Eu Prometo Contar Tudo Exatamente como Aconteceu escrita por OITO


Capítulo 1
Capítulo 1




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Sim, sim, é claro que eu me lembro, o tempo passa, minha cara, ele passa, rápido como uma besta, mas ele não apaga completamente todas as lembranças terríveis que acabamos por guardar em nossos seios; não posso dizer que me lembro muito bem, é verdade; a vida muda, as coisas mudam, é a mudança que faz o universo acontecer exatamente como ele acontece. A memória ganha uma vida própria e diferente daquela memória do passado.

Ah, se eu tivesse registrado isso antes. Mas, naquela época, eu só queria esquecer, esquecer completamente; nunca consegui de fato.

Apenas sinto que algumas coisas indiretas, os acontecimentos secundários, se perderam de alguma maneira nos entremeios de minha memória. E a história, no final das contas, só é mesmo curiosa se verdadeira, então tenho de tentar manter a veracidade dos eventos e a ordem– a ordem é importante, não sabe?, a ordem é uma mecânica em si mesma; então, prometo contar tudo exatamente como aconteceu. Ao menos como me lembro das coisas terem acontecido.

Ah, aquela época, eu era jovem, é verdade– muito jovem; já não posso assegurar qual era minha idade quando os eventos começaram a acontecer ou tornaram-se mais terríveis. Posso dizer apenas que quando enviei a primeira carta de apresentação, já conhecia bem o trabalho, já havia trabalhado em algumas casas, apenas o suficiente para ter uma pequena coleção de recomendações. Eram muito importantes naquela época e creio ainda serem muito importantes. Nosso trabalho tem um caráter formal muito falso, é o que faz dos empregados o que eles são: simples sombras do lar, somos apenas uma existência fugidia e que precisa, em si mesma ser fugidia. Precisa-se de sombras e pessoas que saibam ser sombras.

Os afastamentos anteriores, os quais fizeram as cartas de recomendação serem escritas, foram por questões corriqueiras: uma mudança de país dos meus contratantes ou uma necessidade de afastar-me devido questões familiares, por exemplo.

Lembro-me bem da época, meu pai esteve adoentado por algum tempo e minha irmã, Lorta, minha mais querida irmã, que Deus a tenha, havia nos visitado a pedido dele. Logo imaginei ser uma questão de tempo, então corri até seu leito o mais rápido que pude. Encontrei-o em péssimo estado e a cena ficou gravada em mim durante muito tempo, de tal modo que dificilmente conseguiria deixar de lado a necessidade de retornar ao seio familiar ou eventuais correspondências que indicassem o mínimo de piora no quadro clínico. No final, ele ainda viveu mais dois anos e deixei-o mais uma vez com minha irmã e seu marido, fazendo visitas ocasionais e retornando ao seio da família para sentir mais uma vez a calorosa recepção que hoje me faz tanta falta.

Sabe, minha cara, com o tempo, não importa o quanto você conheça, não importa o quanto você trabalhe, ou leia ou, no seu caso, escreva; não importa o que signifique a fama para você, tenha-a ou não; no final, ou temos nossos familiares ao lado ou não temos absolutamente nada. Hoje eu sei. Hoje eu sinto. Naquela época, não me parecia tão importante a constância da presença e, ainda que parecesse, não sei se muito poderia ser feito para remediar a situação a não ser escrever-lhes com maior frequência. Nem isso é verdadeiramente satisfatório, serve apenas como um tipo de beberagem para as dores, mas não solucionam o problema; não, não, eu estou bem sim. Não se preocupe. Apenas pegue para mim aquela moldura, sim? Aqui, veja bem, esta era minha irmã, por ela mesma; e eu lhe digo que está bastante parecida, se bem me lembro. Às vezes penso que está, mas outras penso que não está muito bem desenhada; mas, se me lembro bem, ela era assim, de fato, e todos sempre elogiavam a precisão de sua arte com o lápis ou carvão. Esta era eu; ainda parece bastante comigo – o tempo não me destruiu. Este era papai e ela desenhou mamãe, ainda que nessa época ela já estivesse morta; é como se quer, você aproveita as possibilidades que a invenção permite e refaz a realidade como bem entender, como lhe aprouver.

Mas, no final, estamos todos bem fiéis aqui; é tudo o que tenho, além das cartas. Quando junto tudo, quase forma um espírito, quase sinto pulsando em minha mão, como um coração batendo forte entre meus dedos; eles ficam tão trêmulos que, por pouco, não derrubo tudo no chão e esqueço de mim mesma. De mamãe eu tenho apenas uma carta, muito antiga, que me foi dada por papai, escrita a ele; mamãe não gostava muito de escrever, então ele sempre enviava as correspondências quando necessário, ou mesmo Lorta fazia, mas mamãe nunca escrevia. Morreu sem deixar muito para trás, a não ser uma carta e algumas pequenas antiguidades, posso mostrar-lhe qualquer hora se quiser ou se for importante para seu livro, mas é assim que as coisas são; nós somos e deixamos de ser, ficamos como um rastro que o tempo apaga mesmo dentro de nossas famílias. Acredito que nem mesmo seu livro possa salvar a memória de mamãe; nem a minha memória pode salvá-la, sabe? De todo modo, eu estou aqui e posso contar tudo como quiser, não asseguro a total veracidade de todos fatos, minha memória é falha, mas o farei da melhor maneira que puder. Algumas coisas lembro-me bem; estão marcadas a fogo, as coisas relacionadas à casa estão todas elas, ninguém me convence do contrário. Não conseguiram no hospício e não vão conseguir aqui; é impossível, agora.

Nunca é bom voltar. Nunca me parece interessante ou incrível revisitar o medo.

Certa vez, quando ainda muito pequena e mamãe ainda era viva, um episódio marcou-me com certa força, não devido o evento em si, mas o quanto acompanhei do desenrolar, posteriormente, o que para uma criança – e eu nunca fui das mais impressionáveis – poderia ser um pouco chocante.

Tínhamos esse vizio, Morolo, um verdureiro; ah, uma das melhores pessoas para se comprar vegetais. Eu gostava muito de tudo o que era produzido na ampla horta nos fundos de sua casa, eu comia aqueles vegetais como nunca comi vegetais em toda minha vida. Certa vez, estávamos saindo de casa e ele, enquanto caminhava e conversava com mamãe, tropeçou ou escorregou em alguma coisa, as pernas bambearam e ele caiu de cabeça sobre o chão. Seus olhos estavam abertos, escancarados para o céu azul da manhã, muito abertos mesmo, redondos e com um tipo diferente de brilho, uma coisa vazia e sem… ele. Foi uma confusão muito grande; ninguém nunca entendeu muito bem o que aconteceu, mas ele havia batido a cabeça e isso era o suficiente para saber que após aquele momento, a única morada que teria era o túmulo. Arrastaram-no tão rápido quanto puderam para dentro de casa e tentaram fazer de tudo para reanimá-lo, mas ele nunca voltou.

Ele se foi com o escorregão. Ficaram apenas os olhos voltados para o céu, uma maldição, um medo novo e prenunciador de horrores; ele ainda tinha a mesma expressão quando o colocaram no caixão para velá-lo; a mesma expressão na capela, enquanto oravam ao redor de seu caixão; a mesma expressão quando fecharam o caixão e, mesmo que me dissessem que os olhos estiveram fechados a todo momento, eu conseguia vê-lo, com eles arregalados, olhando para a tampa da caixa sepulcral onde o colocaram, abertos enquanto a terra caía sobre o corpo e enquanto o tempo lhe roía as carnes. Ele estava sempre com os olhos abertos; apenas os olhos estavam lá. Isso era o meu medo; meu novo medo horrendo que visitava como os vizinhos mais desagradáveis, entrando em minha mente e surrupiando a paz de meu coração. Hoje não sinto nada e, para falar a verdade, não lembro dos olhos, mas há um vestígio do sentimento que aquilo me causava; era o mesmo sentimento de pavor gritante, o mesmo sentimento de algo que precisa parar, algo que precisa morrer. Logo.

No primeiro dia, quando vi a mansão à distância, de dentro da carruagem, sentindo o chacoalhar da carruagem devido solo pedregoso e escutando barulho dos cascos dos cavalos – o carro fora alugado para me buscar e não tive acesso a ele novamente, apenas algumas poucas vezes –, parecia-me um tipo de sonho glorioso se aproximando lentamente.

Daquela distância, quando coloquei a cabeça para fora da cabine e, segurando meu chapéu que eu mesma costurara alguns meses antes, avistei os contornos delineados da mansão no terreno belíssimo e muito bem iluminado, com algumas árvores aqui e ali, ah, como foi encantador!, a minha impressão era de que não era eu, dentro do carro, que me aproximava para uma nova vida bela e agradável, mas a construção firme e poderosa que aproximava-se de mim, prometendo receber-me como uma pertencente, como alguém que encontrara, de fato, um lugar para ficar.

Em uma de minhas cartas para minha irmã, já a li inúmeras vezes, comentei longamente a respeito de minha chegada e se não dei tanta atenção à recepção dos outros empregados, digo que foi apenas por conta da paz e do encantamento que me causaram aquele momento. Minha irmã nunca acreditou em mim. Nunca, jamais deixou-se perceber o quanto aquele lugar terrível era marcado por um horror sem tamanho e acreditou apenas naquela primeira impressão, sempre voltando a ela quando tentava explicar o que acontecia e como todos se portavam e como a vida estava se transformando no medo cíclico, como não havia mais nada para mim naquela promessa de paraíso além do horror. Não importa quantas vezes eu lhe escrevesse; para ela, tudo não passava de uma fabulação do isolamento.

Entre todas as coisas belíssimas naquela construção, a mais bela de todas era uma frondosa árvore antiga, um salgueiro gigantesco, sob o qual imaginei-me folheando páginas de livros em momentos de lazer ou fazendo um piquenique solitário ou acompanhada de alguma amiguinha que eu fizesse lá dentro; estava próximo ao lago, à beira do lago. Hoje, se tiver uma chance de visitar a mansão, veja o salgueiro, veja a bela árvore que ele é e veja como é um ambiente atrativo; o horror sabe se esconder muito bem por trás das coisas mais belas; sabe esconder-se sob cada uma das pinceladas mais delicadas dessa composição natural.

E a mansão se aproximava de mim, mais e mais os detalhes da construção magnífica me deixavam inebriada, cada vez mais, cada vez mais, cada vez mais, ao ver a fila de empregados ali embaixo, lado a lado, em postura impecável e esperando a minha chegada para recepcionar-me como uma deles, o refinamento do lugar, a elegância; eu apenas conseguia pensar como aquele era um universo completamente diverso do meu ou de qualquer outra coisa que eu já tivesse conhecido. O carro aproximou-se e eu desci, com minha única mala de mão e um baú modesto, fui recepcionada pela chefe da cozinha.

Devo falar um pouco sobre o meu trabalho ali: eu era a principal encarregada por aquele palácio. O que me foi explicado num breve encontro com os proprietários, foi a natureza importante de meu trabalho ali e tudo o que eu deveria fazer semanalmente para que as coisas andassem no ritmo correto. Os meus patrões nunca estavam no prédio e apenas o visitavam em situações particulares: momentos festivos, necessidade de retiro, férias e situações do gênero. Fui assim informada, quando finalizaram o processo de contratação. Durante o resto do tempo, apenas habitavam a casa todos os empregados responsáveis por mantê-la nos conformes, o que não era muita coisa, se levássemos em conta o tamanho da construção. Era fácil perceber quão ricos eles eram. E também era perceptível o tamanho de minha responsabilidade. Duas vezes na semana, era necessário escrever um relatório completo do andamento da casa, uma minuciosa inspeção daquele organismo vivo – e eu nem imaginava quanto –, e anotar todos os menores detalhes, em inglês e em francês. Depois, enviá-los para Paris na correspondência matinal e nunca atrasar para além das 11 h da manhã, horário máximo de postagem para encaminhamento naquele mesmo dia.

Fizesse chuva ou sol, a carta deveria ser postada e os relatórios escritos, sem faltar uma só vez, toda quarta-feira e todo domingo.

Eu incluía também a hora em que o carro vinha nos buscar para levar à igreja e a hora que chegávamos, não precisando especificar eventuais problemas não relacionados ao funcionamento direto da mansão. Nunca, em toda minha vida, fosse antes ou depois, tive um trabalho com tamanhã necessidade de precisão e minúcia como este; mas o ordenado era bom, incrivelmente bom, e eu estava disposta a mantê-lo por muito tempo, se fosse esta a vontade do Senhor.

Quando desci do carro e cumprimentei a todos, um por um, logo percebi uma leve hostilidade por parte de algumas das garotas da cozinha.

O principal comentário daquela manhã, aparentemente, fora a respeito de minhas vestimentas e do meu porte: eu era simples, muito, muito simples. Uma característica da qual me orgulhava e, principalmente, se minha vestimenta era simples e muito bem-comportada, era devida ao meu cargo naquela casa e a escolha de roupas mais adequadas não poderia ser diferente. Trajava um longo vestido cinza, folgado, um chapéu simples e luvinhas, além de botinas de sola alta de madeira, para lamaçais, e uma capa vinho, berrante e um pouco agressiva aos olhos. Ainda tenho a capa, não pude me desfazer dela, sendo o último presente de mamãe e, por falta de outros resquícios de sua existência entre nós, mantive a mais que velha capa vinho.

Eu era um monstro de deselegância e sem o mínimo requinte; no entanto, conhecia muito bem a gramática – como ninguém naquela casa –, falava francês, latim e um pouco de alemão, mas considerava uma língua de brutalidade quase desagradável; sabia bordar, mas muito mal; gostava de estudar história e, para surpresa de alguns, tinha conhecimentos suficientes de álgebra. Então, não era uma completa inútil.

As moças em fila, lado a lado, olhavam para mim e esperavam que dissesse qualquer coisa – ou assim eu imaginava –, quando uma delas se pôs à minha frente e, com um leve aceno de cabeça, cumprimentou-me dando as boas vindas de modo reservado. As outras cumprimentaram-me com a cabeça.

Duas correram para o carro e ajudaram pondo minha mala para dentro, enquanto as outras entravam em fila ordenada – como imagino fazem os que servem em exércitos –, e mais uma, apenas uma, ficou para trás e agarrou-se a mim imediatamente desde o primeiro dia.

Muito quieta, Miléia comportava-se em explosões efusivas e demonstrações de afeição exageradas que, se em parte me desconcertavam, em parte satisfaziam minha necessidade de conhecer alguém no ambiente árido ao meu redor. Acredito que ela estava a ponto de explodir e com minha chegada lhe era ofertada a última esperança de um oásis que a reavivasse daquele tédio. Miléia era a mais nova de todos e, entre todas as outras empregadas, quase todas senhoras muito quietas e de atenção completamente voltada para o trabalho, minha amiga se destacava em meio a todas aquelas mulheres exatamente em sua não conformação com o modo como a vida corria no interior da mansão.

De personalidade, na realidade, vibrante, percebi como Miléia estava morrendo ali dentro, tinha sua energia solar sugada por todas aquelas outras pessoas e, se as mulheres eram muito silenciosas e acreditavam apenas no próprio trabalho e na não alimentação da casa com pequenas partículas de vida com possível fagocitação, os homens eram ainda mais desagradáveis, pois, além de silenciosos, me pareciam muito furtivos. Nunca pude perceber quando um homem estava no aposento, fosse ele um dos mais franzinos, como os responsáveis por tarefas simples, como alimentar os animais e cuidar dos instrumentos musicais e livros, uma vez ao mês, ou dos mais robustos, como os jardineiros. Nenhum deles tinha a vida de Miléia e, ao sentir a chance de solo fértil para interação, apostou em mim todos os pontos e acertou em cheio.

Acredito ser essa uma condição comum naqueles de espírito como o de Miléia; quando não encontram o diálogo podem tornar-se loucos; ela ainda não sabia ler. Apenas após a minha chegada os livros se tornaram um atrativo a mais entre um trabalho e outro, entre uma pesada limpeza e outra, minha amiga aprendeu a ler e aprendeu, principalmente, como os detalhes de seu novo hábito poderiam satisfazer, quando impossível encontrar uma alma com quem pudesse manter um diálogo, as fomes de interação humana.

Ao menos em parte.

Ela sentava-se ao lado do fogão com um dos livros abertos e lia durante o tempo que pudesse e contava-me depois os detalhes de descobertas. Muitas vezes, após o hábito assentar de fato como uma possibilidade e vir a tornar-se um habito, eu já não estava mais tão disposta quanto estivera durante o processo: as coisas estavam tornando-se terríveis, o horror se espalhava pela casa, por mim, como uma doença de força irreprimível e por mais que tentasse, por mais que insistisse, era impossível conter os temores e voltar ao meu antigo eu.

Mas falarei sobre isso depois; é importante pensar bem sobre o quanto as outras pessoas que trabalhavam por lá viam os horrores. Ninguém mais os experienciava como eu e minha amiga pouco conhecia a respeito. Ela escutava histórias e sempre algum detalhe era captado por ela; nada, no entanto, a tocava, nada estava perto dela além de uma leve influência quando perceptivelmente os horrores estavam mais próximos do que nunca. Ela não escutava nenhuma manifestação, não via sequer uma assombração, mas seu humor trepidava e sofria influências terríveis. Ficava assutada, temerosa, começava a rezar com afinco.

Conversei com ela por duas vezes sobre esses casos e disse-me apenas ser aquilo uma questão passageira e não tinha absolutamente nada a ver com superstições locais. Eu não sou boba, ela me dizia, rindo com um pequeno desvio na voz, são apenas conversas de pessoas sem juízo e minha mãe me disse, assim que pus os pés na estação e escutei o primeiro apito do trem – a viagem foi longa e cansativa, conto sobre ela depois –, mamãe me disse: não escute as pessoas do interior e tome muito cuidado com supersticiosos bobos, não há nada além do divino, ore e tudo o que lhe parecer terrível irá embora, e é exatamente o que eu faço. Funciona, ela me disse. AH, como eu tentei! TENTEI! Mas nada servia para mim, nada daquilo me ajudava e era apenas um crescendo. Não devo falar sobre isso agora; as semanas se passaram entre minha chegada e o início do horror, não há motivos para pressa; seu livro talvez seja muito grande, mocinha.

Jëz estava falando há alguns minutos quando um homem de branco entrou no quarto pela porta da frente e pediu que Odenni, a escritora, deixasse que ela fizesse uma breve refeição, antes de continuar.

Não fora muito fácil convencê-los a deixá-la ter uma conversa particular com a mulher, mas a necessidade imperativa e a influência do editor das publicações mensais fizeram com que a liberação acontecesse muito antes do que o previsto, provavelmente dispondo de algum auxílio financeiro à instituição – ou mesmo alguma manchete fantástica em capa. Asilo assombrado!

Odenni levantou-se rapidamente do seu lugar e sentou-se empertigada numa cadeira próxima, com o pequeno caderno de notas na mão e observou-o enquanto servia uma sopa para a mulher, uma mulher cansada e tomada de reumatismos. Tirou o chapéu da própria cabeça e finalmente o pôs de lado – há quanto tempo estava vestindo aquilo?, o peso desaparecera em algum momento e nem mesmo o sentia mais – ajeitou os óculos delicados na ponta de seu nariz e tomou-se a ler as notas.

Quase meia hora depois, durante os quais ignorava os olhares furtivos do homem de branco – principalmente percebendo-se surpresa pela primeira vez por ser um homem – e percebeu, no bolso de trás, o periódico do mês anterior escondido. Reconheceu principalmente a ilustração na última página. Ignorou-o.

Ah, não, não, já estou satisfeita; não, não precisa de mais nada. Estou ocupada, como pode perceber, e se continuar insistindo, tomará ainda mais do tempo da moça; não acho que isso seria muito cortês de sua parte. Ao menos no que diz respeito a ela; conosco vocês não parecem se importar o suficiente, não é? Ah, sim! Claro que se importam, eu vejo todos os dias, quando empurram todo mundo para os quartos antes da hora ou quando esquecem de alguma coisa; minha querida, escreva isso em seu livro: mentiras e maus tratos. É isso o que se ganha quando vive uma experiência terrível em um único momento de sua vida: uma sucessão de outros momentos terríveis, até ser trancada num mausoléu, viva!, viva!, e jogarem a chave fora. Ora, saia daqui! Saia agora, estou começando a ficar cansada; quero repousar.

Deixe-me voltar, minha querida.

Onde estávamos?

Ah, sim, sim, lembro-me! Quando falei a respeito dos primeiros dias. Bem, acredito que não aconteceu nada até o primeiro Natal, e pensando que estávamos ainda em meados de Novembro, nada aconteceu por cerca de um mês e meio. Fui instalada em um quarto superior, mas aos fundos.

A mansão tinha muitos andares, com alguns poucos aposentos subterrâneos, nos fundos, onde dormiam a criadagem; subiam as escadas que davam para a área de trabalho: depósitos, adegas, cozinha, sala de refeições comum – lembro que havia uma grande mesa de madeira, maior do que o necessário, pois sempre sobrava muito espaço, e era muito forte. Serviam-nos uma comida respeitável.

As cozinheiras preparavam com o que éramos abastecidos, boa comida, sem dúvida, nunca comi tão bem como lá. Verduras e frutas de muitos tipos – mas simples, é claro –, poucos cereais e algum leite, sem carnes, mas, quando possível, nós mesmos comprávamos. Não eram bons tempos, mas a comida ajudava a não piorar; tínhamos até bolos de vez em quando. Não há nada tão ruim que a boa comida não solucione, é o que sempre digo. A pena é nunca encontrar um lugar assim; se o lugar é péssimo, a comida costuma ser pior ainda.

Se os patrões visitavam, sempre comíamos tudo o que sobrava, o que sempre me pareceu muito justo, mas hoje não tenho tanta certeza quando a isso. No todo, engordei muito por lá. O lugar era um espetáculo do eu; apenas uma voz era ouvida e essa voz era a do patrão, que passava por meus lábios como ordens minhas e talvez me tornasse uma figura muito antipática para aquelas pessoas; todos eles, todos, viravam as costas para mim em determinados períodos – mesmo Miléia o fez um par de vezes, foram tempos um pouco desagradáveis – o que me fez pensar em políticas de melhoramento da imagem e de melhor coloração de minha imagem entre aquelas pessoas; nenhum deles parecia se importar de verdade; ignoravam constantemente todas as minhas investidas. Mas eu tentava.

Uma delas, lembro-me bem, foi o descanso. Eu os coagia a tirar, todos os dias, num rodízio, um descanso de caminhada, aos pares, para espairecer; o campo aberto sempre possibilitou caminhadas agradáveis e sempre os instruí a caminhar e respirar fundo durante alguns minutos, ou apenas sentar-se em algum lugar e descansarem ou cochilarem ou apenas respirar um pouco – mas, quase sempre, os coagia às caminhadas revigorantes. Quando voltavam, pareciam muito mais despertos e julgava ser uma causa da caminhada; algumas vezes, no entanto, observei alguns casos peculiares repetindo-se aqui e ali.

A primeira vez que percebi, a cozinheira, Srta Poppop voltou um tanto pálida, escoltada por uma senhorita muito boazinha e que tinha a melhor das habilidades na hora de polir a prataria. Quando penso nela, lembro imediatamente da prataria muito bem polida; quando encontro uma prataria bem polida, do mesmo modo, lembro-me dela; uma criatura encantadora, encantadora! Mas sentei Srta. Poppop na cozinha, entreguei-lhe um copo d’água e esperei que descansasse e respirasse um pouco. Miléia veio correndo até nós e sentou-se próxima, descascando batatas e com uma faixa grande amarrada na cabeça, prendendo os cachos escuros como madeira podre. Srta. Poppop olhou para ela e respirou fundo; levou a mão à testa e intencionou levantar-se, mas logo a empurrei novamente sobre o banquinho – o que foi muito difícil para mim, devido a sua forma robusta. Acredito que a fraqueza a pôs novamente sentada. Puxei uma cadeira e esperei a cor voltar a sua face.

“O que aconteceu, minha querida?” perguntei, e servi-lhe um copo de leite e cinco morangos numa pequena tigela. Ela empurrou os morangos para longe, mas aceitou o leite.

“Ora, senhora, não foi nada. Nada mesmo, não se preocupe, estou velha. Os velhos se cansam com mais facilidade. Depois de tanto tempo trabalhando duro, minutos de passeios para revigorar sempre me deixam terrivelmente adoentada.”

“Mas isso não explica o seu rosto! Não é possível que tenha apenas se cansado.”

“Mas foi mesmo isso, apenas um mero cansaço, não se preocupe comigo. Ah, ainda tenho muito o que fazer. Os senhores estão vindo?”

“Não, não que eu saiba! Creio que chegarão apenas para o Natal.”

“Duas semanas, então. Preciso pedir as carnes e encher o estoque. Posso entregar a lista hoje à noite?” perguntou-me ela. Eu apertei meus olhos e esfreguei o braço grande com a minha mão. A diferença era inacreditável.

“Sim, sim, claro que pode. Não se preocupe, ainda temos muito tempo. Mas, diga-me, conte o que aconteceu.”

“Ora, não foi nada,” ela balançou a mão no ar, como quem tenta espantar uma varejeira, “foi o sol, o dia muito claro, coisas assim acabam comigo.”

Num instante, senti Miléia mover-se ao lado, mas logo ela foi repreendida por Srta. Poppop que, com o dedo indicador em riste, berrou a instrução para continuar cuidando apenas das próprias batatas. Olhei para trás e Miléia, de cabeça baixa, não segurava mais nenhum tubérculo; as mãos estavam sobre o colo. Srta. Poppop passou a mão no rosto novamente.

“Ah, que porcaria. Estou muito velha mesmo.”

O resto do dia correu como antes, mas a reação exagerada de Srta. Poppop ao gesto simples de Miléia permaneceu comigo durante alguns minutos; lembrei-me de como a repreensão de Srta. Poppop a fizera diminuir como se faz a uma criança mal-comportada, mas sem voltar ao trabalho e, perceptivelmente, ela não estava mais apenas cortando batatas. Não foi até muito mais tarde, mas naquela mesma semana, quando um dos outros empregados voltou do passeio igualmente perturbado, ainda que não tão perturbado.

Isso se repetiu mais algumas vezes; mais duas vezes para ser mais exata, e, com o passar do tempo, a perturbação se tornou generalizada. Não havia mais apenas pessoas surgindo inexplicavelmente pálidas, como se uma doença estivesse se espalhando entre nós, mas todos demonstravam um tipo de estado perturbado de espírito; de uma hora para outra, eu percebia como os empregados ficavam nervosos, como os sustos se tornaram frequentes, como olhavam sobre o ombro com frequência e como, principalmente, um tipo de estado meditativo se espalhou entre muitos deles, enquanto faziam o que deveriam fazer, enquanto mantinham suas atividades devidamente em curso: olhavam apenas para si mesmos e, muitas vezes, fechavam os olhos por alguns segundos e, depois, batiam no próprio ombro duas vezes.

O rapaz do estábulo, de uma hora para outra, passou a frequentar a cozinha.

Se antes, ele trabalhava com os cavalos e o gado e, junto com sua esposa, chegava durante a manhã e trabalhava sozinho durante horas, sem nunca se aproximar da mansão, começou a frequentar a cozinha e esperar por companhia sempre que possível; mesmo o jardineiro o acompanhava em seu trabalho e recebia ajuda dele no próprio trabalho. Em resumo, todos faziam de tudo para nunca ficarem sozinhos e quando sozinhos, eu acredito, tentavam segurar-se ao íntimo, alheando-se do que existia ao redor. Quero dizer, todos menos eu; não compreendia exatamente o que estava acontecendo, mas me dizia que aquilo era mesmo algo muito curioso. No dia seguinte ao último episódio misterioso, recebemos o postal cancelando a visita dos patrões para o Natal; eles enviaram um ligeiro telegrama de apenas duas linhas, no qual cancelava a viagem devido ao padecer súbito de um parente próximo e encaminhando a data da chegada das provisões para aquele Natal; alguns itens haviam sido cancelados da lista, como percebemos depois, mas havia vitela, dois leitões e uma encomenda de peru. Além disso, algumas frutas da estação foram acrescidas e, satisfeita, a cozinheira decidiu fazer para aquele mesmo dia um bolo, comemorando a boa vontade dos patrões.

Sentei-me com Miléia aquela tarde e ela confidenciou-me rapidamente que sentia-se um tanto desconfortável com os recentes acontecimentos e, surpresa com a fartura pouco comum do período, questionou-me quanto ao conteúdo das cartas que enviava aos patrões. Ela conhecia todos os aspectos do meu emprego – assim como os outros – e conhecera a minha predecessora. Todos afirmavam que ela era uma mulher muito elegante e distinta, mas não tão inteligente quanto eu e, um pouco cruel para com os empregados. Ninguém nunca me contou nada sobre o que acontecera com ela, sobre o episódio que ocasionou minha contratação às pressas; eu nem mesmo sabia que isso havia acontecido às pressas, na verdade; foi uma informação obtida naquele dia, após conversar com Miléia e descobrir algumas surpresas desagradáveis.

“O que você costuma contar em suas cartas, Jëz?” perguntou-me ela, um pouco tímida, e senti o significado de sua reação a meu posto privilegiado naquela casa, assim como a possibilidade de eu ser temida por eles.

“Apenas coisas técnicas,” contei, falava sobre o funcionamento da casa como um todo e enviava relatórios sobre qualquer problema envolvendo a estrutura que fosse detectado. De todo, eu era os olhos dos patrões enquanto eles não estavam; minhas cartas costumavam ser longas, mas o papel muito bem aproveitado. “Contei sobre os casos de enfermidade, também. Solicitei um médico para que examinasse as pessoas que sentiram mal-estar durante essa semana. Seria algo bom, fiquei um pouco preocupada, como sabe. Foram quatro casos, isso poderia ser algo muito grave.”

“Compreendo,” disse ela, e apertou minha mão levemente, aproximou-se lentamente e sussurrou, “preciso contar-lhe algo, mas prometa que não contará nada a ninguém a respeito do que eu lhe disser aqui. Você não escutou isso de mim, tudo bem?”

“O que quer dizer?”

“Bem,” ela começou, e olhou para os lados em desconfiança, voltando-se para mim em seguida, “você não acha um pouco suspeita a maneira como somos tratados aqui?”

“Sobre o que se refere? Eu não consigo compreend...”

“A comida! Falo da comida! Falo do ordenado, você recebe bem, eu imagino! Eu recebo bem, muito melhor do que em qualquer outro lugar, na verdade. Não acha isso nem um pouco estranho, eu suponho. Bem, bem, pois deveria, minha amiga! Você deveria achar isso estranho!”

“Sim, é claro, mas pensei que isso fosse apenas bondade dos proprietários ou apenas algo para nos manter aqui, a essa distância do mundo, tomando conta desse casarão.”

“É claro que estamos distantes, precisamos ficar distantes.”

“Por quê?”

“Querida, me escute, você sabe que eles nunca estão aqui, não é mesmo?”

“Sim, eu sei.”

“E você sabe que, dificilmente, alguém coloca os pés aqui nessa casa, a não ser em épocas festivas e, quase sempre, no Natal e no último dia do ano, não é?”

“Na verdade, não...”

“Ah, Jëz! Como… ah, bem, pense comigo, sim? Pense na comida, ninguém alimenta seus empregados como somos alimentados aqui e ninguém se importa de fato, se importa tanto, de receber os comunicados como nós precisamos mandar, você precisa mandar; muitos detalhes, falando do funcionamento da casa, dos barulhos, dos rangidos. E o dinheiro para manter tudo isso? E o dinheiro para manter esse modo de vida agradável para, bem, sejamos sinceras, a criadagem?”

“Eles têm dinheiro! Fazem o que quiser com ele.”

“E estão sempre ganhando mais e mais; você não estava aqui antes, como eu, não sabe o que se passa por aqui e imagino que eles não contariam para quem estão contratando. É uma casa grande que gera grandes lucros, mas imagino que você não tenha ideia de como isso acontece...”

“Ora, mas conte-me você, então!”

“São bobagens. Muitos supersticiosos acreditam, eu não; é uma história antiga, eu acho, uma coisa familiar, talvez. Mas, sim, posso dizer alguma coisa sobre isso, pelo que escutei e pelo que vi; e isso não foi tanto quando, imagino, aconteça de verdade. Dizem que coisas estranhas acontecem por aqui; coisas inexplicáveis. Os sinais sempre aparecem; quando começam a aparecer, os donos vêm.”

“Que tipo de coisas inexplicáveis?”

“Bem… algumas pessoas costumam pagar muito caro para vir até aqui e experimentar, para conversar com alguém que partiu, você sabe, que morreu, e experimentar um tipo de poder que os amedronta. Muitos dos empregados acreditam em toda essa história,” ela me confidenciou, “muitos veem, mas acho que é apenas mais um efeito da história em si, algo que a casa afeta em pessoas impressionáveis.”

“Ah, que bobagem!”

“Pois verá! Aqui, as coisas são assim. Por isso somos bem alimentados e ganhamos tão bem. Para continuar aqui, para não querer sair, não importa o que se veja. Quer dizer, até não aguentar mais.”

“Compreendo. Quem perderia uma oportunidade como essa por tão pouco?” cogitei, ela afirmou com um aceno de cabeça.

“Não podemos participar dos encontros, das sessões espirituais, como chamam. Mas é tudo uma armação, tenho certeza; como não pode vazar, não podemos ver. Muitos ficam assustados e isso, de certa forma, ajuda a divulgar uma determinada ideia do lugar.”

“As pessoas pensam que é assombrado...”

“Exatamente. É isso o que acredito; o mistério é apenas mistério se se for curioso; enquanto está na esfera da especulação e está imerso nas múltiplas possibilidades. Nada é verdade; é apenas um tipo muito bem arquitetado de teatro. Que paga meu ordenado e paga muito bem. Nunca tive rendimentos como os tenho aqui.”

“Posso imaginar,” eu disse, um tanto chocada. Aquilo me parecia um pouco criminoso. “Espero que os outros fiquem bem, mesmo com os problemas daqui.”

“Eles ficam. Sempre ficam.”

Com a chegada do Natal, estávamos muito satisfeitos. Nada notavelmente estranho voltou a acontecer com nenhum dos outros e ninguém aparentou nervosismo; acredito que esqueceram-se dos problemas quando, no fim do dia, a mesa farta estava posta, os salões muito limpos e todos os poucos empregados espalharam-se pela casa numa festividade eletrificada pela energia emanando de todos nós; vibrávamos; estávamos queimando em puro êxtase! Nunca vi alguns deles embriagados; mesmo aqueles que não habitavam o casarão passariam a noite conosco – o que não era nem um pouco usual, preciso te dizer, e, acredito, era muito estranho –, então arrumamos camas e quartos extras. Cerca de quatro quartos duplos, para duas pessoas, e a cozinheira trabalhou como nunca fizera antes, eu soube depois. Arrumamos a mesa do salão principal onde os patrões comiam, uma ousadia!, e decidi que deveria deixar esse pequeno momento de fora dos meus relatórios para aquele dia; a mesa estava farta e nós sentamos e comemos durante muito tempo.

Já era alta hora da madrugada quando, finalmente, alguém se dispôs a iniciar o fim da celebração e retirou-se para o próprio quarto. Mais algumas pessoas continuaram durante um longo tempo e continuamos a comer.

Foi por volta de uma da manhã, a torre de relógio girando entre todos nós como a personificação do tempo, quando olhei pela janela e observei uma figura arrastando-se pela estrada, ao longe, lentamente, com passadas vagarosas e sem grande firmeza. O corpo encurvado demonstrava exaustão; tinha um porte alto, mas desengonçado, cansado… não, não esquisito, desfazendo-se aos poucos sob a noite enluarada, afastando-se para longe, vindo sabe-se lá de onde. Não recordo o que pensei naquele momento; poderia ter sido qualquer coisa, mas o ignorei e voltei a fazer o que estivéramos fazendo durante tanto tempo.

Parte de nosso ordenado foi reunido e transformado em bebida barata. Todos estávamos bêbados, exalando álcool, tremeluzindo aos olhos uns dos outros; uma explosão estranha de mau comportamento e inclinações a quebra de regras, tudo o que, eu já decidira, ficaria de fora de meu relatório seguinte. Eu mesma já estava bêbada; nunca havia feito isso em toda minha vida, mas há sempre uma primeira vez; comecei e não consegui parar depois do sabor do primeiro copo. Isso talvez tenha ajudado minha mente a ignorar a figura cambaleante na estrada que vi a distância, em meio ao escuro intenso e estranhamente iluminado pelo brilho lunar. Lá fora, tudo era um mar de piche. Ninguém ousaria sair numa noite como aquela; estava frio, frio, frio.

“Está chovendo!” alguém falou e acho que poderia ter sido eu mesma. Não imagino quem tenha sido. Não era uma exclamação de fato, ou um tipo de constatação momentânea da surpresa. Era apenas uma fala; simples e direta; a voz não indicava saber o que aquilo significava, apenas falou, apenas expressou. Era isso, apenas chuva. Era só isso.

Foi muito mais tarde, naquela mesma noite, e a madrugada já havia avançando há muito e ninguém mais estava acordado, quando senti um sabor estranho na boca, um sabor amargo e incômodo, um tanto pastoso; então despertei e estendi a mão em busca do copo d’água que deixo sempre ao lado da cama, não estava completamente desperta, eu acho, apenas me movimentei como precisava fazer, pois a sede movia meus músculos, uma ânsia por água, como o perdido em busca do Oasis, o asco por conta daquele sabor tinha grande significado em mim, eu precisava me livrar dele o quanto antes; deixe-me dizer que não abri os olhos muito bem, nunca os abro de fato, apenas estendi a mão e capturei o copo com meus dedos, puxei-o até mim e beberiquei um pouco.

Foi quando senti o cheiro.

Era terrível e estava espalhado por todo o quarto como uma essência das mais desagradáveis, por mim, por minha pele, pela roupa de cama e exalando pelas paredes, ao meu redor como numa câmara secreta, fechada há séculos, habitada apenas pelas mais asquerosas das criaturas, minha pele absorvia o cheiro, pensei, e eu logo começaria a exalar a mesma essência nauseante. Seria, talvez, o mesmo aroma lamentável da tumba da eternidade; decomposição e do padecer; havia também uma leve desesperança crescente em mim, repetindo palavras vazias de noites sem fim e promessas de danação.

A primeira que fiz foi perguntar-me o que poderia ser, mas a mente não encontrava no quarto um referencial possível para aquela podridão, era muito mais indefinido, parecia algo que não conhecia e, de certa forma, uma mistura de cheiros que, instante e outro, remetia a algum fedor pestilento específico, mas transformava e diluía e retornava e insinuava-se mais uma vez, de um fedor para o outro, de um cheiro pestilento para o outro, minha mente começou a afundar em meio àquela mistura, minha pele tornou-se pegajosa, eu sentia os lençóis absorverem o sumo daquela podridão que minha pele havia absorvido e agora secretava como suor, mas já não era apenas o suor, era a podridão em si, era aquele aroma asqueroso.

Eu já estava sofrendo de acessos de náusea, com tudo o que consumi durante aquela noite; sentia os líquidos voltando por minha garganta quando levantei-me de uma única vez e abri os olhos para a escuridão noturna.

Qual não foi minha surpresa quando percebi, ao pé da minha cama, o topo de uma cabeça, voltada em minha direção, os olhos arregalado me observando com atenção e escuros como a noite. A luz da lua entrando pela janela espalhava-se diretamente sobre a figura, os cabelos longos e úmidos, como uma massa escura e brilhante, quase pastosa, espalhada sobre o rosto como fios de escuridão, vivos, serpenteando sobre a testa e formando dois rios ao redor dos olhos terríveis. Seu olhar tinha a mais tenebrosa das expressões.

Eu estava paralisada; queria mover-me, levantar e sair dali o mais rápido possível, mas a figura parecia crescer sobre mim, crescer com o horror e crescer sobre minha pele, espalhar-se sobre mim e dominar completamente os meus membros, prender-me sobre a cama. Então aquilo se moveu. Lentamente. Primeiro, o rosto subiu, muito aos poucos, revelando alguns detalhes do rosto que não pudera ver antes, como a boca mutilada, sem o lábio inferior, os dentes aparecendo por trás dos restos de carne pútrida; a pele era cinzenta, coberta por manchas escuras e de aparência asquerosamente úmida. O cabelo, de fato, movia-se lentamente, mas muito pesado, como serpentes, sobre os ombros magros e ossudos da figura horrenda que poderia ser apenas uma representação do mais terrível dos demônios dantescos. Sua mão deslizou sobre a cama, tateando devagar, os dedos contorciam-se como as longas pernas de tarântulas, escuros e compridos, sem unhas, tão pegajosos quanto o resto de sua pele. Eles grudavam-se ao tecido limpo, deixando marcas dos dedos longos, das palmas das mãos, manchas escuras sobre o lençol; viscosas. Ela levantou a mão e uma fina linha de visgo prolongou-se entre alguns dedos e a cama. Os braços longos estenderam-se e içaram o corpo no ar, com facilidade e flexibilidade, montou em minha cama e arrastou-se, arrastou-se como uma serpente – como era possível? Como? –, arrastou-se até mim, e eu podia sentir os pequenos filetes de sombras subindo em meus braços, enrolando-se ao redor de meu corpo imobilizado, enquanto a coisa se arrastava até mim com seus movimentos horrendos e particulares. As mãos não me tocavam, mas eu sentia, muito perto, como afundavam sobre o colchão e como emitiam, estranhamente, um calor terrível, como se aquela pele ardesse, ardesse como nada jamais ardeu sobre a face da terra. Eu permaneci ali, paralisada, sentindo meu corpo ser tomado completamente pela escuridão de seus cabelos; se aproximando, se aproximando, se aproximando. As serpentes subiam por meu pescoço; em meu rosto. Não eram mesmo serpentes. Eram os mesmos fios de cabelo, fios unidos pela decomposição, pelos viscos pestilentos. Os cabelos insinuavam-se sobre minha bochecha, perdiam-se atrás de meu pescoço e entre meus próprios cabelos, corriam por sobre meus lábios e buscavam a melhor maneira de forçar a entrada por meus lábios. Presa à cama, eu forcei os dentes.

Logo, minha mente foi tomada pelas mais terríveis imagens: um incêndio naquela casa, os corpos de todos os empregados ardendo em agonia; uma árvore, lá fora, atingida por um raio, em chamas, caía sobre mim e eu sentia minha pele arder, meu cabelo queimar e o barulho particular do assado que eu me tornava aos poucos; sentia-me caindo no lago próximo e sendo arrastada por plantas aquáticas até o fundo, onde não havia luz, apenas a escuridão do piche e a água entrando em meus pulmões, gélida e sufocante, o medo, o temor; mas nada, absolutamente nada, foi tão terrível quando o que vi depois de tudo isso. Senti os dedos da coisa em minha face; tremi. Quando escancarei os olhos… filha, era indescritível. Direi apenas uma coisa; não era apenas a face em si, o medo daquele horror em si, mas sua expressão, a expressão daquele ser. Olhe, veja como tremo. Percebe o que estou te dizendo? Não posso, não sei o que dizer, minhas mãos; posso sentir os cabelos enrolados em meus braços neste momento, veja aqui, aqui e aqui; vê como minha pele se revolta? Não era mentira. Aquilo foi a coisa mais terrível que já vi; e já vi muita coisa; muita coisa.

Não há como descrever, na verdade. Eu tento, mas estou certa de que não é a mesma coisa.

Direi apenas uma coisa, senhorita, e você pediu por isso; eu prometi contar tudo exatamente como aconteceu e estou fazendo, mas, quanto a isso não poderia fazer diferente; você não poderia entender e nunca vai saber exatamente o que é sentir-se a ponto de morrer, literalmente morrer de medo. Menina, direi uma coisa: eu tenho certeza de que, naquele momento, eu estava diretamente para aquilo que se contorce dentro de tudo, a coisa mais terrível que poderia estar nos observando, existir no mais distante confim da concepção humana de medo. Eu estava olhando para o horror supremo.

O problema não era eu ver aquilo; o problema não era eu perceber a existência daquele medo, daquela abominação.

O problema é que aquilo olhou de volta.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado!
Tentarei postar os capítulos semanalmente - mas tá à vontade de Deus.
Divulguem pros coleguinhas. Obrigado! ;D



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