Eu Prometo Contar Tudo Exatamente como Aconteceu escrita por OITO


Capítulo 2
Capítulo 2


Notas iniciais do capítulo

Gente, obrigado por seguir comigo até o segundo capítulo!
Espero mesmo que gostem! :D



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As semanas que seguiram minha experiência terrível foram desastrosas; enquanto eu tentava recuperar meu corpo e mente da monstruosidade daquele ataque noturno – o que me parecia cada vez mais impossível com os prazos fechando sobre mim e os problemas que aconteceram durante todo o mês seguinte –, a casa parecia ganhar vida própria, aos poucos, e consumir a cada um de nós. A influência da casa sobre os habitantes era quase imperceptível durante o período inicial, mas estava lá, nas pequenas manifestações diárias de impaciência, nos menores gestos. Tudo era quase silencioso. Quase. Até tornar-se vibrante como olhos espreitando na escuridão.

Tentava dizer a mim mesma que aquilo era apenas um pesadelo terrível, mas a inflexibilidade de minha razão mostrava-me, como se provou verdadeiro muito depois, que eu estava certa quanto a veracidade daquele ataque. A maneira como as coisas acontecem, a maneira como desvendamos as reentrâncias das construções antigas é, de certa forma, como desvendar o oculto; há sempre uma projeção de uma nova vida para o lugar: enquanto você o desvenda, muito lentamente, sem percebermos, a casa demoníaca desperta e consome os mínimos traços de existências mais fracas, partindo para as mais fortes assim que termina o próprio fortalecimento. Não lembro muito bem os problemas daquela época, mas lhe digo que foram muitos; não sei se posso afirmar exatamente como aconteceram. Eram problemas de ordem técnica, a princípio, e logo se transformou num desfile de horrores inesperados, uma sequência de desvios metafísicos.

Os dias eram longos, as noites passavam rapidamente, em meio às possibilidades tenebrosas. Algo aconteceu com o tempo; o tempo do horror era diferente do tempo da espera. Enquanto o primeiro era ágil como um corte único na pele, o segundo se arrastava em segundos torturantes. Devo dizer que um deles me deixou mais chocada que todos os outros e precisei de algum tempo para me recuperar; havia um casal entre nós, habitando a casa. Sim, de fato, eu já mencionei um outro casal, mas esses dois moravam de fato conosco, sob o mesmo teto, despertando nos mesmos horários e trabalhando mais diretamente com os outros empregados, se comparado ao rapaz do estábulo e a moça da limpeza. A mulher, chamada Umpa, já trabalhava com aquelas pessoas há mais tempo que ele e conhecia alguns dos proprietários da casa; o marido, no entanto, fora contratado para auxiliar nas tarefas gerais, necessárias para o bom funcionamento da casa. Podia, com frequência, ser encontrado no estábulo ou ajudando o jardineiro.

Naquela semana, duas coisas, das quais lembro-me muito bem, aconteceram.

Primeiro, recebi uma carta dos proprietários solicitando que fizessem uma limpeza pesada de toda a mansão, deixando preparados cinco quartos para duas pessoas e um quarto individual, além dos aposentos principais, pois receberíamos uma comitiva, até o fim daquela semana. Após a chegada do grupo, no entanto, a comitiva tinha mais pessoas que o imaginado; mas sobre isso falo depois. Além disso, um jantar e uma recepção para todos aconteceria com a chegada. Não havia horários ou uma data prevista, de modo que comecei a pensar em todos os problemas que esse tipo de situação poderia causar; e pense, querida, que eu nem mesmo sabia que os números eram maiores. Reuni-me com os empregados e comuniquei o conteúdo da carta; todos se entreolharam com desconforto.

“Pergunto-me, no entanto, qual seria o dia que chegariam,” eu disse.

“Sexta-feira,” disse uma das empregadas, “o trem que os trará só chega às sextas-feiras, mas os horários costumam ser irregulares. Temos que nos preparar.”

“Tudo bem,” eu disse, então os instruí quanto ao que precisava ser feito até a noite de quinta-feira.

Conversei com a cozinheira e chegamos à conclusão de que um jantar leve e mais revigorante seria o mais indicado; principalmente líquidos, disse-me ela. Foi apenas depois, quando ninguém mais estava no refeitório dos empregados quando percebi que uma das empregadas não estava lá. A ausência de Umpa me deixou um pouco irritada, mas logo percebi-me preocupada, pois ninguém a havia visto naquele dia. Saí em sua busca pelo terreno e pelos arredores, e decidi iniciar a busca visitando o marido, que tinha a companhia do jardineiro, ambos tentando acalmar alguns cavalos agitados. Eles se viraram para mim rapidamente e me cumprimentaram com um aceno de cabeça; logo após, eu os questionei a respeito de Umpa, mas nenhum dos dois a havia visto; o marido a encontrara apenas naquela manhã, quando acordaram cedo para começar o trabalho, ele contou, pensando um pouco consigo mesmo. Ela não parecia diferente, disse ele, e não havia dado por falta dela até aquele momento, quando me aproximei e questionei a respeito de seu paradeiro; logo uma suspeita aflita o tomou e deixei que partisse em sua busca, enquanto voltava com o jardineiro para dentro da mansão e instruía os outros a saírem em busca de Umpa.

Naqueles dias, minha filha, devo dizer, éramos todos muito estúpidos; o desaparecimento de Umpa não me levou a pensar uma única vez em meu ataque noturno, por mais estranho que isso possa parecer; não sei se havia algum tipo de recusa em minha mente em aceitar possíveis ligações entre acontecimentos metafísicos, horrendos e a sombra miserável da empregada, caminhando entre os corredores como uma sombra ligeira, como todos os empregados de grandes famílias deveriam ser, mas tão logo o anoitecer se aproximou e seu paradeiro continuou um mistério, lembrei-me imediatamente do ataque da noite anterior. Estava em uma pequena sala, que considerava muito aconchegante, quando recostei-me contra a poltrona e fechei os olhos, esfreguei-os com a ponta dos dedos e esforcei-me para segurar o pranto. O marido estava muito preocupado e os empregados estavam, cada vez mais, afundando-se num silêncio sepulcral; quase nada era dito; os trabalhos eram feitos sem dizer uma palavra além do necessário e todos os que moravam na cidade próxima deixavam a mansão muito antes do escuro chegar e das sombras tomarem a estrada que levava de volta até casa.

Eu estava cansada; muito mais cansada mentalmente e espiritualmente. Eu não escutei quando Miléia entrou, mas ela esperou de pé ao meu lado até que eu percebesse sua presença e lhe cumprimentasse Boa Noite; essa era uma outra característica de minha amiga: sua personalidade, após muitos anos convivendo com pessoas de todo tipo, tornou-se pouco intrusiva e, com algumas pessoas – o que não se aplicava a mim –, bastante reservada.

Sentou-se ao meu lado, sem pedir para fazê-lo ou mesmo ignorando o fato de minha presença naquele aposento, sentada como uma Senhora, provavelmente era repreensível – uso provavelmente apenas para escusar-me de uma responsabilidade, mas sempre tive proximidade com aposentos que me agradassem em todas as casas onde trabalhei e saiba que não foram poucas. Sentada, sem postura e com as mãos sobre a barriga, Miléia olhava diretamente para mim, estudando minha figura ou minha postura; imaginei imediatamente que elucubrava sobre coisas que poderia me contar e se deveria me contar alguma coisa que eu não soubesse, mas precisava ser dito – ou não –, coisa a qual, logo decidiu-se, deveria ser contada. Eu ainda não havia lhe contado nada sobre meu episódio sinistro; os ímpetos de compartilhamento de minha amiga não eram comuns em mim e eu desejava, enquanto pudesse, deixar qualquer aspecto mínimo da lembrança aterradora no universo distante, fora de mim e alheia às coisas que estavam acontecendo naquele momento.

Eu esperei e esperei, observando-a como fazia comigo, até que ela começou:

“Onde você acha que Umpa está?” perguntou-me ela, num sussurro, quase inaudível.

Minha querida, observe bem, escute agora com muito cuidado o que eu pretendo lhe contar, escute com atenção pois é importante; nunca pensei que diria isso, mas, ora veja, como estou trêmula, eu acredito que a pobre Umpa já estava morta, muito morta, quando começamos a buscá-la. Morta, eu quero dizer, de certa maneira. Eu sei, hoje eu sei; nunca imaginaria uma coisa dessas naquela época; todos imaginávamos qualquer possibilidade, menos sua morte. Quando imaginamos o que poderia ter acontecido, a morte nunca se pronunciou como uma opção; não queríamos que fosse uma opção, um destino possível para ela, mas lá estava a coisa se formando, bem em minha frente, como uma insinuação cruel, sinistra e debochada; ela estava morta a todo momento e a realização daquele questionamento demonstrava para mim a natureza daquela casa terrível; se eu tivesse a sensibilidade que tenho hoje, teria deixado o lugar imediatamente; mas não o fiz. Se o tivesse feito, onde poderia eu estar agora? Esta história, este curso de eventos, nunca poderia ser configurado dessa maneira, comigo e com você. Se eu tivesse ido embora, a história não existiria, sabe? Mas lá estava, lá estava o sinal cruel, riso desdenhoso da casa: Onde você acha que está Umpa?

“Não sei, não posso imaginar,” foi tudo o que respondi.

“Eu não consigo imaginar o que aconteceu, mas alguma coisa nisso tudo é muito estranha.”

“O quê?”

Ela deu os ombros e enlaçou os dedos, “há algo que preciso contar.”

“Pois diga.”

“Bem, na verdade são duas coisas. Eu vi Umpa hoje; não tenho certeza de quando, mas lembro-me de tê-la visto uma vez, quando estava retirando os lençóis dos quartos onde ficarão os hóspedes do patrão. Foi um pouco depois de você nos anunciar que deveríamos arrumar os quartos e fui mandada subir e começar o trabalho; não sei exatamente o motivo, mas olhei pela janela rapidamente e tive a impressão de vê-la saindo em direção ao lago.”

“E por que você não nos contou antes?” disse eu, um pouco rispidamente.

“Eu a procurei próxima ao lago e não a encontrei, então julguei sem importância,” Miléia deu os ombros e se aprumou na cadeira. “Sabe, eu fui atrás dela depois, procurei próximo à beira do lago e até chamei seu nome duas vezes, mas logo saí de lá; ela não deve ter ido para lá, de qualquer jeito, não por muito tempo.”

“E ela foi em direção ao lago ou você a viu indo para o lago?” eu perguntei.

Ela pensou por alguns segundos; com o cenho franzido, fechou os olhos para imaginar a cena e em sua mente, penso; a cena passou mais uma vez, acompanhando os passos de Umpa. Minha filha, lhe direi uma coisa: não acredite na memória de ninguém.

“Ela não estava indo para o lago, foi apenas naquela direção, eu lembro. E não faz sentido ela ter ido para o lago.”

“Por que diz isso?”

“Ninguém gosta do lago, as pessoas dificilmente se aproximam do lago e os hóspedes são instruídos a manter distância.”

Questionei-lhe quanto ao motivo de tal proibição e ela, muito lentamente, enquanto vacilava nas próprias palavras, contou-me sobre uma história anterior à chegada dela naquela casa e deixou bem claro que pouco acreditava naquilo tudo. Parecia muito mais uma história de assombrações, uma história boba, na verdade, como os romances de mistério que lia. O motivo da aversão ao lago era compreensível: uma criança havia morrido ali. Parecia, de fato, uma história, apenas uma história, mas há de se contar o que aconteceu.

Anos antes, um grande grupo chegou com os proprietários e hospedaram-se na casa durante alguns dias; era formado por alguns irmãos e irmãs, com suas esposas e seus maridos, todos de uma grande família, além de dois irmãos solteiros. Entre eles, haviam três ou quatro crianças, filhos dos hóspedes. As crianças jamais participavam das sessões, ela contou, eles já estavam dormindo quando os adultos se reuniam na sala de estar, ao lado da sala da lareira, e começavam o Jogo dos Espíritos – foi esse o nome dado por ela e, por um claro motivo, considerei-o extremamente estúpido. Numa manhã, após o café, as crianças brincavam, correndo entre os cômodos da mansão, escondendo-se umas das outras, em caixas e armários, e em quartos de empregados e dispensas. Uma das meninas foi encontrada num dos quartos de empregados, embaixo da cama. Quando perguntaram-na o que fazia ali, ela respondeu, Estou me escondendo, não conte que estou aqui, e colocou o dedinho fino em frente aos lábios, no universal sinal de silêncio.

Em meio a essa pequena confusão, a algazarra da diversão infantil, uma das crianças desapareceu e apenas sentiram sua falta próximo à hora do almoço, quando todos, já à mesa, esperaram por ele para inciar as refeições e ninguém saberia seu paradeiro. Nem mesmo os companheiros imaginavam onde ele poderia estar, então logo iniciou-se uma longa busca pelo menino desaparecido. Era uma criança linda, era o que dizia, o mais adorável dos três, muito educado, singular, tinha cachinhos muito escuros como madeira de carvalho e olhos brilhantes e enormes, lacrimosos como os de um cachorro. Era também muito, muito inteligente, além de bastante inventivo; conseguia criar brincadeiras para os três e, de uma hora para outra, alguns amigos imaginários que se comunicavam com os outros através de suas mãos. Desenhava nela olhos e dava nome aos personagens; já sabia muito bem manejar a pena e escrevia melhor que todos os outros. Enfim, a criança era muito bem-educada e, sem sombra de dúvidas, muito querido.

Não questiono a possibilidade da existência de tal criança, minha querida, mas todos nós sabemos como os contextos dramáticos acabam exigindo que determinadas variações de personalidade aconteçam, de modo a criar um tipo de espetáculo terrível e faça do todo uma história ainda mais dolorosa. Não é de fato importante a personalidade dessa criança em particular, mas o modo como esse detalhe em particular se repetia sem parar nas narrativas e todos os detalhes acrescidos à simplicidade de sua existência; de um momento para o outro, ele não era mais uma criança, mas um pequeno anjo que caiu, de certa forma, em desgraça – ou teve muito, muito azar. Para mim, essa personalidade foi criada com o passar do tempo, com o contar e o recontar dessa história, mas não posso assegurar; talvez ele tenha realmente existido exatamente como o descrevem. Existem crianças sem graça como ele; eu, particularmente, prefiro as mal comportadas – mas espertas o suficiente para saber quando deixar aflorar a selvageria. Não ficam tão doentes, sabe?

Mas, como eu dizia, quanto a existência desse anjo tão cândido, eu não saberia afirmar. Minha amiga balançou a cabeça negativamente e continuou.

Os pais se desesperaram.

O que poderia ter acontecido ao pequeno?

Os outros diziam sempre não tê-lo visto e os pais, é claro, acreditavam em todas as palavras. Buscaram nos bosques próximos e na vila; nos ocos das árvores e sob as raízes que enrolavam sobre a terra; procuraram nos campos abertos e perguntaram nas casas próximas, teria alguém visto um menino dessa altura e com tais características que poderia, talvez, ter passado por aqui a pé, sozinho ou acompanhado?, sim, cogitaram mesmo os piores casos possíveis. Cogitaram ainda o lago, mas esse foi o último caso. Entraram nas águas geladas e nadaram de um lado para o outro, procurando o que apenas poderiam ser restos da criança; nada foi encontrado.

Um homem bateu à porta e a escritora levantou-se rapidamente, correu até ele e deixou-o entrar. Muito cortês, cumprimentou a senhora e ofereceu-lhe, mais uma vez, a refeição, para manter o vigor durante o resto da tarde; após alguns minutos, ele chamou a curiosa escritora ao lado e pediu que, por aquele dia, por favor, deixasse que a senhora descansasse. Poderia voltar no dia seguinte, pela manhã? Ora, mas, sim, sim, claro que poderia. Ela aprumou-se, pôs o chapéu e guardou papéis e os pequenos óculos de trabalho. A escritora saiu e, fechando a porta atrás de si, observou-o inclinar em direção à velha e servir-lhe algumas colheradas de sopa, enquanto sussurrava qualquer coisa e ela respondia, igualmente num sussurro, balançava a cabeça afirmativamente e, com um esgar, respondia-o com seriedade. Subitamente, ela voltou os olhos para a pequena janela por onde a escritora olhava e, rapidamente, cumprimentou-a com um sorriso afável.

Ela respondeu e retirou-se, apressando corredor acima com as próprias notas fechadas numa bolsa preta e pesada. Era mesmo uma boa história e, talvez, fosse necessário checar alguns dos dados cedidos pela velha, o que não pareceu importante naquele momento, especificamente.

No dia seguinte, sentada na mesma cadeira, escutou-a continuar.

Ah, perdoe-me por ontem; tenho descoberto as mais desagradáveis regras nesse pardieiro. Mas foi onde me colocaram e estou grata por isso… em parte. Onde parei minh… ah, claro!, lembro-me bem!, o menino desaparecido. Bem, eis o que aconteceu depois, minha amiga contou-me. Após as buscas, muitos dias depois, quando a mãe já estava doente e o pai já havia dado a criança desaparecida como alguém perdido; um comunicado com ilustração e recompensa foi espalhado pela capital e em cidades próximas; pouco depois, a mãe melhorou de seu infortúnio e o pai caiu acamado, exatamente como ela. Os meninos estavam cansados da mansão; os empregados estavam cansados deles; já estavam hospedados por quase um mês e se recusavam a ir embora antes que o menino aparecesse, vivo ou morto.

A mãe assumiu a busca, chamando o marido de incompetente, o que lhe rendeu uma dolorosa bofetada – seguida da mais terrível briga entre os dois já vista, pois ela provara que nenhuma bofetada que ele lhe desse poderia ser tão dolorosa quanto tudo o que ela poderia dizer ou fazer com ele e, muito pior, o quanto ela sabia derrubá-lo sem jamais fazê-lo de fato. Ninguém sabia qual era o caso exatamente, mas logo percebeu-se que ela estava tomando as rédeas; o cavalo, de fato, desempacou.

Numa manhã, encontraram um baú; encharcado e imundo pelo lodo do fundo do rio, arrastaram-no como foi possível para fora e qual não foi a surpresa quando descobriram, dentro do baú, fechado com um grande cadeado, ainda brilhante, a criança contorcida e com a boca escancarada, os olhos vazados e a pele cinza como uma manhã de tempestade. A mãe, ao vê-lo, caminhou lentamente até a mansão e trancou-se numa sala, sozinha. Foi apenas no dia seguinte, quando a mãe saiu da sala, que todos descobriram os detalhes do caso terrível: estavam as crianças brincando quando o mais novo, silenciosamente, se escondera no baú e esperou. Todos os outros já haviam sido encontrados, a não ser o menino no baú. Eles o procuraram durante muito tempo e ninguém conseguiu encontrá-lo, a não ser muito depois, ao escutar o risinho dentro do baú e perceberem-no fechando rapidamente quando entraram no quarto.

Aqui a história fica um pouco mais estranha: duas leituras possíveis poderiam ser feitas do caso em particular. A primeira, trancafiou os outros três numa clínica como esta e eu nunca soube o que aconteceu com eles; a outra, no entanto, também os trancafiaria, provavelmente, mas tiraria deles a culpa hedionda pelo assassinato do quarto e, talvez, ainda salvasse suas almas no dia do juízo. Ninguém sabe o que poderia ou não ser verdade, mas as duas histórias correm soltas por línguas incansáveis e irreprimíveis; a segunda história, no entanto, é a que mais satisfaz o interesse particular de regiões isoladas por histórias tenebrosas.

Conta-se que uma das crianças, a menina mais velha, entrou no pequeno quarto e olhou em redor, em busca do outro, quando escutou um risinho baixo ao pé da cama; muito próximo de onde estava, mas dificilmente conseguia compreender de onde, de fato, vinha o barulho. Ela olhou em redor. O som parecia vir de baixo da cama. Ela olhou rapidamente, mas não havia nada lá; olhou sobre a cama, sob os lençóis amarfanhados – era o quarto de uma das crianças e alguém não havia feito a cama naquela manhã, ou um deles a desarrumara pouco depois de ser arrumada. Então ela pensou; lembrou-se do outro. Certamente estava ali. O riso, a cama desarrumada, eram provas o suficiente das maquinações infantis do mais novo, pensou ela, e ele se escondera ali dentro. Foi quando escutou um ranger e, refletido no espelho, viu-se sobre a cama, em meio aos lençóis, com a boca escancarada; logo abaixo, dentro de um baú de roupas, em frente a cama, cuja tampa estava levemente levantada e, lá de dentro, dois olhos enormes e brilhantes, vermelhos, como um rubi, observavam-na, flutuando na escuridão interna do baú e espreitando seus movimentos.

No exato momento em que percebeu como ela o via, fechou rapidamente a tampa e permaneceu quieto; o quarto era um mausoléu, ela era uma estátua sobre o túmulo, o baú guardava as escadas para o inferno. Muito lentamente, ela deslizou para fora da cama e chamou os outros. Contou o que vira e, ao entrarem no quarto, mais uma vez, o par de olhos espreitava, mas, dessa vez, em direção à porta; o baú se fechou novamente quando percebeu que eles se aproximavam. Não se sabe onde, mas eles conseguiram um cadeado, correram de volta ao quarto e selaram o baú. Ele chacoalhou um pouco; um choro baixinho saiu lá de dentro e uma vozinha quase irreconhecível – assim afirmaram – pediu que abrissem o cadeado e deixasse, por favor, que saísse. Não queria mais brincar e aquilo não era nem um pouco engraçado.

O baú começou a chacoalhar mais e mais, ameaçadoramente, um grito e fino cortou as pequenas almas e eles, temendo por si mesmos, arrastaram o baú até o lado de fora e atiraram-no no rio. Um gritinho fino, como antes, cortou o ar e se calou, no exato instante em que o baú submergiu e eles, temerosos, voltaram lentamente para casa; olhando para trás e cogitando o que fazer caso vissem a coisa saindo de dentro da água, como um lagarto gigante, serpentino, atrás deles, a vingança demoníaca dos olhos brilhantes. Nada aconteceu. Continuaram procurando a criança desaparecida.

Eu estava horrorizada. Eu percebi que tremia e levei a mão aos olhos, esfreguei-os e elas voltaram úmidas. Eu disse que aquela parecia, de fato, uma história terrível e que a tenebrosa visão mental trazida por aquele baú se abrindo à minha frente – mesmo que isso nunca tenha acontecido – me arrastava à realização do evento em si. Por muito pouco, em meio ao horror do momento, eu podia sentir o fedor pútrido do corpo, após duas semanas sob o rio.

Sabe, minha filha, esse dia, esse momento em específico, permaneceu comigo durante muito tempo; durante muito tempo a cena voltou a mim, o lago, o baú se abrindo, a figura contorcida dentro dele e, exatamente por isso, tão logo vi raiar o novo dia, apressei-me até lá, antes que a chuva caísse, pois o dia estava tenebroso e, sim, tínhamos toda certeza: choveria. Sabia apenas que precisava olhar o lago por mim mesma.

Minha surpresa começou logo. Lembrei-me, no lapso de um milésimo de segundo, da madrugada do ataque e senti o calafrio subir a espinha e meus passos apressados muito lentamente começaram a vacilar. Minha vontade e meu ímpeto me levaram até lá, subjugando a força do medo que parecia se apoderar de mim mais uma vez. Lembrei-me dos olhos vermelhos, conforme me aproximava do lago, e lembrei-me da imagem serpenteante que saía em perseguição às crianças, a imagem criada por meu espírito impressionável e, ao mesmo tempo, maculado pelo horror após a noite das celebrações natalinas.

Olhei para a superfície imutável do lago e permaneci de pé, imóvel, esperando que algo acontecesse ou que algum sinal – uma ação impulsiva e sem significado – revelasse o paradeiro de Umpa.

O lago continuava adormecido; nada parecia se mover ali dentro.

Voltei devagar, seguindo o mesmo caminho através do qual eu passei como uma tempestade, de cabeça baixa e entregue a alguns pensamentos próprios; a eles se incluíam a possibilidade de abandonar a casa – que logo mais tarde foi solucionada pelo pedido de Miléia de dividirmos um quarto, pois Miss Ulla estava mais uma vez sofrendo de flatulências. Eu caminhei atenta apenas a mim mesma, quando um vulto ágil tomou de relance minha visão. Um movimento rápido, em direção ao bosque. Virei-me rapidamente e voltei-me em direção ao movimento; ah, sempre somos tomados por arrependimentos quando nos voltamos para o que não nos diz respeito. Eu acredito que estava assustada o suficiente para que aquilo se transformasse numa imagem possível em minha mente influenciável; não posso dizer que conheço os meandros do espírito, mas creio em possíveis assimilações que nos levam a perceber algumas das pequenas sementes do caos.

A grama soprou rápida, acompanhada pelo farfalhar violento; estava na árvore.

Estava agarrado a uma das árvores; uma figura de longos braços e pernas, com formas aracnídeas, o corpo içado por esses membros poderosos se levantava como uma mesa. Tinha movimentos harmônicos para sua forma e eu nunca acreditaria ser possível movimentar-se com pernas longas como aquelas e braços longos como aqueles se não tivesse visto a figura correr em direção à árvore, de quatro, saltar em direção ao tronco e escalar rapidamente.

Eu estava muito distante para ver maiores detalhes daquele corpo deformado e agradeci não apenas por não conseguir vê-lo àquela distância e, mais ainda, agradeci pois aquilo não pôde me ver; mas havia algo notável ali, algo que reconheci imediatamente, quando a figura deformada se arrastou pelo tronco e desapareceu em meio às folhas farfalhantes. Quando a chuva começou a cair e o vento se tornou ainda mais gélido, a realização retornou à minha mente e eu tive certeza de que aquilo que eu vira era ninguém menos que Umpa; os cabelos soltos eram compridos como os dela e ainda estava usando os frangalhos rasgados do uniforme da criadagem. Trêmula, retornei para a mansão.

Perdi que me servissem algo para comer rapidamente e, ainda trêmula, contei o que vira; ninguém dissera uma palavra a respeito, apenas continuaram ao meu lado, enquanto eu me acalmava. A chuva aumentou; o resto do dia passamos sob um dilúvio. Miléia foi instruída a não me deixar e eu, como era o caso em situações como aquela, era impedida de falar por todos os empregados, sempre que insistia em recobrar a imagem terrível de Umpa escalando o tronco da árvore e desaparecendo no mar de folhagens. Miléia contou-me sobre as flatulências de sua colega de quarto e eu autorizei – não faria diferente de maneira alguma – que dividíssemos os aposentos, como faziam os outros, mas tinha planos de expulsá-la tão logo as coisas se acalmassem.

Alguns dos empregados começaram a me olhar de modo desconfiado e bastou anoitecer para todos se recolherem; aparentemente, nada de tão terrível jamais aconteceu antes de eu aparecer e, sim, era isso mesmo, tudo era culpa de minha presença. A antiga governanta não causara nada como aquilo; nenhum dos empregados causara nada como aquilo. Havia algo em mim. Quando Miléia se recolheu aquela noite, deitou-se na cama ao lado da minha e questionou-me mais uma vez quanto ao que se passara naquela manhã; eu repeti, com ainda mais detalhes se comparado à história que contei sob efeito do pavor.

“Isso me parece muito estranho,” disse Miléia, e inspirou profundamente no quarto muito bem iluminado. “Não é a primeira vez que descrevem isso, exatamente a mesma coisa que você viu. Apenas nunca associaram a alguém; é muito estranho. Ninguém nunca desapareceu antes.”

“Então você acha que eu tenho algo a ver com isso, também?”

“Não exatamente, apenas me parece muito estranho. Eu me pergunto por que nunca vi nada.”

“Agradeça por nunca ter visto nada.”

“E eu agradeço. Agradecer é o que me mantém sem ver absolutamente nada.”

Alguns segundos depois, percebi que estava rezando. Levantei-me devagar da cama, vesti uma sobrecasaca, e caminhei para fora do quarto. Como já havia contado, era uma grande mansão. Ou é, ainda está no mesmo lugar onde sempre esteve. Todos os corredores eram tomados por sombras que se moviam de um lado para o outro, leves e ligeiras; eu tinha costume de fazer, de vez em quando, breves passeios noturnos, usando um grande candelabro e iluminando os cantos escuros da melhor maneira que podia; as vezes, esses passeios se faziam necessários, mas não eram tão frequentes e, com o passar do tempo e o desenvolvimento do horror, tornou-se cada vez mais difícil ter vontade de sair do quarto. De vez em quando, é claro, isso se fazia necessário.

Preciso apenas deixar claro que não foi a oração de Miléia o que me fez sair do quarto, mas o desconforto causado pelo quarto fechado e um medo que começava a se apoderar de mim novamente à alta hora da madrugada. Eu mesma sou muito devota, ainda hoje, e constantemente faço minhas próprias orações; apenas não as faço como ela fazia. Minha inclinação religiosa está sempre acompanhada de necessidade de reclusão e minhas preces, quando as faço, precisam da calmaria da solidão, algo que não poderia acontecer verdadeiramente quando dividindo o quarto. Eu o fazia antes ou depois da chegada de Miléia.

Me pergunto onde Miléia está, ou se ela ainda se lembra dessas histórias todas como eu as lembro ou, pelo menos, se ela consegue se lembrar desse dia específico. E dessa noite específica. Digo isso pois é esse o segundo ponto que não consigo esquecer daqueles dias, daquele período. Primeiro, o desaparecimento de Umpa, logo seguido de seu reaparecimento.

Fechei a porta atrás de mim e segui pelo corredor escuro, iluminando-o com as velas acesas; o frio noturno era pouco convidativo e minhas roupas pesadas dificultavam o caminhar, mas segui em frente; se eu tinha aonde ir? Bem, não sei se posso afirmar isso ou se estava apenas caminhando, seguindo por corredores como fazem os animais presos em labirintos; eu estava apenas fazendo algo e não tenho certeza se naquele momento havia uma imposição do ser. Eu caminhava devagar; passei próxima a uma janela e olhei para fora, para as sombras noturnas e para o bosque, onde eu vira Umpa naquela manhã. Nada parecia diferente de verdade; era apenas um bosque escuro – sabe, os bosques escuros abrigam muito mais do que se imagina. É uma bobagem de velha que viu coisas que gostaria de nunca ter visto, mas, bem… as coisas simplesmente são assim; a verdadeira experiência nasce no estranhamento profundo da realidade como se conhece e tão logo aquela percepção se dá profundamente, nós despertamos para uma nova leitura dos contextos nos quais estamos inseridas.

Segui direto até o fim do corredor e adentrei uma ampla sala de leitura, cuja a porta aberta, muito convidativa, me fizera espiar desconfiadoramente para dentro e inspecioná-la rapidamente. As grandes cortinas de uma das janelas com vista para o lago estariam completamente fechadas, não fosse por uma fresta por onde entrava o fraco resquício de luar; iluminei um canto da sala e caminhei devagar por ali, cuidando para não esbarrar em nada com minha pesada veste noturna.

Estava passando próximo a uma mesinha quando observei – e isso por muito pouco – um pequeno encadernado repousando na sombra. Não parecia um livro antigo; apenas parecia um caderno muito elegante, com páginas caras, muito melhores que qualquer papel que eu já vira, e encadernado em couro preto; não havia nada na capa ou na lombada, mas as folhas internas estavam preenchidas com manuscritos de diferentes cores, além de pequenas ilustrações de plantas, alguns insetos e partes do corpo humano; a língua não era identificável para mim. Parecia um pouco alemão. Tentei ler algumas passagens, mas sem sucesso; algumas palavras eram facilmente reconhecíveis, mas algumas marcas claras da língua alemã não estavam presentes e algumas outras eram completamente desconhecidas; mesmo a estrutura das frases e a contagem dos números escritos era diferente. Não fazia sentido. Agarrei-o comigo e segui caminhando; algo em mim não acreditava na possibilidade daquela língua não ser o que eu conhecia e eu precisava examiná-lo com mais cuidado.

Foi quando escutei um ruido estranho.

Segui, lentamente, iluminando o espaço em redor com as velas do candelabro, com os braços estendidos para amplo alcance, quando o barulho cessou de súbito.

Lá em frente, ainda que não pudesse ver o que exatamente estava acontecendo, a silhueta era visível como uma sombra menos escura entre os outros tons na escuridão; conforme me aproximava, os objetos em redor, as mesinhas, as peças, as fotografias nas paredes, eram iluminadas, enquanto a figura distante, ainda nas sombras, permanecia imóvel. Eu senti que sabia o que era aquilo; como poderia não saber? O tamanho e a maneira como estava disposta ali no meio da sala, com as pernas arqueadas e os joelhos que subiam acima da cabeça, os braços longos e o cabelo, em frangalhos como as roupas, traziam para mim a imagem daquela tarde, a imagem de Umpa arrastando-se árvore acima, trepando e desaparecendo no mar verdejante de folhagem que farfalhava sob o início de tempestade.

O arranhado recomeçou, mais lento, a figura emitindo um som gutural e rouco, sob o domínio da respiração pesada e, balançando para trás e para frente, percebi como toda a composição grotesca daquele demônio tinha uma harmonia terrível. Eu levantei o candelabro e as luzes se espalharam sobre a sala. A figura parou novamente, permaneceu imóvel; sim, era ela, era mesmo Umpa. As costas arqueadas e muito magras mostravam agora a coluna vertebral deformada após um episódio que eu jamais saberia explicar; de complexidade quase infernal, certamente providenciada por arranjos de feiticeiras. Os dedos eram compridos e as unhas, pútridas, arranhavam o chão, deixando sobre ele marcas escuras: o arranhado e o visco que eu não saberia assegurar se era o seu novo sangue demoníaco ou apenas uma secreção da pele macilenta e úmida, viscosa e pegajosa, de onde brotavam pústulas, erupções vulcânicas de fedor, carne morta sob o sol da noite. Ela esticou uma das longas pernas aracnídeas e moveu-se lentamente, fugindo da luz do candelabro, mas aproximando-se um pouco, sorrateiramente, do lugar onde eu estava. O rosto continuava invisível para mim; ela estendeu-se, aos poucos, pondo-se de pé, deitou a cabeça para trás e grunhiu. Mas não era um simples grunhido, não era simplesmente o som emitido por um animal feroz, avisando que estava pronto para atacar, como líamos sempre sobre as viagens às índias e sobre as bestas caribenhas. Não, não, aquele era mesmo um grunhido choroso, um lamento quase dolorido, viscoso como a própria besta.

Meus pés não se moviam; eu estava presa ao chão em horror, assim como, eu imagino, um condenado à forca não percebe como a proximidade da própria morte pode ter – ou mesmo tem, como eu poderia dizer? – um significado mais amplo, além de seu conhecido aspecto mais simples: eu vou morrer. O medo o prende ao cadafalso; a espetacularidade do momento o põe em situação de fuga impossível; o condenado já está morto antes mesmo do início do dia e quando a morte finalmente chega, é apenas um prolongamento da morte já iniciada – mesmo a possível tentativa de fuga funciona na mesma instância, como parte desse prolongamento, o outro braço da queda. No entanto, eu não esperava a visão. Ela empenou-se para trás e caiu no chão, estendendo uma das pernas longas por cima da cabeça e esticando um dos braços em minha direção; estava esticando-se para fora de um poço, de dentro de si mesma, e estendendo as garras para mim. Eu caminhei lentamente para trás, enquanto o corpo se perdia nas sombras, o barulho dos movimentos, os estalos secos do corpo, o lamento, aumentavam uniformemente, conforme eu me afastava, levando comigo a luz do candelabro e saindo lentamente da sala.

Então as cortinas das amplas janelas se escancararam de uma vez; todo o quarto se iluminou intensamente: a sala estava coberta pela massa terrível de serpentes viscosas, fios de escuridão enrolados em si mesmos, fluindo sobre as paredes e sobre o teto, afastando-se lentamente das cortinas. As serpentes as abriram e a lua iluminava, agora, toda a sala; eram os cabelos, os cabelos! Para todos os lados! Escutei uma melodia sinistra sobre minha cabeça. No teto, o demônio que me prendera à cama na noite de Natal me observava, com terrível esgar, vacilando entre a lascívia e a crueldade, contorcendo-se na própria agonia e fervendo em prazeres desconhecidos, submersos nas ondas de fios serpentantes, espalhados por todo o teto e pelas paredes, engolindo a criatura na escuridão viva, enquanto ela gemia e gemia e gemia, e gargalhava. A melodia terrível apenas crescia, misturada aos sons dos estalos de Umpa; quando a vi novamente, estava de frente para mim, olhando diretamente para mim, o corpo deformado se movendo lentamente, para um lado e para o outro, os dedos longos se contorcendo com ânsia; a língua lambendo os próprios lábios, enquanto a boca se escancarava devagar. O que mais me chocou em toda aquela figura, no entanto, foi o rosto: a cabeça fora esticada, como o corpo, a boca era apenas um buraco escuro e o nariz já não existia mais; os cabelos, agora ralos, haviam sido arrancados, pois o couro cabeludo estava em carne viva em muitos lugares diferentes; apenas massas vermelhas e pedaços do crânio, algo que eu não observara antes. A pele do rosto, como as costas, cobertas de pústulas enegrecidas e secretando viscosidades das mais asquerosas. O demônio no teto gemeu com prazer infinito, quando Umpa gritou e começou a correr em minha direção.

E eu corri.

Eu corri, minha filha, eu corri. Todas as vezes que olhava para trás, via apenas as longas pernas se dobrando, Umpa se agarrando às paredes e escorregando sobre o chão de madeira, correndo em minha direção com gritos e lamentações, estendendo os braços para mim e deslizando, deslizando, deslizando… então escutei um barulho no alto. Olhei para trás, não havia ninguém; as batidas estavam no teto. Continuei correndo, fazendo o possível para evitar as vestes longas e pesadas daquela noite. Meus cabelos foram chamuscados pelas velas, mas apenas percebi muito depois. Continuei correndo, até o quarto. Miléia escancarou a porta com violência e pôs a cabeça para fora, com o mais inacreditável olhar questionador; entrei rapidamente e empurrei-a, fechando a porta atrás de mim, derrubando o candelabro sobre o chão e, trêmula, caí sobre a madeira escura. Não havia barulho nenhum do lado de fora.

“O que houve? O que houve?” perguntou Miléia, aproximando-se cuidadosamente, enquanto eu tremia e gemia e gritava.

Não sei exatamente o que aconteceu depois disso; minha mente aqui está tão difusa que não posso dizer se algo do que lhe contei tem qualquer sentido; o medo me deixara num estado que não poderia classificar hoje. Posso apenas me contar o que soube depois por ela, quando lentamente voltei a mim e percebi, no quarto, mais algumas pessoas estavam sentadas, me observando, enquanto tentava me recuperar e, sob exame de muitos outros criados, convenci-me lentamente a respirar fundo.

O mundo estava se transformando para mim. Todas as noções de universo que um dia fizeram parte da maneira como eu lia o mundo e como eu acreditava nas coisas que aconteciam ao meu redor estavam, agora, convergindo como nunca antes, minha incredulidade abalada, minha noção de ser destruída. Nada fora como o medo terrível causado pela certeza de que aquele novo eu era algo completamente diferente e algo completamente entregue a essa nova perspectiva. Eu estava enlouquecendo.

No entanto, sob o olhar dos empregados, eu tentei de todas as maneiras possíveis me recompor e me recolher novamente àquela persona anterior, ao ceticismo; um ato em vão, pois à primeira chance, todas as palavras escaparam de mim em torrente fluida, tudo o que eu estava guardando e algumas coisas que apenas Miléia sabia – a governanta da casa jamais poderia enlouquecer, eu dizia a mim mesma – e eles receberam a história e seus pormenores com virtuosa paciência e inacreditável impassividade. As coisas já eram familiares, talvez.

Ou eu apenas estava enlouquecendo. A cozinha pôs a mão sobre meu ombro e disse:

“Sabe, Senhora, as coisas aqui acontecem como uma sugestão breve, nada terrível, nada notável. Apenas digo que antes nunca aconteceu nada como o que você está sugerindo, apenas algumas situações terríveis ou uma ou outra aparição, mas é um caso de casa velha, nada que uma oração segura não possa apaziguar.”

Levei as mãos ao rosto e encostei a cabeça nos travesseiros. A cozinheira inspirou fundo e, voltando-se para Miléia, perguntou:

“Você já contou sobre a antiga governanta?”

“É claro que não,” respondeu ela, um tanto ofendida. “São bobagens! Eu não acredito em coisas tão estúpidas assim,” disse a mulher que me contara sobre a criança afogada, evidentemente transtornada.”

“Bem, acredito ser melhor contar; nós aprendemos bem com o passado. Devemos não repeti-lo, mesmo que isso pareça muito sedutor. Saiba, então, que nós estamos aqui há bastante tempo; mais tempo do que qualquer outro. Sabemos de muita coisa que acontece por aqui, mas algumas outras são tão terríveis que não falamos sobre elas. Já escutei todo tipo de história e tenho certeza de que a maior parte delas é mentira, mas algumas, algumas seguem um padrão que me desconcerta e me deixa aterrorizada. Por isso eu faço o que sempre fiz e me manteve aqui, segura, por tanto tempo: eu ignoro. Eu…” ela deu uma breve pausa, respirando profundamente e fechando os olhos, abrindo-os novamente e, sobre sua pele, os anos de cansaço e esforço para se manter protegida foi perceptível, imediatamente perceptível, “faço de conta que nada disso existe.”

É claro que eu não sabia que era isso, parecia apenas o cansaço dos anos; mas, não, logo descobriria que aquilo era o cansaço do medo e do horror.

“Devo falar sobre a antiga governanta, então. É a melhor maneira, não é mesmo?”

“Julgo que sim,” disse uma outra empregada, “vamos todos sair. Deixem apenas as duas, você também, Miléia.”

“Mas vejam só, não vou sair do meu quarto,” resmungou Miléia.

“Deixe que ela fique, deixe que ela fique,” a cozinheira anuiu. Todos os outros se retiraram. Notei que o marido de Umpa não estava entre eles.

Enquanto as pessoas se retiravam do meu quartinho, e pude contar sete pessoas, permanecendo Miléia e a cozinheira, minha amiga puxou uma cadeira para sentar a cozinheira e sentou-se, ao meu lado, na cama. Escutávamos os passos das pessoas se afastando pelo corredor e, apenas quando já não podíamos escutá-los, a cozinheira inspirou fundo e começou.

“Bem, como posso dizer? O que posso dizer? Você sabe que havia alguém aqui antes de você, não é mesmo? Ah, é claro que sabe, como não haveria? Mas sabe por que precisaram te contratar com tanta pressa? Isso imagino que seja um mistério para você, não é mesmo?”

“Sim, é um mistério,” eu confirmei.

“Bem, havia alguém. Não sei se ela era uma pessoa boa ou uma pessoa ruim. O fato é que as coisas começaram a piorar quando ela mudou para cá, quando ela veio para a casa e começou a trabalhar aqui.”

“Eu lembro bem dela. Era muito agradável, mas havia algo de muito… estranho,” sugeriu Miléia. “Alguma coisa não estava certa com ela, não estava em seu lugar.”

“Todos sentiam isso. Era muito agradável e muito gentil, mas ninguém sentia verdade em seu jeito. Era uma mulher baixinha, lembra-se disso? Muito inteligente, ah, ela conhecia muito. As coisas aqui nunca foram como nas outras casas,” ela fechou os olhos e puxou uma corrente com crucifixo para fora das vestes noturnas, “eu seguro isso bem forte quando começo a contar esta história. Mas, sim, sim, lembro-me bem. As coisas não eram normais antes, mas parece que tudo piorou, piorou muito. De vez em quando nós víamos algumas coisas por aqui, mas nada muito terrível. Sempre em temporadas específicas, normalmente durante o fim de ano e a chegada do verão, mas essa era a temporada mais fraca; as coisas ficavam realmente estranhas perto do fim do ano. Víamos sombras e vultos, víamos coisas fora dos lugares, mas nada que nos desestabilizasse; sabíamos o que nos esperava por aqui, sabíamos tudo o veríamos quando começássemos a trabalhar. Nós crescemos aqui, conhecemos os proprietários, e as pessoas sempre falam muito, falam demais. As noites eram sempre uma expectativa, mas logo nos acostumávamos. A oração nos fortalecia, além de uma outra coisa. Nunca falávamos sobre isso. Nunca falamos sobre isso; Miléia não fala, mesmo sem nunca ter visto nada, assim ela diz, e eu continuo não falando nada. Qualquer coisa terrível que nós víssemos, virava uma presença fugidia no mundo; não existia, a não ser por aquele instante, como nós mesmos, na história do universo de Deus. Logo que o horror dissolvia em nós, ele morria sob o poder da força divina. Era assim, era sempre assim. Então a mulher chegou.”

“Quando isso aconteceu?” eu perguntei.

“Há algum tempo. Ela ficou conosco por alguns meses. Por quase um ano, mas logo pediu para partir. Disse que não aguentava mais, não aguentava a casa, não aguentava o demônio que havia aqui.”

“Demônio!” eu exclamei, e quase ri, mas logo lembrei dos olhos flamejantes que eu vira havia apenas algumas horas, a mulher num mar de fios de trevas, movendo como serpentes, enquanto ela delirava de prazer e gemendo e gritando no teto da sala ampla. “Um demônio!”

“Um demônio. Era um demônio. Ela prometeu que era um demônio.” disse a cozinheira, soturna. Ela estava agarrada ao crucifixo e fechou o olho por alguns segundo, falando sem emitir sequer um som.

“E o que fez? O que fizeram?”

“Ela se foi, nós ficamos. Continuamos aqui e as coisas estão piores, mas nada é tão ruim a ponto de nos expulsar. Sabemos como agir, só terá força se der força. Eu estou te contando para que pare de dar força ao que quer que seja. Precisamos parar.”

“Eu nunca vi, mas nunca permiti que se aproximasse de mim,” disse Miléia. “Eu não vou permitir.”

“E como ela era?” perguntei.

“Ela era simpática, como já dissemos. Tinha um jeito agradável e ninguém suspeitaria dela; não sei se acredito que tenha alguma culpa, ou algo a ver com isso, mas ela, de alguma maneira, está envolvida. Não sei se a presença dela nesta casa fortaleceu a criatura ou se ela mesma a trouxe consigo, mas digo que agora ela está aqui, como nada esteve antes. Mas tentamos, tentamos sempre continuar. Havia duas coisas, no entanto, que sempre chamava nossa atenção quando pensávamos nela, ou falávamos com ela: a primeira era um pequeno livro, um caderno de notas, eu creio, onde ela escrevia durante horas. Há também uma pequena joia, que ela trouxe consigo e que ela deixou para trás quando partiu, dizendo que a havia perdido e pedindo que devolvesse se encontrássemos, o que nunca aconteceu. Ela voltou a escrever algumas vezes, questionando sobre o colar, mas nunca o encontramos.”

“Colar...”

“Sim, um colar; aparência antiga,” disse a cozinheira, “nunca vi nada como aquilo. Parecia muito elegante, muito caro. Algo que uma governanta não teria, mesmo se fosse paga como nós somos pagos. Ela não o usava sempre, mas vimos usando algumas vezes e, quando ela comentou, lembrei-me dele e não consegui mais esquecer. Tinha uma pedra rubra no centro, brilhante, muito brilhante. Gostaria de ter uma foto dela, mas não encontro.”

“E o livro?”

“O caderno de notas? Ela sempre estava escrevendo algo nele. Parecia novo, com páginas brancas e limpas, algumas delas visivelmente marcadas pela pena. Ela nunca o deixava sozinho, talvez um diário ou coisa que valha,” disse a cozinheira.

“Acho melhor dormirmos, estou cansada. Preciso descansar, pois os patrões estão vindo,” lamentou-se Miléia. Um leve tremor traspassando-lhe a voz.

“Sim, sim, eu concordo. Acho melhor irmos todas dormir. Minha filha, esqueça, esqueça tudo e esqueça sempre. Logo essa coisa se afastará; logo, logo.”

Eu passei a mão no rosto e levantei-me para abrir a porta, quando senti um leve peso no bolso de meu sobretudo; enfiei a mão no bolso e tirei de lá um pequeno volume: logo recordei-me do momento em que o encontrara, tempos antes, no corredor. A cozinheira estava voltada para a porta, voltou-se em minha direção, deitou os olhos sobre o livro e, com uma expressão aterrorizada, exclamou alto e ergueu as mãos para o alto, batendo-se, pesada, contra o encosto da cadeira. Voltei-me para ela, questionando-lhe, quando ela estendeu o indicador em riste, ameaçadoramente, e sussurrou:

“Onde você encontrou isso? O que é isso?”

“Não sei, estava aí fora, em algum lugar. Parece-me escrito em alemão, mas, veja…” eu disse, oferecendo-lhe o livro.

“Afaste isso de mim!” ela exclamou.

“Qual o problema?”

“Veja!”

“O que?!”

“Miléia, veja!”

Miléia reconheceu-o imediatamente. Era o livro da mulher, o livro da antiga governanta. Ela não havia deixado apenas a joia, mas, ali, bem ali, estava, em minhas mãos, o caderno de notas.

A partir desse momento, iniciou-se a contagem regressiva até que eu fugisse da mansão.


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Notas finais do capítulo

E aí? Foi bom? Não foi bom?
Espero que tenham gostado e que sigam comigo até o próximo capítulo - que já está escrito, por sinal. Semana que vem TEM! (risos)

Me deixa um comentário bacana? Até semana que vem, com a conclusão da história contada por Jëz - o que não significa que é o final da novella. ohoho~~
Muito obrigado por me lerem e conto com você na semana que vem!
Até! :DDD



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