerado, levou a mão à testa e exclamou, se maldizendo:

“Ah, que burra eu sou! Querida, me ajude um momento, sim? Eu deveria ter trazido alguém comigo, mas parece que o saco pequeno de cebolas está acabando lá na cozinha e preciso levar. Preciso, além disso, de um pouco de leite e foi isso o que vim buscar, de modo que, como percebe, não posso levar os dois comigo. Poderia me ajudar?”

Lá dentro, Miléia olhava para trás; estava lá, também, um rapagote sentado à mesa e comendo timidamente de um potinho de aveia, um pouco pálido, e bebendo de uma caneca de alumínio com água. Eu acompanhei a cozinheira até a dispensa e, tão logo entramos, ela esperou à porta, enquanto eu me mexia para pegar o leite. Ela não se moveu.

“Ouça,” disse ela, e voltei-me em sua direção segurando uma jarra, “ouça-me bem. Devo falar uma última vez e não voltarei a repetir. Eu sei que não devo, mas preciso falar. Não pense mais naquilo, não fale mais sobre aquilo. Imagino que seja difícil e, talvez, tenha algo de quase impossível, mas encontre força em você para manter a mente distante do assunto o quanto puder, ou não teremos paz, está me entendendo? Nem você, nem nós. E, aparentemente, as coisas são piores com você, o que é ainda mais um motivo para não insistir,” ela levou a mão à testa e limpou uma camada de suor, era o desespero escorrendo sobre a pele, “me escute, me escute, não insista, não volte a falar sobre o assunto. Lembre-se do que falei naquela noite. Não voltarei a falar, compreende?”

Eu balancei a cabeça afirmativamente e ela aquiesceu.

“Ótimo. Sabe, as coisas são complicadas, são definitivamente horrendas. Mas tornam-se piores se a ajudarmos. Se eu puder dificultar o caminho para o problema, eu o farei. Compreende?”

Eu balancei a cabeça novamente. Ela carregou um pequeno saco com cebolas, colocando-o sobre o ombro.

“Sabe, minha filha,” ela estava prestes a sair da despensa, quando parou um instante e, em seu silêncio, parecia observar os caminhos dentro de si mesma, buscando a melhor maneira de expressar exatamente o que queria. Lembro-me disso pois as palavras me ficaram gravadas e é muito fácil lembrar-se de algo assim. Eu arrastei comigo o que ela disse naquele dia até o hospício e foi a única coisa que me manteve apegada ao resquício de minha sanidade, até que pude recuperá-la por completo, “minha filha, há todo o tipo de mal no mundo. Existem algumas manifestações que exigem o nosso encontro direto; se não fizermos isso, o mundo será tomado completamente por esse mal.

“Ele está lá para nos testar e para engolir a coragem. Ou a impusemos sobre isso ou nos deixamos destruir. Existem, no entanto, algumas manifestações dessa maldade que precisa de nossa atenção e precisa que nós, enquanto detentores de algumas sensibilidades relacionadas à cabeça, pessoas que pensam e que estão em contato direto com Deus, precisa que nós a reafirmemos. Se fizermos isso, aos poucos, sua força cresce e se revigora. Seja lá o que for, seja lá onde estiver, ela volta. Ela volta e olha para nós. Quando olhamos diretamente para a escuridão, às vezes, ela olha de volta para nós. Se insistimos em olhar para ela, diretamente para ela, é a reafirmação de sua existência, de sua consciência. Ela só existe pois deixamos que exista. Ou a matamos, não reafirmando o seu poder, ou deixamos que se entrelace em nós e naqueles que nos rodeiam como um parasita. Deixe que se vá, não fale, não olhe, deixe lá. O tempo cuidará do resto.”

Ela se retirou da sala sem olhar para trás, caminhando apressadamente e sem voltar a me dizer sequer uma palavra. Eu aceitei o que me disse e tentei misturar os pensamentos que me invadiam, insinuantes, sobre aquela noite, com impulsos de orações fortes; eu escrevia múltiplas cartas de prece e confeccionava as mais belas orações ao divino que poderia sair de uma pessoa como eu. Me refugiava sob o grande salgueiro próximo à construção e conversava comigo mesma, escrevia mais algumas linhas e sempre insistia em dizer a mim mesma que havia uma força em mim que negava todo resto.

A segunda vez que falei sobre o assunto foi, mais uma vez, com Miléia. Nós estávamos em nossos aposentos, quando ela perguntou-me se voltara a ver alguma coisa. Disse-lhe que nada; ela, no entanto, contou-me a própria experiência, a qual havia relacionado, de alguma maneira, ao caso que eu mesma sofrera.

Contou-me que estava caminhando para cima, incumbida de servir a sopa de beterrabas na noite quando todos chegaram. Ela nunca tinha visto sequer uma daquelas pessoas antes, como poderia?, ela conhecia apenas a criadagem. No entanto, seus olhos caíram sobre um dos homens sentados à mesa.

Ela o serviu e serviu a todos os outros; colocou a sopeira sobre o descanso ali perto e encostou-se à parede, esperando que novas ordens fossem lhe dadas. Naquele dia, como disse, não estávamos esperando tantas pessoas e, por isso, colocamos uma das meninas da cozinha para servir a mesa. Não era algo muito usual, mas Miléia soube se portar muito bem. Todos observamos seus gestos lhe congratulamos depois; mesmo a cozinheira lhe ofereceu uma pequena recompensa: três pêssegos bem maduros e, se o perfume condizia com o sabor, deliciosos.

No entanto, ela veio até mim, posteriormente e segredou:

“Pois saiba que eu estava ali e, sem saber o motivo, fui tomada por uma fúria intensa. Minha vontade era empurrar um deles sobre o chão, atirar a sopeira sobre um dos homens, e urrar contra ele impropérios e mais impropérios! Percebi-me surpresa quando a ideia permeou minha mente, mas logo o questionamento me trouxe uma nova fúria, uma fúria ainda maior, de cair sobre o homem e enchê-lo de socos e pontapés. Eu estava trêmula, minhas entranhas ferviam, o ar ao meu redor estava engrossando, como um mingau, minha razão, aos poucos, se liquefazia e era preenchida pelo sentimento medonho que subia por minhas veias e espalhava-se dentro de mim, venenoso, mordendo, beliscando, me incentivando,” ela respirou fundo, percebi como tremia e segurei sua mão. “Eu belisquei, discretamente, minha mão e recolhi-me para o canto, esperando que passasse. Eu apertava cada vez mais e a dor desanuviava minha mente, desfazia aquele pesadelo selvagem e impunha sobre mim o retorno da razão. Eu respirei aliviada, alguns minutos depois, quando aquele sentimento partiu, sem deixar para trás sombra da própria existência. Eu estava aterrorizada com a possibilidade de ser eu, de fato, a culpada por esses sentimentos atrozes.”

“É a casa,” eu afirmei, abraçando-a. Ela não derramou uma única lágrima, mas, se quiser, pode colocar em seu livro que estava em prantos, derrubada sob a força do arrependimento por seus pecados. Acredito que faça alguma coisa de bem à narrativa. Não, não, ela não estava nem um pouco arrependida. Apenas me disse, eu sei e se afastou. “Você está bem?” perguntei.

“Estou bem. Sinto-me maravilhosa.”

Onde eu estava antes, minha querida? Sabe, às vezes, eu me esqueço. Você sabe como a mente funciona, não é? As coisas sempre se misturam; as lembranças não têm ordem. Por mais que tentemos concatenar os eventos, a estrutura da mente é outra. Ela não atende ao mundo, eu acredito. O que eu sinto, na verdade, é que a mente tem o próprio modo de funcionamento do tempo, um modo de funcionamento do tempo fundido em si mesmo, borbulhando como metais preciosos, e a imersão nas lembranças e na estrutura da ordem de pensamento é, ao mesmo tempo, cronológica, pois é como a misturamos ao mundo, como a referenciamos ao mundo, e completamente dispersa de amarras do tempo aqui fora.

Como eu poderia dizer? É como o universo ao nosso redor; não, não o universo, mas o planeta. Sabe, li há algum tempo um livro sobre os hábitos indianos; muitos de nossos ricos se arrastam para aquele lugar, vai saber o motivo, e voltam com histórias de povos distantes e animais exóticos.

Bem, eu li esse livro e fiquei me perguntando, como será possível que, ao mesmo tempo em que existo aqui, outra pessoa, em outro lugar, existe de maneira completamente diferente, com os próprios contextos, sejam eles quais forem. Isso é a mente. É a perspectiva múltipla do planeta, misturando-se a partir de um único referencial, a eleição que o eu faz, no momento de organizar o pensamento. Mas tudo acontece ao mesmo tempo e tudo se mistura. Por isso, minha querida, perdoe-me quando saio da narração pura e simples. Nem sempre é possível se manter completamente no caminho único.

Mas onde eu estava?

Ah, sim, sim, eu e Miléia estávamos voltando para o quarto! Sim, sim, isso mesmo. Eu sempre tinha muito medo de andar por aí sozinha; eu sempre me lembrava de Umpa, das pernas e braços compridos, como uma aranha, e como o corpo se contorcia. Lembrava do ataque noturno; e temia por mim. Então começava a pedir por mim mesma e orava, reabria meu pequeno caderno de orações que agora levava comigo para cima e para baixo e respirava fundo. Mas tentava nunca estar sozinha.

Nós seguimos pelo corredor, quando nos batemos inesperadamente com a Senhora. Ela saía dos próprios aposentos, ainda muito bem-vestida, e estava caminhando em nossa direção. Ela nos acompanhou com o olhar, pude sentir queimando em minhas costas; seus passos não ecoavam mais pelo corredor silencioso e eu pude sentir que ela estava parada, apenas nos observando. Não sei se Miléia percebeu o momento ou se sentiu qualquer coisa com aquela situação. Após alguns segundos escutei:

“Jez, venha cá,” chamou a Senhora. Voltei-me para trás silenciosamente e caminhei sem pressa. Quando já nos aproximávamos, ela perguntou, “para onde estão indo?”

Eu parei por alguns segundos, pensando na resposta – que a mim parecia muito óbvia – e, como ela não esboçara qualquer reação, respondi que estávamos nos retirando para dormir.

“E onde é seu quarto?”

“É no fim do corredor. Quase próximo à área principal; é onde as governantas ficam por aqui, não é?”

“Sim, sim, é. Estou de acordo. No entanto, não acredito que seja um bom lugar,” disse ela, voltando-se para Miléia. Era fria como gelo, sua voz tinha o nível baixo e constante, “quero que se mude, por favor. O mais rápido possível. Vamos usar as salas ali próximas e não queremos interrupções. Peço que vá para um dos quartos próximos à cozinha.”

“De acordo, Senhora,” eu disse, “perdoe-me pela intromissão.”

Logo depois, perguntei-me por quê havia dito aquilo.

“Intromissão?” ela riu para si mesma e revirou um molho de chaves que ainda não havia percebido. Estava pendurado entre seus dedos finos e longos. As chaves, como os dedos, tinham a compridez de galhos de árvores, mas eram um tanto mais grossas que os dedos da Senhora. “Que bobagem. Apenas se retire, sim? Pode voltar depois, se assim preferir.”

“Obrigada. Sairei amanhã.”

“Não, não, hoje,” disse ela, ainda como a superfície plácida de um lago, “pegue apenas o que precisará para esta noite e retire-se para outro quarto. Não podemos arriscar certas… circunstâncias durante a noite; pode atrapalhar os entremeios das sessões e precisamos preservar a reputação de nossa casa. Compreende, não é?”

“Sim, sim, claro. Eu darei um jeito.”

“Muito obrigada,” disse ela, e já se voltava a caminhar em direção oposta a nossa, quando parou novamente e, levando a mão à testa, riu para si mesma e chamou-me novamente. “Ah, eu estava esquecendo. Não estão faltando… acredito, dois empregados?”

“Dois?”

“Sim, sim. Um homem e uma mulher; duas pessoas.”

“Bem, sim, de fato, uma pessoa não está mais conosco e eu estava pensando em relatar posteriormente, pois foi uma chegada muito difícil e ela despareceu há pouco. Acredito que nos deixou sem dizer nada.”

“Oh, sim, sim, é Umpa! Ela nos deixou, sim!” irrompeu Miléia, mas logo engoliu as palavras, fingindo que o impulso de segundos antes não tinha nenhuma coisa a ver com ela.

“Se chama assim? A moça, eu digo. Ah, e quanto ao rapaz?”

“Rapaz?”

“Sim, o rapaz, está faltando um rapaz, não é? Estão faltando dois empregados e, me parece, pois lembro-me bem das pessoas que eu mesma fiz questão de contratar, que está faltando uma pessoa. Saber seu nome seria um pouco demais, sabem que quase nunca estou aqui, mas, sim, sei que falta uma pessoa, ainda.”

“Me perdoe, Senhora, mas não sei quem é. Investigarei sobre isso amanhã bem cedo. Nenhum dos empregados me pareceu faltar e tenho, como sabe, cuidado de tudo aqui com muito esmero.”

“Isso é verdade. No entanto, eu sei, está faltando alguém. Me diga tudo amanhã, tudo bem? Cedo, por favor. Talvez precise fazer algo quanto a isso, mas se não souber quem está desaparecido e tentar encontrar os motivos, não há muito o que fazer.”

Lembrei novamente de Umpa, lembrei do som de seus passos pesados, enquanto corria, em minha perseguição; no chão; no teto.

“Sim, Senhora. Farei o possível.”

“Ótimo,” ela respondeu, e se retirou.

Entrei no quarto por alguns minutos com Miléia e, enquanto recolhíamos o necessário para passar noite, conversamos brevemente sobre o assunto e ela, assim como eu, não havia percebido que havia mais alguém além de Umpa faltando entre nós. O desaparecimento de Umpa era algo sobre que todos sabiam, todos os empregados e mesmo seu marido sabiam que estava desaparecida; alguns poucos empregados, inclusive, sabiam sobre o que eu havia presenciado, mas decidiram transformar a história em uma lenda sobre a qual ninguém pode falar.

Nenhum de nós voltou a tocar no assunto, mas, muito depois, descobriu-se que alguém havia espalhado sobre isso numa cidade próxima, foi o que escutei muito depois, quando já estava mais velha e conversava com uma outra senhora num café. Escutei, ela me disse, que em uma cidade aqui perto uma mulher foi transformada num monstro por uma alma demoníaca; ninguém mais voltou a vê-la, a não ser os empregados daquela casa e, por isso, a casa foi fechada.

Existem duas coisas neste discurso que não batem com minha história e me fazem crer que é um caso de história que toma proporções maiores do o imaginado.

A primeira delas é o fato de ninguém, além de mim, ter se encontrado com Umpa. Depois de minha experiência com ela, naquela noite, ninguém a viu novamente, como eu já disse antes, imagino; sabe, as histórias se multiplicam de maneira assombrosa. Não sei como você fará com seu livro, mas tome cuidado com o que pretende escrever; as proporções que uma falsa história pode tomar quase sempre são catastróficas.

A segunda questão aí é o fato de a casa ter sido fechada. Isso, de fato, aconteceu, se me lembro bem, por alguns poucos anos. É melhor pesquisar esta parte. Foram cerca de dois anos, ou um ano e meio, quando o antigo proprietário veio a falecer e a Senhora, a proprietária, diminuiu muito, por algum tempo, as sessões no casarão. Elas voltaram a acontecer apenas algum tempo depois, assim escutei. Quando encontrei a mulher, a casa já estava reaberta.

A história era desagradável. Sempre parecia voltar para mim, por mais que eu tentasse escapar de suas amarras, ela voltava como sempre fazem as piores lembranças. Eu sempre soube, no entanto, como me manter afastada, sempre soube como empurrar alguns dos meus medos para baixo do tapete. Enquanto estivessem longe, eu conseguiria me manter mais calma, talvez.

Onde eu estava?… Ah, sim, sim, claro! Eu e Miléia saímos do quarto e nos encaminhamos para algum dos quartos vazios, na ala dos empregados. Enquanto caminhávamos, nos deparamos com um trio, acompanhados pela proprietária, seguindo em direção oposta, subindo para a salinha onde seriam realizadas as sessões. Eles seguiram em passos lentos, observando atentamente os nossos passos, mas desapareceram na escuridão que levava às escadas da Sala de Conferência.

Eu recolhi-me com Miléia no quarto que dividíamos e conversamos durante alguns minutos antes de deixar que o sono nos levasse para onde, eu esperava, fosse um lugar mais calmo, mais silencioso, e sem os horrores da realidade de pesadelos.

Miléia me disse que também não havia notado a ausência de nenhum dos empregados, mas logo após alguns minutos poucos de conversa, pensamos que, talvez – não tínhamos certeza quanto a isso, mas, sim, talvez— um dos empregados não estivesse mesmo presente nos últimos dias.

O marido de Umpa não estivera entre nós nos dias passados e eu não me recordava a última vez que o vi.

Vale ressaltar que ele era o tipo de pessoa de existência coadjuvante, muito menos presente que sua esposa. Se demos falta de Umpa logo, isso aconteceu devido à proximidade entre ela e nós; era fácil perceber que ela não estava mais ali quando deveria estar. Além disso, ela era um pouco agradável, como um arranjo de flores que sempre esteve ali, exercendo uma função vital no ambiente, e cuja falta logo era notada em caso de desaparecimento. Nós sentimos falta de Umpa. Não foi difícil perceber que ela não estava mais ali, que algo não estava em seu lugar e, de fato, alguém estava faltando. O marido, no entanto, não era tão presente assim; ele dificilmente estava na casa, quase nunca era visto e, quando entre nós, os empregados da casa, mantinha-se sempre em silêncio, sem dizer nada; sem respirar, talvez.

Lá fora, um barulho de peça arrastando nos sobressaltou. Nós fizemos o possível para ignorar o barulho; Miléia me disse que não era nada de importante.

No dia seguinte, buscamos pelo marido de Umpa e, de fato, ele não parecia estar em lugar nenhum. Ninguém o via havia algum tempo e mesmo as pessoas com quem ele tinha alguma pouca proximidade, como o jardineiro, por exemplo, não sabiam o que havia acontecido com ele. Se ninguém o via havia algum tempo, logo decidiu-se, entre nós, que o desaparecimento da esposa culminou na partida – não avisada – do marido.

Era a melhor coisa a se pensar; para todos nós e principalmente para mim, quando lembrava das costas arqueadas de Umpa, da coluna vertebral desenhada sob a pele fina de suas costas, deformada por crueldades que eu não saberia explicar, e a expressão odiosa em seu rosto. Sim, o marido foi embora sem ninguém saber exatamente que ele o fizera; a ninguém foi anunciada a partida e, entre aceitar sua partida sem receber o ordenado e procurá-lo e encontrar, fosse onde fosse, alguém como encontrei Umpa, decidiu-se que o primeiro caso era o mais aceitado.

Acredito que essa decisão em especial foi, também, uma influência da casa. Mas como eu poderia assegurar o que minha mente não compreende – ou mesmo consegue se recordar muito bem?

Comuniquei este fato à proprietária e ela, impassível como uma estátua grega, aceitou a informação de bom grado. Provavelmente, sim, sim, faz todo sentido, ele e a esposa partiram juntos. Seria o melhor a fazer quando não encontravam mais motivos para seguir num lugar onde não eram mais felizes?

Eu mesma, na verdade, comecei a aceitar em meu seio a ideia de que Umpa havia partido por vontade própria. Ninguém me convenceria do contrário, a não ser que eu a visse novamente, ali, ao meu lado. O pesadelo se afastou; meu cérebro não esquecera, mas pareceu, com o tempo, um delírio. Vinha como um pesadelo desperto e, por mim, era transformado num delírio. Sentia-me bem, pois a reconstrução da razão fazia o possível para que nenhum dos aspectos dos horrores me retornasse como eles eram: horrores.

Então o tempo passou.

Durante um período, a paz reinou entre nós. De certa forma. Além de algumas brigas – de vez em quando – nada tão terrível voltou a acontecer por um tempo. Nenhuma aparição a ser esquecida; nenhum ataque a mim. O que diziam a respeito de esquecer e não fortalecer o pesadelo era verdade: eu mesma me sentia mais poderosa, menos cansada; a influência estava muito distante e eu revigorada. Na medida do possível, é claro. Não acredito que poderia ser a moça que fui um dia, antes de ver todos os horrores se desdobrando em minha frente; não estava mais tão aflita com a possibilidade de uma daquelas criaturas insinuarem-se em meu quarto nas noites escuras e tentar, como antes fizeram, sugar minha alma pela boca, quando ela tentasse escapar do susto através da boca escancarada, agarrada ao grito fino.

Como eu poderia saber que o relógio que cronometrava minha história naquela casa estava quase a ponto de soar a última badalada, anunciando a chegada da meia-noite e, com ela, a horda de criaturas horrendas que acompanham o primeiro instante do novo dia? Bem, deixe-me contar mais uma história daquele lugar, uma história apenas, antes de nos voltarmos para o final e encerrar o passeio por estas lembranças. Você tem um livro inteiro nas mãos e o resto só depende de você; mas lhe darei uma história local, que escutei quando ainda estava lá próximo, no hospício para onde me levaram na noite quando, finalmente, consegui escapar dos horrores daquele lar e da única maneira que eu poderia esperar fazê-lo: amarrada a uma tábua almofadada, enquanto homens de branco me atiravam nos fundos de uma carrocinha de loucos e me levar para sabe lá onde seria o melhor lugar onde poderiam me colocar. Provavelmente o mais próximo.

Bem, mas vamos à história. Perdoe-me se este final está um tanto lento. Mas é como ele me vem.

Existe uma lenda naquele lugar, uma história da meia-noite. Não sei se já a escutou ou se conhece algo parecido. Eu nunca escutei nada igual, mas, bem, imagino que seja uma verdade, ou mesmo uma meia-verdade. As pessoas inventam coisas assim apenas parcialmente; o resto está entremeado na verdade oculta da existência, no metafísico, nas regras que regem o divino e o maldito. Dizem, então, que o badalar do relógio, o prenúncio do novo dia, é, na verdade, um barulho para afugentar os maus espírito que intencionam invadir o mundo de nosso Senhor no virar do dia.

Quando o último segundo do dia anterior se acaba, as portas do mundo dos horrores se escancaram com ferocidade, para que toda besta do inferno tenha a chance de invadir o nosso mundo.

Eles podem atravessar os grandes portões com sua maldade infinita e seu desejo de dilacerar a carne humana, de fazer desaparecer a criatura e substituí-la pela insanidade desenfreada. Eles precisam atravessar os portões antes de fechar, o que acontece no momento exato em que o dia seguinte se inicia; não é um tempo que possamos alcançar, é claro; é, para nós, a essência da própria impalpabilidade. Eles têm o tempo entre o último segundo do dia anterior e o primeiro segundo do novo dia. Eles têm, para nos alcançar, o Nada. Ou chegam com o Nada, ou a passagem lhes é negada.

O badalar dos relógios, o alto som, ecoa através da passagem e imobiliza-os, antes mesmo que possam pensar em se aproveitar do instante.

É uma história estranha e, quando penso nisso, não sei quanto sentido faz. Mas os locais sempre contam; as crianças conhecem e os relógios da região sempre tocam enlouquecidos, por toda a cidade, em todas as casas, com o fim e o início da madrugada. Todos estão dormindo; ou estão acordados, não sei. Mas precisam ter certeza de que o mal não entrará em nossas casas.

É bonito, não é? É bonito pensar que não podem entrar em nossas casas. Eu sempre faço o possível para que nada entre aqui, mas os cuidadores nem sempre nos permitem fazer algumas coisas; eles podem ser bem cruéis de vez em quando. Somos um tipo curioso de lixo; mas não sei se quero falar sobre isso. Quando alguém faz de você lixo, a última coisa que se quer falar é sobre sua condição. É possível que alguém, um dia, tenha um espírito mais nobre que o meu e grite mais alto que os demônios que fazem-nos transformar no que somos hoje; mas, enquanto isso não acontece, eles atravessam os portos e são o que quiserem, enquanto não podermos ser absolutamente nada. Não, não, não estou entristecida; é apenas mais uma verdade para se diluir em seu livro. Quem sabe não estou gritando assim? Você poderia gritar por mim?

Mas agora vamos para o final. Vamos que preciso terminar isso ainda hoje. Amanhã você não precisará voltar, a menos que queira visitar uma velha num lugar que cheira a velhos; você não quer, quer? Ninguém nunca quer.

Foi numa noite especialmente seca; lembro-me bem de acordar após um sonho vazio, no qual não oscilava entre a existência e a inexistência; eu estava desperta e, ao mesmo tempo, adormecida. Nada fazia sentido no universo e eu sonhava com noites circulantes no infinito estrelado, girando e girando, perdida num vazio existencial que esticava minha vida e me diminuía, quase imperceptivelmente e, assim como fazia sem que ninguém pudesse perceber, o infinito ao meu redor condensava-se para adequar-se à minha insignificância, ou para aprisionar-me: ao mesmo tempo, o universo era infinito, deixando bem claro como eu não era – e não sou – absolutamente nada na existência vibrante do tudo e do todo, mas, exatamente como fazia isso, fechava-se ao meu redor, prendendo-me e negando minha existência em todo o lugar. Eu não existia, não poderia existir, além daquele cubículo inquebrável, para a eternidade.

Despertei com o pesar do sonho sobre meus ombros; a lua não podia ser vista pelo quarto sem janelas: tudo estava escuro, silencioso e triste. Ao meu lado, a sombra de Miléia próxima inspirava e expirava profundamente, calma e lenta, recuperando a lembrança da simplicidade e do mundo sem o peso do serviço.

Os proprietários ainda estavam acordados, eu tinha certeza. A maior parte das reuniões acontecia à noite e ninguém saía dos próprios aposentos para espreitar das sombras o que poderia acontecer naquela pequena sala. Eu descobri-me muito corajosa, mas acredito que minha coragem está diretamente ligada à minha imprudência e minha tendência incompreensível a buscar os horrores da casa. Era a influência, é claro; talvez a casa me quisesse mesmo. Mas não gosto de dizer ou pensar isso; seria a afirmação necessária para dobrar-me à vontade da presença maléfica e sob os seus domínios, possibilitando o ataque.

Eu levantei devagar e vesti meu robe pesado, de tecido grosseiro e barato; por muito pouco não vesti a capa costurada por minha mãe, mas considerei um pouco e julguei que o melhor para os trajes noturnos seria uma capa mais pesada, para proteger-me dos sopros gélidos da madrugada.

Eu ganhei o corredor que levava ao quarto dos empregados e subi lentamente, sem grandes pretensões, em direção à cozinha. Lá dentro, servi-me um copo de leite quente. Estava sentada à mesa quando olhei para o outro corredor, do outro lado, que dava para a saída da cozinha e abria-se em direção ao meu antigo quarto e às escadas para a Sala de Conferências. A proibida Sala de Conferências. A porta estava escancarada; uma luz forte brilhava lá de dentro e, além disso, apenas o silêncio desconfortável. Aquela porta nunca estivera aberta e vê-la daquela maneira, agora, era extremamente desconfortável. Apertei o copo nas mãos e inspirei profundamente.

Devo seguir e fechá-la?

Ouso seguir e fechá-la?

Eu não acredito que pensei em tudo isso, de fato. Hoje eu digo que eram esses meus pensamentos; acredito que, naquele momento, eu estava incomodada pelo sentimento que a situação me causava, assim como estive preocupada com muitas outras das situações terríveis com as quais tivera de lidar antes, os dias longos após presenciar o horror e, o pior de tudo, a expectativa de que aconteceria novamente a qualquer momento.

Ali, sentada na escuridão parcial, eu sentia apenas o peso daquela porta escancarada e o que poderia acontecer lá dentro. Por isso eu digo, não acho que levantei-me para fechar a porta com algum pensamento em mente, além daquele que me dizia que precisava afastar qualquer problema causado por entidades demoníacas presentes na casa.

Eu levantei, então, e subi o corredor até a porta, toquei-a, pensando em fechar, quando olhei de relance lá para baixo, sem pensar, e percebi que a outra porta lá embaixo também estava escancarada. Muito pior, um leve ruído vinha lá de dentro, um barulho de engasgos, um barulho próximo do gargarejo, talvez. Como poderia explicar? Não era exatamente nenhum dos dois; era um barulho de obstrução, de algo que não poderia ser obstruído.

Meus dedos se afastaram devagar da porta, roçaram a maçaneta e, por pouco, eu não a fechei. Por pouco eu não me poupei; eu deixei tudo para trás e desci as escadas. Desci devagar, escutando os degraus rangendo sob meus pés e o meu peso entortando as madeiras. Ah, que horror, que horror, pensei; o que estou fazendo? Mas meus pés seguiam, eles continuavam até lá embaixo.

A porta estava escancarada e, lá dentro, testemunhei longos segundos, tão longos quanto olhar para dentro da garganta do infinito e não ter para onde fugir.

A sala estava muito bem iluminada, embebida na luz densa de velas de cor escura, queimando bravamente, enquanto projetava sombras sobre as paredes e pintava todo o quarto com luzes avermelhadas e de negras.

Todos estavam ali, unidos em um grande círculo, ao redor da mesa ampla, olhos arregalados e voltados para cima, escancarados para o teto e afundando-o com o peso de suas visões, empurrando-o em direção ao céu noturno, atravessando os andares da casa à frente e espreitando espíritos muito antigos que dominavam o infinito e além das teias do compreensível a nós.

Estavam agarrados uns aos outros, as mãos fechadas ao redor do braço do que estava ao lado e esticados, formando um círculo perfeito de criaturas humanas mistas, perdidos em si mesmo e entoando aquela canção terrível, pois era aquele o som que eu escutava: um tipo medonho de canção sem palavras, sem a realização verdadeira de signos conhecidos por mim ou por você, era apenas um som de sufoco, a tentativa do ar de passar por entre a garganta apertada; eles não respiravam bem e eu via o motivo, eu via a origem daquele som terrível ali, bem ali, à minha frente.

Eu tremia, meus pés estavam presos ao chão e eu sentia minhas mãos agarrarem-se ao redor, pois, se não o fizesse, eu cederia ao meu próprio peso e nunca me seria possível escapar daquele lugar, nunca me seria possível sobreviver àquelas pessoas e aquela confraternização infernal, o entoar da canção daquele sabá.

O som sibilante de suas gargantas; ora, mas possivelmente era isso mesmo, um sibilar, um sibilar cantante, alto e terrível, como o entoar dos enviados do demônio.

O sibilar vindo de suas gargantas escancaradas para o teto, que observavam com olhos vítreos.

Sim, sim, vindo de suas gargantas, escancaradas, minha filha. Escancaradas e cheias; completamente preenchidas.

Preenchidas pois a figura terrível que eu vira tantas vezes naquela casa estava ali, bem ali, no centro daquele círculo, escutando a canção daquele sabá terrível, enquanto seus cabelos vivos, as sombras da noite, serpentes antiguíssimas e infernais, abraçavam-nos, subiam por seus peitos, enrolavam ao redor de seus pescoços, subiam por seu rosto e penetravam fundo em suas bocas, em suas gargantas, obstruindo a passagem do ar e deliciando aquela besta e tomando os corpos que a idolatravam. Estavam todos ali, unidos, na celebração do diabo.

Os cabelos vivos! Os cabelos descendo por suas gargantas e formando o som terrível que eu escutava; eles estavam engasgando, engasgando naquele cabelo pútrido e vivo; deixando-se tomar por aquela criatura que, lentamente, voltou os olhos em minha direção e sorriu. Ela apenas sorriu.

Não era um sorriso maléfico. Era um sorriso de afirmação do próprio poder e de sua vontade. O sorriso, na verdade, quase tinha uma falsa inocência. Como temi meus dias; eu precisava sair dali, eu precisava fugir! Eu não pensei duas vezes.

Saí correndo para fora daquela sala, olhando para trás apenas algumas vezes, apenas para ter certeza de que ninguém me seguia e de que eu nunca mais veria nenhuma daquelas pessoas; eu corri para fora e corri para o pátio em frente a casa, onde, ao olhar para cima, deparei com uma gigantesca lua vermelha, brilhando para mim, sugando a escuridão ao redor.

Senti minhas pernas fraquejarem e caí sobre o chão de pedra. Quando voltei a mim, estava amarrada em um carro, sendo levada para a cidade vizinha, onde me trancafiaram por mais de dois anos, pois eu insistia em dizer que aquela casa havia me mostrado um demônio terrível e que este demônio agora tentava habitar o hospital.

É apenas isto o que posso contar; depois disso, o mundo tornou-se estranho, muito estranho.

Com o fim do relato da velha, após cerca de seis meses, a escritora publicou o primeiro capítulo do que viria a se tornar o mais famoso romance de horror de sua carreira.

A história foi publicado em fascículos mensais na revista De Terrores Noturnos, publicação chefiada pelo mais que competente Deiton Loffarid, tornando-se rapidamente o principal texto da publicação e aquela seria a história que içaria o nome de Odenni Lotm a um dos mais importantes nomes da literatura de horror de sua época e uma importante publicação no período, graças à descrição minuciosa e cuidadosa da cruel vida em hospícios e casas de idosos, além de um interessante relato do cotidiano de uma equipe de empregados numa grande mansão. O livro foi relançado, como de costume, em quatro volumes encadernados e estava presente na maior parte dos lares mais abastados da época. Na dedicatória do último volume, Odenni Lotm escreveu:

Dedico esta história, muito humildemente, o Príncipe de P–, pois sua bravura, seguindo as páginas uma história tenebrosa como esta, é digna dos mais sinceros elogios. De sua humilde serva, etc, etc, etc.


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Notas finais do capítulo

E assim Jëz termina sua história.
Falta ainda um único capítulo que, se você quiser, pode ler agora mesmo! :D
Não se esqueça de comentar, sempre ajuda.
Obrigado por me ler até aqui e até o próximo capítulo. :DD



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