As janelas da cozinha real estavam abertas, dando espaço para que a luz e o sol adentrassem no cômodo. Duas servas vestidas de preto conversavam risonhas em frente ao fogão, uma delas mexia nas panelas de ferro, fazendo movimentos circulares na comida que estava sendo preparado, enquanto a outra regulava o volume do fogo.  

 No centro do lugar existia uma madeira retangular com o símbolo dos Tass entalhado no centro, mas aquele símbolo estava ali a tanto tempo que quase não dava para ver alguns detalhes das asas e olhos. A moça na frente de Valquíria beirava os 20 anos e tinha lindos cabelos encaracolados, a cor era um loiro mais puxado para o bronze. Outros dois empregados estavam ali sentados admirando a conversa.  

— Espere, Ághata pode me contar essa história novamente? – A ruiva que beirava os 17 anos ainda estava meio confusa com a história que sua amiga contava. A Dama de companhia da Rainha Penny não devia estar ali no meio de tantos empregados, mas durante toda a sua vida fez amizade com as pessoas que estavam ali, e ela ainda não se sentia pronta para abandonar tudo aquilo. 

— Não tem nada para contar, isso é mentira – Jóck verificava os pratos e talheres, mas mesmo com esse trabalho não deixou de exaltar sua voz. 

— Não sou mentirosa! Eu vi com os meus sonhos próprios olhos – Ághata começou a contar novamente, a medida em que olhava para os lados. Alguns prestavam atenção, já outros acharam mais interessante continuarem com seus trabalhos diários. Ela retirou uma mecha cacheada de seus olhos e prosseguiu. – O molho caiu em cima de Deyne e de Quor, mas o príncipe não foi nada afetado, ele nem mesmo notou que aquela coisa quente tinha caído nele.  Diferente de Deyne que  agonizava de dor no chão. 

Valquíria olhou atenta para a amiga na sua frente, seus olhos castanhos recriaram aquela  cena em sua mente, era possível imaginar os reis com os olhos arregalados, os príncipes surpresos e Jane... Na verdade ela não conseguia entender como uma garota conseguia ser tão inútil assim, era perturbador quando ela falava alguma coisa que não tinha nenhuma conexão com a realidade, dava para sentir um sentimento vergonhoso por ela a cada palavra dita. 

— Isso é loucura – Uma voz feminina soou. 

— Isso é mentira – O mesmo empregado que havia acusado a loira de ser mentirosa disse novamente. – Vocês deviam estar mais focados em seus trabalhos, e você Valquíria, não devia nem estar aqui. 

Ela fitou Jóck de cima a baixo, após deixar que o ar escapasse de sua boca, se voltou para a garota.  

— E como ele está?  

— Bem, Deyne foi dispensado por tempo indeterminado. Os curandeiros reais estão cuidando pessoalmente dele... – Assim que terminou, voltou-se para o homem e disse. – Por que não cuida da própria vida?   

— Porque ela é monótona – Valquíria riu a medida em que se levantava. – Mas ele está certo, se a Rainha descobrir que uma de suas damas de companhia está aqui, definitivamente não terminará bem... Tenham um bom trabalho.  

Depois de se despedir daquelas pessoas, começou a caminhar na direção do corredor principal, a procura de Quor. O dia estava silencioso, até mesmo os corredores movimentados estavam mais calmos. Os estandartes dos Tass espalhados pelo castelo estavam mais brilhantes do que nunca, pareciam até mesmo estarem recém-pintados. Viu uma silhueta dourada caminhar e logo agiu.  

— Olá – A jovem parou um homem que caminhava na direção contrária. Aquele era Sor Edward Pachini, membro da guarda real. Edward era um homem mais velho, aparentava ter cerca de quarenta anos. Sua pele branca e olhos verdes caracterizavam que ele não era uma pessoa nascida em Livada, e qualquer pessoa que conhecesse Livada saberia dos Pachini. A família real do reino mais próspero, mas apenas quando falamos de agricultura.  Deixou tudo isso para entrar na Guarda Real, a maior honraria dos cinco reinos. – Sabes onde está Quor?  

A Guarda Real foi fundada pela rainha Atena Tass I, após seu filho Hélius Tass  quase morrer em um atentado misterioso. Com o propósito de proteger a família real, a Guarda conta com dez membros, cada um deles pertence a um dos grandes reinos de Hangarus: Aksum, Livada, Norte, Karlee e Caphiro.  As vestes são negras, uma das cores da família Tass. Além dessa cor, as armaduras também contam com detalhes vermelhos, principalmente no símbolo da Coroa estampado no peitoral, escudo e no cabo das espadas feitas em Arkang. 

Normalmente os guardas estão com membros da família real, os protegendo, mas por algum motivo Sor Edward caminhava calmamente pelo corredor.  Ela olhou para cima, em uma tentativa correta de focar em seus olhos verdes, ainda esperando uma resposta. Ele demorou tanto para responder que Valquíria começava a suspeitar que na verdade o cavaleiro formulava uma mentira.  

— O Príncipe está nos Salões de Banho.  

— Obrigada – Depois disso, o homem se afastou sem nem fazer uma reverência, ela ficou parada o vendo desaparecer de vista, depois de uma bufada começou a andar em direção a seu amigo.  

A porta que levava aos Salões de banho estava sendo guardada por Jun Taka, o mais novo membro da Guarda Real. Valquíria deu um sorriso ao ver seu amigo vestindo negro. Ela se aproximou lentamente dele e disse: 

 - Bom dia! - Abriu um sorriso. - Será que o cavaleiro pode me informar aonde o Príncipe de Aksum está? 

 - Hélius provavelmente está falando besteira por aí - Sua voz soou bem séria, mas depois de alguns segundos os dois começaram a rir. Era engraçado como o clima entre os dois sempre voltavam ao mesmo clima amigável. 

 - Eu preciso conversar com Quor. 

 - Desculpe, M'Lady, mas Quor pediu para não ser interrompido.  

— Falo sério Jun – Cruzou seus braços, e esperou que o garoto saísse, o que claramente não aconteceu. 

 - Também estou. Nem mesmo os empregados foram permitidos ali dentro, por isso estou aqui fora. 

 A moça virou o seu rosto para os lados, alguns servos passavam, mas nenhum deles era relevante para a situação que se desenrolava. Desde que Jun entrou para a Guarda Real, ele parecia ter ficado mais rígido, e não só parece como é a realidade, a moça não esperava mais dele, mas mesmo assim era estranho. Além de sofrer muita pressão por estar tão novo em um local de honra, os outros membros da guarda vivem dizendo como ele deve agir. E Valquíria sabia de tudo isso graças a Selene.  

As duas sempre conversavam sobre assuntos aleatórios, e de vez em quando sempre falavam sobre Jun, e as conversas sobre ele se intensificaram desde que Selene começou a colher um certo sentimento em relação a ele, e isso era um problema. Jun Taka era membro da Guarda Real, então não podia possuir casamentos, terras ou qualquer coisa que o desviasse do foco: A Família Tass. Porém não é isso que ela precisava pensar no momento, e sim em Quor fazendo algo escondido do outro lado da porta.  

— Por favor, Jun, eu preciso entrar - Deixou que seus cabelos ruivos caíssem para o lado direito a medida em que pressionava os olhos na direção do rapaz. Ela observou o rapaz soltar o ar pela boca e revirar os olhos. 

— Se eu for expulso da Guarda, a culpa será sua.  

Valquíria riu e apressou o passo em direção a maçaneta, mas no exato tempo em que ela atravessava a porta, Jun a segurou pelo braço e disse: 

 - Rápido. 

Os Salões de banho por mais que fosse um cômodo só, recebem esse nome pelas várias divisões entre as piscinas de água morna, que por sua vez são aquecidas pelo subsolo através de rochas ferventes, trocadas todas as manhãs. O local foi planejado pela própria Afrodite Tass I, a irmã e esposa do Grande Adônis Tass I, o conquistador de Hangarus, o homem que junto com sua esposa Alice Lehon, e sua irmã-esposa  Afrodite. Por muitas das vezes, ela é lembrada apenas por sua grande beleza, mas ela era muito além disso. A Rainha foi uma grande governante nas épocas em que Adônis não conseguia tomar decisões.   

Juntos, os Tass chegaram com seus dragões, e livraram Aksum das mãos dos Kisandra. Mas mesmo com toda essa garra, o projeto dos salões de banho só conseguiram ser colocados em prático no reinado do rei Ares Tass I e da rainha Atena Tass I. Ou seja, a segunda geração depois de Adônis. 

As vezes, as pedras aqueciam demais, e quando isso acontecia, as águas da piscina central, principalmente, ferviam demais  impossibilitando qualquer pessoa viva de se banhar naquelas águas de fogo. Normalmente, os servos esfriavam as pedras com uma substância gélida, mas por algum motivo aquilo não havia acontecido. 

— Quor! – Valquíria gritou bem alto, ao ver aquela cena.  

O príncipe havia acabado de retirar suas roupas, e nu, caminhava lentamente até as águas fervendo. Ela tentou impedir, mas era tarde. O garoto estava dentro do "fogo", mas ele parecia não sentir nenhum efeito. 

Jun entrou no exato momento em que ela gritou,  e empunhando sua espada, questionou a garota do que estava acontecendo, mas antes que ela respondesse, ele pode ver Quor Tass mergulhado em uma piscina quente, e agindo como se estivesse em um clima habitável.  

— Quor você pode se queimar, saia daí! 

Ele olhou para a garota com uma calma invejável. Seus olhos tão negros como uma noite sem estrelas,  encontraram-se com os castanhos profundos da ruiva. 

O guarda real estava bem mais confuso que a garota. Eles permaneceram nessas feições até que Quor decidiu sair. Lentamente, ele pegou suas roupas e as colocou. Nenhum dos dois ficou envergonhado em ver o garoto pelado. Valquíria já tinha visto o amigo nu tantas vezes que as contas haviam sido perdidas no meio de seus pensamentos, o fato de terem sempre crescido juntos e Quor sempre preferir a companhia de Selene e Valquíria ao invés da de Hélius havia ajudado nisso. Mas a dama de companhia já não podia dizer o mesmo em relação a comodidade de Jun em ver Quor sem suas roupas, talvez seja pelo fato de Jun sempre ser encaminhado para proteger Quor, o que continuava duvidoso. 

O quarto de Quor era grande, e a sacada possuía uma visão ampla da capital de Aksum, e acima de tudo da Caverna dos Dragões. Nome dado ao enorme prédio em forma de cúpula, construído também durante o reinado dos reis Ares e Atena Tass. No topo do prédio,  Licko, o dragão de Hélius Tass , o príncipe herdeiro de Aksum caminhava lentamente, tomando um pouco do calor sol para si. Naquela distância, não era possível enxergar todos os detalhes de Licko, apenas a sua coloração branca, e em como ela reluzia diante daquela luz. 

A jovem sempre se imaginou montando em um dragão, mas isso era algo impossível. Durante inúmeras noites ela sonhou montando em dragões, batendo suas asas pelo mundo, visitando cidades, descobrindo novas. No Décimo quarto aniversário do Príncipe Hélius, todos os três príncipes Tass ganharam dragões, mas em um de seus sonhos, Valquíria sonhou que era ela no lugar de Hélius, e Licko a havia abraçado de um jeito que nunca tinha visto fazer com o prometido. Mas eram só sonhos tolos, talvez na próxima vida ela nascesse uma Tass, e tivesse o melhor dragão de todos os tempos. 

 - Acredita que até agora, meu irmão não conseguiu domar o próprio dragão? - Quor falou sem olhar para Valquíria. Os dois tinham seus braços apoiados nos parapeitos de mármore, esculpidos com lindas linhas circulares. O garoto também fitava o dragão branco caminhar pela Caverna. Jun estava logo atrás dos dois, de guarda na porta que dividia a sacada do resto do quarto. 

— Não vim aqui para falar sobre os dragões, Quor, muito menos sobre seu irmão - Os cachos ruivos estavam soltos, permitindo que o vento o locomovesse como bem entendesse. A voz soava apreensiva. Ainda estava aflita com os fatos acontecidos anteriormente. Em breve ela teria que sair dali e voltar as Damas de Companhia da Rainha Penny, mas precisava resolver aquilo de uma vez. - Então é verdade, não é? A História da água... - Ela deu uma pausa, e virou seus olhos para o amigo. 

Ele estava em silêncio, a junção de suas sobrancelhas mostrava um olhar apreensivo. Quando viu que ele não iria responde-la, Valquíria prosseguiu com o assunto. 

 - Quor, o que está acontecendo com você? 

 - Em verdade eu te digo que não sei. Depois desse ocorrido do molho, e agora a banheira! Eu não sei o que está acontecendo comigo... Com o meu corpo! 

 Valquíria observou o garoto contar sobre o que sentia. Ela deu uma certa atenção para Jun, que olhava para os dois atento. Depois disso, ela disse:  

— Se isso continuar se espalhando  pelo reino, isso não vai acabar nada bem.  

 - Por que falas assim?  

— Como tu sabes, as damas de companhia vem de outros reinos, as mais belas donzelas... E com elas, as culturas e conversas... Nem todas pessoas de Hangarus concordam com sua família, você sabia? E não só pelo incesto, e sim por causa deles – Agora, Licko estava na companhia de Egres, o dragão quase dourado de Selene, irmã caçula de Quor. Os dois  se olhavam, e faziam círculos entre si, junto com grunhidos, uma espécie de conversa talvez. Um certo movimento de Licko fez com que Valquíria percebesse que eles estavam se preparando para uma briga. Será que o clima afrontoso entre Selene e Hélius era tão grande que também estava afetando seus dragões? Antes que qualquer coisa piorasse, Ferco veio dos céus. Os Dragões eram grandes, não tão grandes pois ainda não eram adultos, suas alturas podiam ser comparadas com a de carruagens. Porém Ferco era maior que os dois, mesmo que fosse por poucos centímetros. A sua coloração negra fez com que os dois dragões se afastassem, e com um grito arrepiador, os outros dois pararam com aquilo, se dispersando. - Alguns nobres veem sua família como bruxos... Pois são os únicos que podem domar criaturas assim. Agora imagine o que eles não farão quando descobrirem que um dos príncipes de Aksum não sente o calor. 

— Eu sinto calor! Eu só não... Não sou afetado por coisas quentes, água, para ser mais preciso  – Ele bufou, deu as costas para A Caverna dos Dragões e encostou suas costas no parapeito da sacada. - Isso que você fala não tem o mínimo de fundamento! Meus pais, Meus avós, tataravós, todos foram ótimos reis! É claro que existiram Tass que só trouxeram a ruína, mas isso não é o caso! Se eles realmente não gostassem da minha família já teriam dado um jeito de acabar com ela! Não é? - Olhou para Jun.  

O jovem guarda fingia não ouvir a conversa até ver que ela começava a se encaminhar para ele. Ele ficou em silêncio e virou seu olhar para Valquíria, como se estivesse esperando alguma resposta dela para que pudesse falar, após acenar com a cabeça ele disse: 

— Eu já ouvi algumas conversas assim na Guarda Real. Porém não são famílias importantes como os Pachini ou Wrynn. São apenas pessoas que você não deve se preocupar. - O garoto que aparentava possuir entre 19 e 20 anos explicou, mas isso não ajudou muito.  

 O príncipe se sentou, e colocou sua mão esquerda no rosto.    

— Uma vez, um Mestre me disse "Alguns reis temem os fortes, mas eles estão errados. É os fracos que eles devem temer, pois quando eles se juntam contra algo, não acaba bem"  - Ele deixou que suas pernas se esticasse, entrando em contato com o mármore. - O que eu devo fazer? 

 A garota se sentou ao lado dele, e respirou fundo.  

 - Eu sinto muito Quor, mas não se preocupe, nada de ruim vai acontecer com você ou com sua família. Sem falar que vocês têm dragões, ninguém seria idiota o suficiente para fazer algo contra este lugar. 

— Assim eu espero – Ele recostou sua cabeça na sacada. 

 Valquíria olhou para o símbolo dos Tass entalhado na porta, ela suspirou e deitou sua cabeça no ombro do príncipe. "É Quor, eu também espero" Pensou